• 2 Oliveira, Gustavo and Hecht, Susanna, «Sacred groves, sacrifice zones and soy production (...)
• 3 Mueller, C. C. Expansion and modernization of agriculture in the Cerrado: The (...)
• 4 Barona, Elizabeth, et al., «The role of pasture and soybean in deforestation o (...)
• 5 IBGE, Produção Agricola Municipal. Tabela 1. Área plantada, área colhida, quantidade pro (...)

1Nas últimas décadas, a rápida expansão da soja na América do Sul está transformando ecossistemas, estruturas agrárias e relações sociais nos territórios, criando paisagens dominadas por monoculturas2. No Brasil, a soja, cultivada desde os anos 1940 por agricultores familiares do Sul, começou a se expandir rumo ao norte desde os anos 1980, alcançando o Cerrado e a Amazônia3. A expansão da soja simboliza uma nova fronteira agrícola no norte do país, provocando novos desmatamentos, seja pela conversão direta de áreas florestais em plantações, seja pelo deslocamento das outras frentes de desmatamento (pecuária, extração de madeira, grilagem de terras)4. Em 2021, 32 % da quantidade de soja brasileira (toneladas) era colhida na Amazônia Legal5. Entre 2007 e 2021, essa produção aumentou de 84 % na região Norte, contra 56 % em nível nacional (op. cit).

• 6 de Carvalho, William Douglas and Mustin, Karen, «The highly threatened and little known (...)
• 7 Sauer, Sérgio, «Soy expansion into the agricultural frontiers of the Brazilian (...)

2O desenvolvimento agroindustrial na Amazônia tem provocado muitos debates, dada a relevância socioambiental da região. Hoje, além das florestas do Mato Grosso, Sul do Amazonas, Rondônia e Pará, a expansão da soja ameaça os ecossistemas e os modos de vida dos povos que vivem no Norte da Amazônia, como no Amapá e Roraima6. Alguns fatores têm sido fundamentais para essa expansão, como o preço da terra e a criação de políticas públicas favoráveis ao agronegócio, através de incentivos fiscais, crédito agrícola, pesquisa agronômica e, sobretudo, desenvolvimento de infraestrutura, como estradas, portos e linhas elétricas7.

• 8 Nepstad, Daniel, et al., «Slowing Amazon deforestation through public policy and (...)

3Por outro lado, desde os anos 1990, a Amazônia tem sido o foco das políticas ambientais nacionais e internacionais para conter o desmatamento, com ampliação e diversificação das áreas protegidas, sistemas de controle do desmatamento ilegal, associados ao reconhecimento dos saberes e dos direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais8. No norte da Amazônia, o relativo isolamento, a cobertura importante das Terras Indígenas e Unidades de Conservação, além das alianças históricas entre diferentes parcelas da sociedade civil organizada, permitem vislumbrar um cenário alternativo à devastação. Portanto, cabe perguntar: como evoluíram as políticas ambientais e fundiárias no norte da Amazônia brasileira para acomodar a expansão da soja nos últimos anos? Mais especificamente, perguntamos neste artigo em que medida esta expansão pode ser atribuída à ascensão de J. Bolsonaro ao poder.

• 9 Hutukara Associação Yanomami. Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra I (...)
• 10 MapBiomas, Coleção 7.0 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso de Solo do Brasil. 202 (...)
• 11 Folha Web, «Futuro do agro em RR é otimista e previsão de safra é de 180 mil h (...)
• 12 Alencar, A, et al., «Amazônia em chamas: o novo e alarmante patamar de desmatamento (...)

4Analisaremos o caso de Roraima, estado localizado no extremo norte do Brasil, que possui quase 20 % do seu território coberto por áreas de savana, conhecido também pelos territórios indígenas e pelos impactos do garimpo ilegal (como é o caso recente da TI Yanomami)9. Em Roraima, apesar de maior discrição, o agronegócio também tem progredido e produzido conflitos. À frente deste processo está o cultivo da soja, que apesar de não ser recente, ganhou novo fôlego no último quadriênio, atraindo investidores e redefinindo a dinâmica fundiária da região (figura 1). Até 2013, segundo a Plataforma MapBiomas, a área destinada à soja não superava mais de 10 mil hectares. Nos anos seguintes, a área cresceu para algo próximo a 20 mil hectares, permanecendo nesse patamar até 2019, quando explodiu. Entre 2018 e 2021, houve um aumento de 257 % da superfície dedicada à soja, ocupando cerca de 75 mil hectares10. Segundo o governo do Estado, a previsão de safra das grandes culturas, como soja, milho e feijão, é de 180 mil hectares para 2023. Ao mesmo tempo, o rebanho bovino do estado passou de 840 mil cabeças de gado em 2018 para mais de 1.1 milhão em 202211. Roraima registrou 122 % de aumento na área média anual de floresta desmatada entre 2019 e 2021, em relação ao triênio anterior (2016-2018). Foi a maior taxa de crescimento do desmatamentoentre os estados da Amazônia no período analisado12.

• 13 Bauer, M. W., Jordan, A, Green-Pedersen, C, Heritier, A. «Dismantling public policy: pre (...)
• 14 Sabourin, Eric, et al., « Le démantèlement des politiques publiques rurales et environne (...)
• 15 Bühler, Eve-Anne, Gautreau, Pierre, and Oliveira, Valter, « La revanche de l'agrobusines (...)
• 16 Rajão, Raoni, et al., «The rotten apples of Brazil's agribusiness», Science, 2020, 369(6 (...)
• 17 Coelho-Junior, Marcondes G., et al., «Unmasking the impunity of illegal defore (...)
• 18 Delaroche, Martin, Le Tourneau, François-Michel, and Daugeard, Marion, «How ve (...)

6A literatura sobre desmantelamento de políticas públicas examina os motivos e meios de redução do número e intensidade de medidas, instrumentos e recursos num determinado setor13. Isso pode envolver transformações da estrutura de uma política, a manipulação ou instrumentalização das capacidades de implementação e suporte (cortes orçamentários, remoção de instrumentos ou de espaços de negociação) ou até mesmo a extinção da política (op. cit.). No caso brasileiro, houve uma desestruturação gradual de políticas (socio)ambientais e das instituições associadas desde os anos 201014. A literatura destaca as interrelações entre dois tipos de flexibilização das normas legais: as que facilitam a obtenção de licenças ambientais aos proprietários, e as que regem a regularização fundiária15. Este processo de “dupla flexibilização”, que permite “legalizar o ilegal”, começou a partir da reforma do Código Florestal em 2012 (Lei 12.651) e se acirrou durante a gestão do governo Bolsonaro, favorecendo a impunidade dos crimes ambientais16^,17^,18.

• 19 Oviedo, Antonio, Augusto, Cicero, and Lima, William Augusto Conexões entre o CAR, desmat (...)
• 20 Eloy, Ludivine, et al., « Alternatives durables pour le Biome Cerrado : occupation (...)

7Neste contexto, o avanço do agronegócio na Amazônia está relacionado não apenas ao descumprimento da legislação, mas opera também, em parte, e tal vez cada vez mais, dentro de uma estrutura legal, mascarando novas formas de desmatamento ilegal e de grilagem de terras, inclusive dentro de Unidades de Conservação e Terras Indígenas19. Nos últimos anos, os atores do agronegócio brasileiro buscaram construir uma narrativa de sustentabilidade, afirmando seu respeito das leis ambientais, e o desenvolvimento de sistemas produtivos intensivos e modernos, essenciais para o desenvolvimento do país e para a alimentação do mundo20.

• 21 Barbosa, Reinaldo I., et al., «The "Lavrados" of Roraima: Biodiversity and Con (...)
• 22 Campos, Ciro, «As Pequenas TIs de Roraima», in C.A. Ricardo and F. Ricardo, Editors, Pov (...)

15Esta paisagem, chamada de “campos do rio Branco” e localmente conhecida como “lavrado”, é o maior bloco contínuo de savanas do bioma Amazônia, com 61 mil km², compartilhada entre o Brasil (70 % da região), Guiana e Venezuela”21. Embora a maior parte do lavrado (57 % dos 43 mil km²) esteja no interior de terras indígenas (op. cit.), cerca de 18 mil km² estão em áreas passíveis de titulação. As terras indígenas do lavrado, em sua maioria, são pequenas e estão demarcadas em ilhas, portanto mais vulneráveis às pressões do entorno22.

• 23 Em 2022, o governador “listou 98 imóveis urbanos e rurais entre os seus bens. (...)

17A generalização da ILP é atrelada ao processo de concentração fundiária: seguindo o exemplo do próprio governador eleito em 2018 (Antônio Denarium, aliado do ex-presidente Bolsonaro), e reeleito em 2022, pecuaristas capitalizados compram antigas fazendas23 de gado com pastagens “degradadas” e plantam soja para aumentar o valor da terra, ao mesmo tempo que renovam as pastagens e aumentam a produção de carne. Assim, cultivar a soja em antigas pastagens abertas na floresta pode ser mais vantajoso do que no Lavrado.

• 24 Amaral, Marina «Dobradinha Denarium/Bolsonaro em Roraima mantém garimpo em Terra (...)

19O apoio do governo estadual de Roraima ao agronegócio remonta aos anos 1990, durante o longo do processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol: tal apoio incentivou os arrozeiros gaúchos para ocuparem o território indígena demarcado através de estradas e isenções fiscais, além de fomentar divisões no movimento indígena24.

• 25 Por exemplo, o governo apoia a construção de um novo canal de comercialização via o eixo (...)

20No início dos anos 2000, os produtores enfrentavam algumas dificuldades: condições meteorológicas variáveis (seca, alagamentos), falta de sementes, limitação da capacidade de armazenamento da produção e de infraestruturas. Não obstante, os seguidos governos estaduais têm investido para contornar estes gargalos por meio de isenções fiscais, subsídios para compra de máquinas, estradas25, e pesquisa agronômica.

• 26 Rocha, Clarice, «Embrapa colabora com diagnóstico da soja em Roraima», Embrapa (...)

21Os produtores do agronegócio em Roraima são representados e apoiados pela Federação de Agricultura e Pecuária de Roraima (FAERR), que organiza regularmente, junto com a Secretaria estadual de Agricultura, Desenvolvimento e Inovação (Seadi), a Embrapa e a Faculdade de Agronomia da UFRR, seminários de tecnologia de cultivo da soja. A FAERR, junto com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), e com a colaboração do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e da EMBRAPA, desenvolveram em 2018 o estudo AgroRoraima que busca fazer um diagnóstico da soja no estado26, focalizando-se na expansão da área de produção, produtividade das lavouras, cultivares semeadas e adoção de tecnologias. Estas parcerias permitem também organizar grandes eventos anuais para atrair investidores, como a Exposição-Feira Agropecuária de Roraima (Expoferr) ou a Abertura Oficial da Colheita da Soja.

• 27 Folha Web, «Futuro do agro em RR é otimista e previsão de safra é de 180 mil h (...)
• 28 https://roraimaemtempo.com.br/sem-categoria/governo-de-roraima-contratou-socio-de-denarium-para-pr (...)
• 29 Os produtores citaram 36 tipos de agrotóxicos utilizados (herbicidas, fungicid (...)

22Com argumentos de geração de emprego e desenvolvimento agrícola, o poder público estadual tem aumentado os investimentos na cadeia produtiva da soja27. O discurso de legitimação econômica e ambiental da soja, dominante no estado, consiste em apresentar a cadeia de soja como “propulsora de desenvolvimento" ou "carro chefe de desenvolvimento no estado" (incluindo a agricultura familiar e indígena), e sustentável (desmatamento evitado). Enquanto os efeitos da poluição (agrotóxicos), impactos sobre os solos, rios, biodiversidade, desmatamento, distribuição de terras e de sementes transgênicas em terras indígenas28, entre outros, são silenciados ou negados29, o plantio da soja é considerado por muitos dos seus entusiastas como uma prática ambiental sustentável e “benéfica” ao ecossistema como um todo.

• 30 Cabral, Lídia, Pandey, Poonam, and Xu, Xiuli, «Epic narratives of the Green Re (...)
• 31 Oliveira, Gustavo and Hecht, Susanna, «Sacred groves, sacrifice zones and soy production (...)

23As narrativas épicas sobre a revolução da agricultura tropical nos Cerrados ajudaram a construir e consolidar uma identidade científica nacional que preserva o papel das organizações de C&T, notavelmente a Embrapa30. Tais narrativas, (re)produzidas no contexto deste estudo, abrangem as dimensões sociais e ecológicas da agricultura (sucesso centrado na ciência e nos rendimentos), o heroísmo de indivíduos (genericamente definidos como "gaúchos", mas inclui pessoas oriundas do centro-oeste, sudeste e sul do país), e uma perspectiva da agricultura industrial com contornos mais ecológicos. Reproduzem, também, no lavrado, a invisibilidade da biodiversidade das savanas em comparação com as florestas tropicais, colocando as savanas do bioma Amazônia numa "zona de sacrifício" para a produção de commodities, da mesma forma que ocorre com o bioma Cerrado31.

• 32 Campos, Ciro ed. Diversidade socioambiental de Roraima: subsídios para debater (...)

25O estado de Roraima é subdividido em 33 glebas, que até 2009 eram terras da União, e onde a titulação de terras dependia do Governo Federal. Ainda por cima, 68 % da superfície do estado está em área de faixa de fronteira, dificultando a emissão de títulos fundiários. Como parte das negociações que envolveram a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a União iniciou um processo de transferências das terras para o estado de Roraima (Decreto 6754/2009, Medida Provisória 454/2009 e Lei 1149/2009). Através do programa "Roraima Legal" (2009), o Iteraima (Instituto de Terras de Roraima) foi encarregado de titular os imóveis rurais nestas áreas transferidas, abrindo a possibilidade de titular áreas de até 2500 hectares, sem a necessidade de aprovação pela assembleia legislativa32.

• 35 Iteraima and Femarh, Regularização Fundiária em Roraima. 2018: Boa Vista. p. 23

29Em 10 de maio de2017 o estado lançou o Programa de Regularização Fundiária de Roraima, denominado “Título Legal”, com a entrega dos primeiros títulos definitivos nas áreas que estão fora da faixa de fronteira. Até o início de junho de 2017, tinham sido emitidos 56 títulos definitivos, equivalentes a uma área de 4.480 hectares titulados (glebas Caracaraí e Cauamé). Em 2018, apenas 53 % das 33 glebas eram do domínio do estado. Além disso, a concessão de terras situadas na faixa de fronteira (68,9 % do território estadual) dependia em 2018 de autorização do governo federal35. Para estes casos, os processos dependem do aval da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), além do assentimento prévio por parte do Conselho de Defesa Nacional (CDN). Para contornar este problema de regularização fundiária dentro da faixa de fronteira, o Iteirama vinha emitindo Autorizações de Ocupações, desde 2015, de modo a não impedir a produção agropecuária.

• 36 O maior doador da campanha de Denarium foi Genor Luiz Faccio, ex-arrozeiro da TI Raposa (...)

30A ascensão de Bolsonaro ao poder marcou uma nova fase de expansão do agronegócio no Estado. Como dito anteriormente, o governador estadual (A. Denarium) eleito em 2018 e reeleito em 2022, é um empresário que investe na produção agropecuária no estado36. Como ele, investidores compram antigas fazendas com pastagens “degradadas” e plantam soja, ao mesmo tempo que aumentam a produção de carne. Até 2019, esse novo processo de concentração e de valorização fundiária era limitado em função de restrições impostas pelo Código Florestal (RL de 80 % na floresta contra 35 % no Lavrado) e da falta de perspectivas em termos de regularização fundiária, limites que vem sendo redefinidos por ações do atual governo federal.

• 37 SECOM RORAIMA, «Em visita a Roraima, Bolsonaro inaugura termelétrica e repassa (...)
• 38 Folha web, «Governo tem 317 mil hectares de terras para regularização fundiári (...)

31Em parceria com o governo estadual de Denarium, o ex-presidente atuou no sentido de desbloquear a regularização fundiária nessa faixa de fronteira, transferindo 3,9 milhões de hectares para o estado37, e simplificando os processos de titulação na faixa de fronteira (lei 14.004/2020). Bolsonaro anunciou essas medidas em um palanque montado para ele pelo governador em Boa Vista permitindo assim a titulação em áreas propícias a soja (por exemplo nas glebas Cauamé e Caracaraí, somando 1.148.317 ha38), sem passar pelo aval do Conselho de Defesa Nacional.

• 39 Almeida, Jeferson, et al., Leis e práticas de regularização fundiária no Estad (...)
• 40 Amaral, Marina «Dobradinha Denarium/Bolsonaro em Roraima mantém garimpo em Ter (...)

32Além disso, o governo estadual fez aprovar uma nova “lei de terras” em 2019 (lei 1.351/2019), que permite aos produtores adquirir até 2,5 mil hectares em municípios diferentes, enquanto antes o limite era de 1,5 mil hectares. A lei derrubou também a exigência de um único título por produtor e reduziu de 2009 para 2017 o tempo exigido para a comprovação da posse. Além do mais, essa lei permite descontos em venda de áreas públicas que podem chegar até 85 % para quem invadiu e desmatou a área39. Tais medidas permitem uma valorização das fazendas, principalmente aquelas situadas ao longo da rodovia 174 (Manaus-Boa Vista), onde se expande a fronteira agrícola40.

• 41 De acordo com a Lei 12.651/2012 (Código florestal), art. 12, § 5°, o poder público estad (...)
• 42 O Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) é um instrumento da Política Nacional do Meio Amb (...)
• 43 Teixeira, Amanda, «Lei que institui Zoneamento Ecológico-Econômico em Roraima (...)

33Estas reformas coincidem com um desmantelamento da política ambiental estadual muito recente, no intuito de reduzir a porcentagem de Reserva Legal nas áreas florestais do Estado de 80 % para 50 %. Primeiramente, o governo estadual aprovou lei 1.704/2022, que prevê a recategorização da Área de Proteção Ambiental do Baixo Rio Branco em Parque Estadual e Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Isso permitiu que o Estado tivesse no mínimo 65 % de sua superfície em Unidades de Conservação de domínio público e TIs, uma das condições legais para diminuir a RL no restante do estado41. A segunda condição era o estado ter um Zoneamento Ecológico Econômico aprovado. Em agosto de 2022, o governo estadual aprovou o ZEE42 que tramitava na Câmara Legislativa estadual desde 2009 (Lei Complementar 323/2022). Além do governador de Roraima, que sancionou a Lei, estiveram presentes durante o evento [de assinatura da lei], autoridades e representantes de cooperativas do setor do agronegócio. Durante a cerimônia, o governador afirmou: "Com esta lei sancionada, o ZEE permite que Roraima reduza de 80 % para 50 % as áreas de reserva legal. Nosso objetivo é deixar todos os produtores, agricultores e pecuaristas trabalhando dentro da legalidade”43.

• 44 Para estimar o desmatamento potencial em função das mudanças nas regras da Reserva (...)
• 45 A inclusão das áreas de APP no cálculo demandaria uma modelagem mais complexa, um esforç (...)
• 46 Para construir o mapa de cenários para expansão da soja em Roraima utilizamos como (...)

35Essas reformas representam um incremento potencial de 1,6 milhão de hectares de floresta passível de desmatamento legal no estado44. De acordo com nossa estimativa, existem cerca de 5.289.403 hectares de floresta localizadas em áreas sem restrição especial em Roraima. Caso o percentual se mantenha em 20 % de desmatamento legal, poderiam ser derrubados aproximadamente 1.057.880 hectares. Caso aumente para 50 %, seriam 2.644.701 de hectares (sem considerar as áreas de APP45). Além disso, a área de expansão mais provável da soja é estimada em 400 mil ha (figura 5)46. Nesse processo, áreas de pastagens degradadas serão convertidas em lavouras de soja e a fronteira pecuária será "empurrada" para áreas de vegetação natural.

• 47 Amaral, Marina «Dobradinha Denarium/Bolsonaro em Roraima mantém garimpo em Terra Yanomam (...)

37No último quadriênio, a “dobradinha” Denarium/Bolsonaro incidiu principalmente sobre dois processos indissociáveis e fundamentais para atrair investidores do agronegócio na região: a regularização fundiária e ambiental. As parcerias entre o governo federal, o governo estadual e as empresas do setor do agronegócio permitiram pôr em prática as reformas do Código Florestal (2012) e implementar uma política de regularização fundiária. São reformas profundas dos quadros institucionais, legislativos e da estrutura fundiária do estado. “É o fim dos entraves para o crescimento de Roraima”, comemorou o governador, que planeja a expansão dos cultivos de soja no estado com o barateamento da energia elétrica47.

• 48 Castree, Noel, «Neoliberalising Nature: The Logics of Deregulation and Reregul (...)

38O “desmantelamento” ambiental associado à expansão da soja em Roraima se manifesta, assim, com ações de desregulação e de re-regulação, características de um fenômeno que alguns chamam de “neoliberalização da natureza”48, onde o estado age para abrir oportunidades de privatização e apropriação através de regulamentação. Do ponto de vista metodológico, identificar as lógicas agroeconômicas e espaciais dos produtores do agronegócio é um passo importante tanto para interpretar estas mudanças legais e institucionais, quanto para avaliar suas consequências socioambientais.

• 49 O Globo RR, «Ibama multa fazendeiros em R$ 103 mil por despejo de agrotóxicos em comunid (...)

39Estas reformas deixam vislumbrar muito desmatamento e poluição (ex. glifosato), pois a expansão da soja se apoia sobre um processo de concentração fundiária das áreas florestais associado à integração soja/pecuária. No Lavrado, por outro lado, o impacto da expansão da soja no entorno das terras indígenas já é relatado como um problema e denunciado ao Ibama pelas organizações indígenas49. Tudo indica o início de uma nova fase de expansão agroextrativa no norte da Amazônia brasileira, situada no coração da bacia Amazônica, e não apenas nas suas bordas, como no passado. Por outro lado, há fortes contradições entre os discursos de legitimação desta atividade e seus impactos reais, tanto do ponto de vista econômico como socioambiental, o que abre novas frentes de pesquisa científica e de mobilização da sociedade civil organizada.