• 2 Sabourin, Eric et al. “Le démantèlement des politiques publiques rurales et environnemen (...)

1Desde meados dos anos 2010, o Brasil passou por importantes transformações econômicas e políticas que levaram a um retrocesso na implementação de políticas públicas em áreas como segurança alimentar e nutricional, proteção social, desenvolvimento territorial, gestão hídrica e controle do desmatamento. Tais políticas, por sua vez, eram caracterizadas por instrumentos participativos, integração de grupos historicamente marginalizados e uma articulação entre entidades federativas e subnacionais2.

• 3 Bauer, Michael W. (dir.), Dismantling public policy: preferences, strategies, and effect (...)
• 4 Avritzer, Leonardo. "The Rousseff impeachment and the crisis of democracy in Brazil". Cr (...)

2Este retrocesso tem suas raízes na contenção orçamentária adotada durante a gestão de Dilma Rousseff, uma resposta direta aos impactos da crise financeira global de 2008. A conjuntura política alterou-se significativamente com o impeachment de Rousseff em 2016, fenômeno que se exacerbou com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Durante seu governo, observou-se o desmonte de políticas públicas – caracterizado por uma diminuição tanto na densidade quanto na intensidade das políticas3 – como uma estratégia política. O governo Bolsonaro centralizou a tomada de decisões e a implementação de políticas, excluindo organizações da sociedade civil, governadores e prefeitos do processo político4.

• 5 Barros, Thomás Zickman de, Do que falamos quando falamos de populismo, São Paulo-Companh (...)

3Discursos populistas foram mobilizados para deslegitimar políticas vigentes. Embora o conceito de populismo encontre divergências na literatura, devido às variadas experiências populistas em diferentes países, ele pode ser entendido como ideologia, discurso ou lógica política que molda identidades coletivas. Uma característica marcante do populismo é a contraposição entre "povo" e "elite", manifestando-se de maneiras variadas. No contexto de Bolsonaro, a crise econômica foi retratada como uma crise moral, atribuída à corrupção de elites administrativas, cívicas e intelectuais - incluindo a burocracia estatal, entidades civis, imprensa, artistas e defensores de grupos marginalizados. Os efeitos dessa crise foram interpretados como evidência da inaptidão do Estado sob gestão do Partido dos Trabalhadores5.

• 6 Andrade, Daniela, “Populism from above and below: the path to regression in Brazil“, (...)
• 7 Abers, Rebecca; Rossi, Frederico e Von Bülow, Marisa, “State-society relations in (...)
• 8 Ribeiro-Silva, Rita de Cássia et al., “Implicações da pandemia COVID-19 para a (...)
• 9 Rede Penssan, “National Survey of Food Insecurity in the Context of the Covid-19 Pandemi (...)

4As estratégias de desmonte e seus efeitos vêm sendo amplamente discutidas na literatura recente. A desregulamentação ambiental resultou em um aumento sem precedentes nas taxas de desmatamento, incêndios florestais, poluição por pesticidas e conflitos fundiários6. Adicionalmente, o enfraquecimento do Sistema Nacional de Saúde, somado ao negacionismo frente à pandemia da COVID-19, colocou o Brasil entre os países com o maior número absoluto de mortes7. A suspensão dos Distritos Sanitários Especiais afetou profundamente as populações indígenas, em especial durante a pandemia8. Do mesmo modo, o declínio na proteção social e alimentar, aliado ao aumento da inflação no período pandêmico, intensificou a insegurança alimentar no país9.

• 10 Bauer, Michael W et al. (dir.), Democratic Backsliding and Public Administrati (...)

5Diante dos persistentes ataques às instituições democráticas e das abordagens populistas às crises econômica, sanitária e alimentar, nos questionamos sobre as respostas possíveis e a resiliência das burocracias estatais, dos atores políticos e, de forma geral, do regime político10.

• 11 Projeto Artimix [ANR-17-CE03-0005].

6Neste contexto, este estudo examina os determinantes e os limites da resiliência face ao desmonte de políticas públicas democráticas. Com base em um estudo de caso no Semiárido nordestino (Figura 1), o trabalho analisa duas políticas inter-relacionadas envolvendo a participação de atores não estatais: i) a governança das águas na bacia do rio São Francisco e ii) o acesso à água e aos alimentos agroecológicos. Enfatizamos as redes informais de políticas públicas e as interações entre estas redes e as instituições formais. Os dois casos selecionados estão situados na região semiárida. Esta pesquisa tem como base entrevistas realizadas pelos autores entre 2018 e 2019 (N = 88)11, complementadas em 2022 com mais 15 entrevistas, análise de documentos institucionais, participação em reuniões e análise de atas (a Sala de Crise da Bacia do Rio São Francisco, eventos on-line de segurança alimentar e agroecologia).

• 12 Para uma revisão da resiliência, ver:
  Capano, Gilberto e Woo, Jun Jie, “Resili (...)
• 13 Folke, Carl et al., “Resilience Thinking: Integrating Resilience, Adaptability and Trans (...)

7A noção de resiliência é conceito explorado por várias correntes de literatura acadêmica12. Tradicionalmente associada aos sistemas socioecológicos, ela diz respeito, sobretudo, à capacidade de um sistema se adaptar a perturbações externas e internas13. A distinção entre o que é externo ou interno varia conforme a disciplina e o objeto de estudo. Por exemplo, em Ecologia, intervenções humanas são consideradas fatores externos à dinâmica dos ecossistemas. Já na Ciência Política, desastres naturais e crises econômicas e sanitárias são vistos como choques externos, enquanto reformas e rupturas políticas são tidas como internas. Neste trabalho, abordamos a resiliência diante de diversos choques sob uma perspectiva política. Enquanto a crise econômica e a pandemia foram usadas como justificativas para o desmonte de políticas e adoção de medidas antidemocráticas, esse desmonte exacerbou os impactos sociais, econômicos e ambientais dessas crises.

• 14 Cleaver, Frances e Whaley, Luke, “Understanding process, power, and meaning in (...)

8No contexto de organizações internacionais, a resiliência tornou-se um mantra para governar a complexidade através de uma perspectiva normativa. No entanto, análises críticas apontam a falta de elementos cruciais do processo político nessa abordagem, como poder, conhecimento e agência14. Estes serão os pontos-chave deste estudo.

• 15 Capano, Gilberto e Woo, Jun Jie, “Resilience and robustness in policy design: a critical (...)

9Do ponto de vista funcionalista, o conceito de resiliência é considerado insuficientemente claro e operacional15. Estudos nessa perspectiva defendem a noção de robustez, que é definida como a capacidade de manter as funções de um sistema (seja ele político, organizacional ou institucional) em períodos de incerteza. Essa literatura busca identificar um equilíbrio ideal entre rigidez e flexibilidade na formulação das políticas. Ainda que reconheçam a importância da política e do poder, esses estudos dão ênfase à eficiência e eficácia dos arranjos de governança, relegando a política a um papel secundário.

• 16 Bauer, Michael W et al. (dir.), Democratic Backsliding and Public Administrati (...)

10Em paralelo, uma literatura emergente tem se debruçado sobre a resiliência das burocracias estatais diante da erosão democrática16. Esses trabalhos distinguem mudanças políticas iliberais, promovidas por líderes populistas, de uma transferência regular de poder. Considerando que os burocratas são atores com certa autonomia, eles desenvolvem variadas respostas às mudanças de curto prazo. Mesmo que não sejam vistas, por si só, como fontes de resistência contra regras iliberais, certas características institucionais podem tornar essas burocracias mais resilientes.

• 17 Almeida, Debora Rezende de, “Resiliência Institucional: para onde vai a participação (...)
• 18 Araújo, Suely Mara Vaz Guimarães de, “Environmental Policy in the Bolsonaro Go (...)
• 19 Guedes-Neto, João Victor e Peters, Guy B., “Working, Shirking, and Sabotage in Times of (...)

11Estudos voltados para o Brasil convergem com esta literatura. A resiliência é frequentemente entendida como resistência política ao desmonte promovido pelo governo Bolsonaro17. Embora esses estudos estejam especialmente focados no processo de desmonte, suas fases e consequências, indicam potenciais pontos de resistência, como os poderes legislativo e judiciário18, a burocracia estatal19 e novas alianças políticas subnacionais e internacionais.

• 20 Sotirov, Metodi e Storch, Sabine, “Resilience through policy integration in Europe? (...)

12Este artigo aborda a resiliência sob duas perspectivas políticas: i) a capacidade de contrapor ou atenuar mudanças adversas, fundamentada na habilidade dos atores em manter coalizões fortes e ideologicamente coesas20; e ii) a habilidade dos atores em sustentar uma ação pública (democrática) em determinadas áreas de políticas públicas. Enfatizamos as dimensões política e cognitiva do processo político, centrando na ação coletiva durante a execução de políticas.

• 21 Milhorance, Carolina, “Policy dismantling and democratic regression in Brazil (...)

14Estudos anteriores indicaram que, desde o início da década de 2010, medidas de austeridade fiscal e recuperação econômica justificaram reformas estatais21. Entretanto, o governo Bolsonaro utilizou essas justificativas para impulsionar mudanças mais profundas nas bases político-institucionais do Brasil. Essas alterações envolveram a redefinição da concepção de cidadania, dos modelos de desenvolvimento e da natureza democrática do país. Incluíram também a revisão dos direitos históricos de grupos minoritários e populações indígenas, a desregulamentação ambiental, a adoção de um modelo de desenvolvimento extrativista e a extinção de várias instâncias democráticas e participativas. Este último aspecto é o foco deste artigo e será discutido nesta seção.

• 22 Niederle, Paulo et al., “Ruptures in the agroecological transitions: institutional cha (...)

21Entretanto, desde 2011, este modelo de implementação enfrentou críticas quando o governo optou por cisternas de polietileno em detrimento das de placa, buscando ampliar sua distribuição. Essa escolha evidenciou discordâncias políticas, e a ASA perdeu sua influência na implementação da política de acesso à água. O impeachment de Rousseff impactou profundamente o Programa Cisternas, com cortes de recursos e chamadas públicas que não priorizavam entidades locais. Ademais, ONGs foram criminalizadas, acusadas de obter ganhos ilícitos com verbas públicas. Tal criminalização foi também notada em aquisições públicas de alimentos de agricultores familiares22. Embora alegassem corte de gastos como razão inicial, a retórica populista sobre o risco de uma suposta influência "comunista" da sociedade civil na gestão pública foi posteriormente enfatizada.

• 23 Avritzer, Leonardo. "The Rousseff impeachment and the crisis of democracy (...)

22Embora o Congresso fosse conservador, o alinhamento com o Poder Executivo não era automático durante o governo Bolsonaro. Muitos projetos, que necessitavam da aprovação do Congresso, estagnaram no primeiro ano do governo. Nesse cenário, as negociações relacionadas à distribuição do orçamento – por meio de emendas parlamentares e nomeações políticas – tornaram-se essenciais para garantir apoio político23.

• 24 Ferreira, Flávio, “Bolsonaro desmonta programa de cisternas e favorece uso politico de (...)

23Essa dinâmica acentuou a politização da burocracia estatal. Um exemplo disso foi a utilização crescente de emendas parlamentares para manter a execução do Programa Cisternas, face à diminuição de seus recursos. Tal opção favoreceu a disseminação de cisternas de plástico por entidades público-privadas que não estavam originalmente vinculadas ao programa. Além disso, favoreceu a seleção de beneficiários baseada no apoio político aos parlamentares responsáveis pelas emendas24.

• 25 Niederle, Paulo et al., “Ruptures in the agroecological transitions: institutional cha (...)
• 26 Schmitt, Claudia Job et al., “Fortalecendo redes territoriais de agroecolo (...)

24Ao mesmo tempo, os movimentos agroecológicos foram deslegitimados, levando à exclusão de termos como "agroecologia" e "mudança climática" das políticas nacionais25. O programa Ecoforte, um instrumento inovador da política de agroecologia voltado ao fortalecimento de redes territoriais de agricultores, organizações da sociedade civil e servidores26, foi paralisado e seu componente de compras públicas de alimentos foi reduzido.

• 27 Abers, Rebecca; Rossi, Frederico e Von Bülow, Marisa, “State-society relations in unce (...)
• 28 Rede Penssan, “National Survey of Food Insecurity in the Context of the Covid-19 Pande (...)

25Durante a pandemia da COVID-19, os movimentos sociais foram não apenas excluídos da implementação de políticas sociais e alimentares, mas também confrontaram um forte discurso de negação da crise sanitária27. Em 2021, devido à crise econômica, inflação dos alimentos, fechamento de escolas e mercados alimentícios e ao enfraquecimento de políticas públicas, mais de 50% das famílias brasileiras enfrentaram insegurança alimentar28.

• 29 Sabourin, Eric et al. “Le démantèlement des politiques publiques rurales e (...)
• 30 Morais de Sa e Silva, Michelle, “Beyond ordinary policy change: Authoritar (...)

26Essas transformações foram acompanhadas por uma captura parcial da burocracia estatal. Em 2020, mais de 1.500 militares foram nomeados para cargos nos ministérios, substituindo os funcionários técnicos em posições gerenciais29. Isso levou a uma atmosfera de intimidação dos servidores públicos, resultando na paralisação da tomada de decisões30.

• 31 Bauer, Michael W. e Becker, Stefan, “Democratic Backsliding, Populism, and Public (...)

28Esta seção aborda os fatores de resiliência face ao desmonte previamente discutido. Embora a literatura sobre retrocesso democrático ressalte a importância da administração pública, do apoio político e da confiança nas instituições como pilares de resiliência31, este estudo traz uma perspectiva adicional: o papel das interações informais e práticas entre redes de atores estatais e não estatais.

• 32 Assim que a crise termina, a sala passa a ser chamada de Sala de Acompanhamento.
• 33 Lima, Antonio Augusto, “Condições de Operação do Sistema Hídrico do Rio Sã (...)

29As entrevistas revelaram uma percepção comum de que a política nacional de recursos hídricos foi inicialmente concebida com foco em decisões de médio e longo prazo, tendo em vista as vazões médias dos rios. Apesar de seus avanços ao longo de mais de 25 anos, essa política não tinha uma estrutura específica para enfrentar as secas sazonais na região semiárida. Visando abordar essas situações de curto prazo, instituiu-se a Sala de Crise32, inicialmente voltada ao contexto do São Francisco33 (Lima, 2022), e depois estendida a outras bacias.

• 34 Abers, Rebecca e Keck, Margaret, Practical Authority: agency and instituti (...)

31Tal observação está alinhada com a visão de Abers e Keck's34 sobre os comitês de bacia: com base na experimentação e na resolução de problemas concretos, os atores estabelecem redes e capacidades que são fundamentais para construir confiança e organizar a colaboração futura. Os comitês de bacia hidrográfica são funcionam melhor quando seus membros têm uma interpretação clara de suas tarefas que os direciona a ações concretas. Segundo as autoras, a formação de instituições é um processo relacional que envolve a ação humana na disseminação de ideias e mobilização de recursos para colocá-las em prática.

• 35 OAE, “O Programa Nacional de Alimentação Escolar em tempos de pandemia” [o (...)

33A natureza informal da Sala de Crise permitiu que passasse despercebida pelo governo federal nas primeiras fases de seu desmonte. Esse aspecto diferencia a política de gestão hídrica daquela voltada ao acesso e produção de alimentos, que sofreu uma estratégia de desmonte mais agressiva, principalmente quanto às plataformas de coordenação entre Estado e sociedade civil. A desestruturação afetou a maioria dos programas voltados à alimentação e à agroecologia, em especial o PAA e o Ecoforte. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), apesar de ter sido menos afetado em um primeiro momento devido à sua vasta presença nas administrações municipais, viu as compras diretas de agricultores familiares decrescerem após a sociedade civil perder seu papel de monitoramento com a extinção do CONSEA35.

• 36 Abers, Rebecca; Rossi, Frederico e Von Bülow, Marisa, “State-society relat (...)

34Apesar deste cenário adverso, redes de atores estatais e da sociedade civil se mobilizaram durante a pandemia para estabelecer medidas emergenciais de segurança alimentar. Essas ações se somaram à mobilização política contra o desmonte36. Diferentemente das redes de gestão hídrica, a trajetória extensa e a densidade das redes de segurança alimentar, juntamente com sua coesão ideológica, potencializaram sua capacidade de mobilização. Os envolvidos nessas políticas, que contribuíram para sua concepção, lançaram várias iniciativas pautadas nos mesmos princípios de execução para enfrentar o desmonte.

• 37 FBB, “Campanha solidária Brasileiros pelo Brasil chega a 1 milhão de pessoas atendidas (...)

36Além disso, a Fundação Banco do Brasil (FBB) intensificou medidas humanitárias em colaboração com 97 entidades, seguindo o modelo de compra do PAA. Esta abordagem angariou R$ 58,3 milhões, beneficiando mais de um milhão de pessoas37. O objetivo era respaldar populações em situação de vulnerabilidade e apoiar a comercialização de agricultores afetados pela pandemia e pelas limitações do PAA. As entidades escolhidas para participar desta iniciativa já haviam colaborado com o Programa Ecoforte (parcialmente financiado e operacionalizado pela FBB). Essa decisão baseou-se na confiança estabelecida entre os envolvidos, facilitando a organização ágil da distribuição de produtos e a garantia dos pagamentos antecipados. Conforme relatado por um representante, existiu um processo de troca de experiências entre a FBB e essas entidades:

• 38 Abers, Rebecca, “Institutions, Networks and Activism Inside the State: Women’s (...)

39A construção de redes estratégicas envolvendo servidores públicos e atores não estatais é considerada um marco na formulação de políticas e a tomada de decisões em gestão de recursos hídricos. Redes pessoais, profissionais e de ativistas tornam-se fundamentais mesmo nas atividades mais tecnocráticas do Estado. No contexto do ativismo institucional, Abers38 analisou a ação coletiva voltada à defesa de causas dentro das estruturas estatais. Importante ressaltar que essas causas podem ser tanto progressistas quanto conservadoras. Diferentes posicionamentos no Estado e nas redes da sociedade civil oferecem aos burocratas distintas combinações de recursos e conexões. Esse modelo de ativismo é observado em várias áreas, como proteção ambiental e saúde feminina, sendo aplicável tanto à gestão hídrica quanto às políticas de acesso à água e alimentos.

• 40 FIDA, “Federative Republic of Brazil: Country Strategic Opportunities Programme”, Re (...)

46O "Projeto Plantando Resiliência Climática em Comunidades Rurais do Nordeste" recebeu aprovação do Green Climate Fund em 2020. Sob coordenação do FIDA, o projeto contribuiu para à continuidade de algumas atividades do Programa Cisternas, adequando-o como instrumento de adaptação às mudanças climáticas e, assim, tornando-o elegível para acesso a recursos internacionais. Atuante na região Nordeste desde a década de 1980, o FIDA tem apoiado políticas e iniciativas voltadas ao desenvolvimento rural. Diante do conflito entre o governo federal e os estaduais, o FIDA desenvolveu mecanismos, em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, para assegurar o financiamento, garantindo a "independência operacional dos estados participantes"40 e minimizando o risco de rejeição federal a empréstimos destinados aos estados.

• 41 CBHSF, "Marco Hídrico é tema de discussão de grupo de trabalho" [online], 15 de feve (...)

51Assim, o comitê do rio São Francisco começou a mobilizar seus membros em resposta às mudanças políticas. Inicialmente, buscou apoio interno e, em seguida, enviou uma carta de protesto ao MME. Através de declarações públicas, a formação de um grupo de trabalho e a realização de um seminário nacional, denunciaram a ausência de participação social na elaboração da proposta do Novo Marco Hídrico41. O comitê também promoveu a coordenação entre os secretários subnacionais. Conforme observado, "as próprias instâncias que têm seu papel questionado pela nova lei da água estão se fortalecendo à medida que se mobilizam para coordenar os atores e buscar soluções. Os conselhos estaduais de recursos hídricos voltaram a discutir a política, mantendo-se atentos aos desafios de sua implementação" (entrevista, março/2022). O comitê também atuou no Congresso Nacional na tentativa de obstruir o projeto de lei.

• 42 Hinterleitner, Markus e Sager, Fritz, “Policy’s role in democratic conflict management”, (...)

56Este artigo examinou características do desmonte antidemocrático observado no Brasil durante os anos 2010 e início dos anos 2020. Tal processo foi impulsionado pelo que Hinterleintner e Fritz42 denominam de "formas conflitivas de política", marcadas pelo populismo, polarização, exclusão de atores políticos e erosão de normas. O desmonte é compreendido aqui no cenário mais amplo de transformações políticas diante do avanço do conservadorismo. As três dimensões políticas (policy, politics, polity) encontram-se entrelaçadas neste contexto, evidenciando a necessidade de mais pesquisas. Embora o grau de institucionalização seja reconhecido por sua estabilidade e capacidade de resistir ao desmonte, isso não evita alterações em aspectos como orçamento, atores envolvidos, metas, instrumentos, instâncias decisórias e regras de funcionamento. Tais mudanças podem descaracterizar as políticas e, por consequência, o regime sustentado por elas.

• 43 Abers, Rebecca, "Institutions, Networks and Activism Inside the State: Women’s (...)

59Com base em Abers43, identificamos diversas combinações de recursos, sejam eles relacionais, institucionais, financeiros ou políticos. Na gestão hídrica do rio São Francisco, apesar do enfraquecimento das instâncias participativas desde 2019, a Sala de Crise passou inicialmente despercebida. Somente em 2020, diante da crise energética no Sul e Sudeste, os esforços para desmantelar a governança descentralizada da água se tornaram evidentes. Atores estatais e não estatais, comprometidos com a Sala de Crise e a Lei de Águas, mobilizaram recursos institucionais e políticos para proteger o sistema de gerenciamento de secas recentemente estabelecido e resistir a mudanças. A coalizão que sustenta este processo é fragmentada devido a divergências históricas sobre a prioridade da gestão hídrica na região. Esse aspecto contrasta com a coalizão de segurança alimentar, tradicionalmente caracterizada por laços mais estreitos, ação política unificada em níveis nacional e subnacional e uma clara convergência ideológica. Essa unidade facilitou uma mobilização ágil para estabelecer novos arranjos, identificar parceiros e se posicionar contra o governo federal. Contudo, essa rede também se tornou alvo direto de intensas estratégias de desmonte e deslegitimação.