1A desconfiança em relação à questão ambiental e climática chamou atenção durante a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018. Em entrevista para jornalistas em Rondônia, Bolsonaro disse: “se depender de mim eu saio do Acordo de Paris. [...] É porque o acordo de Paris fala que nós temos que perder a nossa Região Amazônica”. E finalizou: “Em nome da questão ambiental, em nome da questão dos direitos humanos, em nome da questão indígena, estão acabando com o Brasil”1. A desconfiança ambiental e climática é compartilhada também por seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Em janeiro do mesmo ano ele postou na sua conta no Facebook um vídeo em que está nos Estados Unidos, com neve ao fundo, no qual compartilha informação negacionista sobre o aquecimento global, elogia a saída de Trump do Acordo de Paris e arremata no fim: “Que aquecimento global é esse? Não deixe que o discurso, principalmente dos globalistas, matéria em cima de matéria, jogando essa mentira para vocês, que ela reste sedimentada como verdade”2. A desconfiança em relação à pauta ambiental continuou até o fim do governo Bolsonaro. Em seu primeiro discurso de abertura das Nações Unidas, em setembro de 2019, Bolsonaro proferiu: “rechaçamos as tentativas de instrumentalizar a questão ambiental ou a política indigenista, em prol de interesses políticos e econômicos externos, em especial os disfarçados de boas intenções”. Encaminhando-se para o fim do discurso, bradou um provérbio bíblico que se tornou um dos slogans do governo: “Nas questões do clima, da democracia, [...], tudo o que precisamos é isto: contemplar a verdade, seguindo João 8,32: 'E conheceis a verdade, e a verdade vos libertarás'”3.
- 4 É importante notar que os discursos que questionam as mudanças climáticas muitas vezes s (...)
- 5 Oreskes, Naomi, “The Scientific Consensus on Climate Change”. Science, v. 306, n. 5702, (...)
- 6 https://unfccc.int/documents/9064. (Acessado em janeiro de 2023)
2Percebe-se destas citações que o debate ambiental, no geral, e climático, em particular, são tratados com desconfiança profunda.4 Há insinuações conspiratórias, como se houvessem interesses pela Amazônia por trás do Acordo de Paris. Ou que o aquecimento global é uma mentira e uma tática para a concentração de poder por parte de grupos globais. Enfim, existe uma teoria da conspiração de fundo na qual a questão ambiental está inserida, uma crença de que esta agenda está sendo instrumentalizada para fins escusos, disfarçados, em prol de interesses políticos e econômicos externos que prejudicam o país. Todavia, essas insinuações conspiratórias vão em direção oposta a um forte consenso, tanto científico5, quanto político. Em 2015, o Acordo de Paris foi legitimado e assinado por 195 países no qual se lê: “as mudanças climáticas representam uma ameaça urgente e potencialmente irreversível para as sociedades humanas e para o Planeta”6.
3Assim sendo, diante este hiato entre a urgência e o negacionismo, como compreender essa atitude conspiratória em relação à agenda ambiental e climática pelo governo Bolsonaro? A hipótese deste artigo é a de que as teorias da conspiração ambiental-climáticas ajudaram a fomentar uma visão de mundo populista – isto é, a ideia de que há uma luta moral entre o ‘povo de bem’ contra uma ‘elite corrupta’ e de que o líder populista é o único representante legítimo deste povo porque representa seus valores morais e superiores. Portanto, busquei compreender o governo Bolsonaro e sua atitude negacionista e conspiratória pela chave do populismo e sua relação lógica com a teoria da conspiração.
- 7 Ver a edição especial sobre política climática, democracia e populismo, organi (...)
- 8 Lockwood, Matthew, “Right-wing populism and the climate change agenda: explori (...)
- 9 Miguel, Jean, “A ‘meada’ do negacionismo climático e o impedimento da governamentalizaçã (...)
- 10 Rajão, Raoni et al, “The risk of fake controversies for Brazilian environmental (...)
4Alguns textos já buscaram entender a relação de tensão entre o populismo atual e a mudança climática7, porém não esclarecem a relação com a teoria da conspiração. Lockwood sugere, sem aprofundar, que “o movimento populista tem sido solo fértil para teorias da conspiração. Como resultado de um conjunto global, invisível e altamente complexo de processos, a mudança climática é material ideal para teorias da conspiração”8. O tópico do negacionismo climático no Brasil é bem trabalhado por Miguel9, que o analisa como uma “meada” multilinear e descentralizada, que se constitui ao longo do tempo e se entrelaça em diferentes grupos e instituições. O autor demonstra como os fios dessa meada vão se estabelecendo dentro dos discursos do agronegócio, na política florestal brasileira, no liberalismo-conservador cristão e no bolsonarismo, e que acabam dando suporte a uma política antiambiental no Brasil. Em direção semelhante, o artigo de Rajão et al.10 examina as falsas controvérsias científicas produzidas por um pequeno grupo ativo de pesquisadores brasileiros (com liderança do Dr. Evaristo de Miranda) que tiveram um sério impacto nas políticas de desmatamento e mudanças climáticas – e como Bolsonaro frequentemente cita esses falsos estudos para justificar uma política antiambiental. Embora Miguel e Rajão et al. apresentem um caráter conspiratório no meio desses discursos e controvérsias, os autores não entram no debate sobre como o negacionismo climático conspiratório se encaixa ideologicamente com o populismo.
5Portanto, o objetivo principal deste artigo é analisar como as teorias da conspiração em torno da questão ambiental-climática são mobilizadas na construção de uma ideologia populista nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro. Mais especificamente, o objetivo do artigo consiste em entender (a) como esses discursos articulam uma estrutura típica da teoria da conspiração e (b) os elementos moralizantes que emanam dessas teorias da conspiração.
- 11 Müller, Jan-Werner, What is populism?, 1st edition, Philadelphia, University of Pennsylv (...)
- 12 Ibidem, p. 10
6O conceito de populismo que nos baseamos é o de Jan-Werner Müller em seu livro What it populism? porque ele nos ajuda a entender a relação entre populismo e teoria da conspiração. Para Müller o populismo é principalmente uma “particular imaginação moralista da política, uma maneira de perceber o mundo político”11. Esta percepção se baseia em “um conjunto de reivindicações distintas e tem o que se poderia chamar de uma lógica interna”12. Ao reconstruir a lógica do populismo de Müller, é possível perceber três reivindicações centrais e interligadas: (1) a política é uma luta moral entre o “povo de bem” contra uma “elite corrupta”; (2) a reivindicação de que o líder populista é o único representante legítimo desse povo porque representa e defende seus valores superiores; e (3) a noção de que grupos poderosos (“o sistema”) conspiram contra o líder e o povo. Tratam-se de três proposições que se retroalimentam, formando um círculo no qual “povo”, “líder” e “inimigos” estão conectadas, tracionando assim um movimento que cristaliza essa visão de mundo populista.
7De acordo com Müller, o populismo é antielitista e, principalmente, antipluralista. É antielitista porque define um povo moralmente puro e totalmente unificado contra elites que são consideradas corruptas ou de alguma forma moralmente inferiores. E é antipluralista porque os populistas afirmam que eles, e somente eles, representam o povo. Trata-se, portanto, de uma forma de política identitária, na qual “o povo” é definido por critérios morais e em contraposição àqueles que são imorais e, assim, não fazem parte do “povo de verdade”. É por isso que o populismo com frequência se alinha com o nacionalismo porque é fácil caracterizar essa “pureza popular” a partir de um sentimento identitário nacional. Nesse sentido, o populismo é principalmente antipluralista, ou seja, autoritário: a moralização exacerbada dessa luta do “bem” contra o “mal” produz inimigos do povo e políticos ilegítimos que devem ser tratados não como oponentes, mas sim como inimigos a serem expulsos do corpo político-nacional. Trata-se de uma lógica que está diretamente ligada com a teoria da conspiração.
- 13 Ibidem, p. 42
- 14 Runciman, David, Como a democracia chega ao fim. Tradução Sergio Flaksman, São Paulo, Ed (...)
- 15 Uscinski, Joseph, Conspiracy Theories: a primer, USA, Maryland, Published by Rowman e Li (...)
8Para Müller, “as teorias da conspiração não são uma adição curiosa à retórica populista; elas estão enraizadas e emergem da própria lógica do populismo em si”13. De forma semelhante, Runciman afirmou que “a teoria da conspiração é a lógica do populismo”14. E nas palavras de Uscinski: “teorias da conspiração se encaixam muito bem nas narrativas populistas porque as teorias da conspiração tendem a acusar as elites e postular uma forte narrativa maniqueísta em que os concorrentes políticos são inimigos do ‘povo’”15. Joseph Uscinski é nossa principal referência para compreender o conceito de teoria da conspiração. Como toda teoria, a teoria da conspiração busca explicar algo. A explicação que a teoria da conspiração oferece é a de que determinado evento ou circunstância tem como causa principal uma conspiração. Define-se conspiração como um grupo que trabalha em segredo para benefício próprio e contra o bem comum de uma forma que ameaça as regras estabelecidas e comete fraude generalizada. Em outras palavras, a teoria da conspiração é basicamente uma teoria acusatória e alternativa: ela acusa elites de conspirarem secretamente contra o bem comum; e é alternativa porque contradiz a versão oficial atestada pelas autoridades epistemológicas – como agências governamentais, mídia, cientistas, universidades, especialistas, etc. Uma teoria da conspiração, portanto, sugere que atores poderosos buscam se beneficiar às custas do público e que as autoridades epistemológicas são pouco confiáveis, potencialmente corruptas e ativamente envolvidas em enganar as pessoas.
- 16 Wodak, Ruth, “Protecting boarders and the people: the politics of exclusion”, in The Pol (...)
- 17 “Mito” é um termo usado com frequência pelos apoiadores de Bolsonaro para descrevê-lo.
9Na lógica populista, se o líder populista é o único e verdadeiro representante da moral do povo, então uma eventual derrota eleitoral ou um fracasso de suas políticas só poderiam ser resultado de uma conspiração que impedem que os verdadeiros resultados apareçam. Por esse viés, a teoria da conspiração aparece como um “escudo” no qual o populista pode se colocar em modo defensivo, no lugar de vítima e de não responsabilidade por perdas em eleições ou por baixa desempenho como governante. Por outro viés, a teoria da conspiração também aparece como uma “arma” propositiva em que acusa os planos imorais das elites e aponta os inimigos do povo. Nesse sentido de arma propositiva, Ruth Wodak argumenta que o populismo e as teorias da conspiração estão inseridos dentro da lógica da “política do medo”, pois são instrumentos discursivos potentes para a mobilização popular, precisamente porque nelas estão embutidas o sentimento de ameaça16. Em resumo, a teoria da conspiração se alinha com o populismo a partir da noção de política identitária, do embate moral entre grupos, do maniqueísmo e do medo que mobilizam as paixões em torno de uma “teologia política” no qual o líder político é considerado uma “personalidade mitológica”17 e protetor da nação e do seu povo.
10Trabalhado brevemente o conceito de populismo e teoria da conspiração, estamos em melhor posição para adentrar na parte metodológica.
- 18 Magalhães, Izabel; Martins, André; Resende, Viviane. “Pesquisa qualitativa, cr (...)
11O procedimento metodológico se baseou em uma análise de conteúdo qualitativa de 36 textos – isto é, pronunciamentos orais ou documentos escritos18 – de cinco atores da alta cúpula do governo Bolsonaro.
- 19 Junior, Wilson. “Análise de Conteúdo”, In: Duarte, Antonio; Barros, Jorge (Org (...)
12A análise de conteúdo é uma técnica de pesquisa para a descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação. De acordo com Junior19, quatro são as etapas que constituem este método: (1) definição dos textos a serem analisados; (2) definição das categorias que iluminam o conteúdo a ser captado; (3) codificação desses textos a partir da decomposição das citações chaves que qualificam determinada categoria; e (4) formulação de inferência gerais e especificas das mensagens analisadas.
13O critério para selecionar os cinco atores teve como base a proximidade e a influência exercida nos altos escalões do Poder Executivo, quais sejam: (1) o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro; (2) seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, pela sua proximidade com o presidente e pelo seu interesse com o tema das relações internacionais20, entre elas a questão ambiental e climática; (3) Filipe Martins, chefe da assessoria internacional do presidente da República desde o início do governo; (4) o ex-ministro das Relações Internacionais, Ernesto Araújo, considerado um “brilhante intelectual” por Bolsonaro21; e por fim, (5) Olavo de Carvalho, influente ideólogo tanto para o governo quanto para sua base de apoio, admirado não apenas pelo presidente, mas também pelos outros três atores citados acima.
14Os textos foram selecionados a partir de dois critérios: (1) que abarquem o tema ambiental e/ou climático – no caso brasileiro, a Amazônia em especial – e que, necessariamente, (2) transmitam uma mensagem conspiratória, isto é, a ideia de que um grupo de indivíduos poderosos agiram, agem ou vão agir secretamente, se utilizando do tema ambiental para benefício próprio e contra o bem comum. A partir de leitura de jornais digitais e pesquisa em sites de busca na internet, foram identificados 36 textos dessa natureza (22 textos de Bolsonaro; 2 de Eduardo Bolsonaro; 1 de Martins; 6 de Araújo e 5 de Carvalho). Tais textos foram retirados de discursos, postagens nas redes sociais, palestras, entrevistas, blogs, artigos de opinião e vídeos do YouTube em um recorte de tempo entre 2018 e 2020 – ou seja, o ano eleitoral e os dois primeiros anos do governo. Apenas os textos de Carvalho são anteriores (entre 2004 e 2012), pois foram retirados unicamente de seus artigos em jornais compilados no livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, publicado em 2013. Esse livro foi escolhido porque trata-se de uma obra síntese do pensamento de Carvalho e também pelo seu valor simbólico, pois o presidente Jair Bolsonaro, em seu primeiro discurso após eleito, colocou à mostra sobre sua mesa quatro livros inspiradores: a Constituição, a Bíblia, as Memórias de Churchill e o referido livro de Olavo de Carvalho.22 Nota-se que os 36 textos não configuram uma varredura completa de todos os textos proferidos por esses cinco atores entre 2018 e 2020. Porém, acredita-se que estes encontrados constituem um número representativo capaz de transmitir uma ideia geral das teorias da conspiração ambiental-climática da alta cúpula do governo.
- 23 Cook, John; Washington, Haydn. Climate Change Denial: heads in the sand, 1st e (...)
15A fim de lançar luz sobre o conteúdo dos discursos conspiratórios, seis foram as categorias definidas nas quais a análise se atentou. As quatro categorias que iluminam uma teoria da conspiração se basearam no livro de Joseph Uscinski, Conspiracy theory: a primer, de 2020. Em sua obra, Uscinski argumenta que as teorias da conspiração são diversas, mas compartilham de uma estrutura comum: (1) os conspiradores, (2) as metas que os conspiradores pretendem alcançar, (3) as vítimas dos conspiradores e (4) as estratégias empregadas para alcançar a meta. A 5ª categoria foi negacionismo, para a qual o conceito apresentado por Cook e Washigton23 nos serviu de guia. Para extrair a mensagem moralizante que emana das teorias da conspiração e do negacionismo, foi feita também uma 6ª categoria denominada moralismo.
- 24 Para essas tabelas, ver o capítulo 3, in Behr, Klaus. A conspiração do clima: populismo (...)
- 25 Ibidem.
16O processo de codificação dos 36 textos foi feito com o uso do software de análise de dados Atlas.ti. O Atlas.ti é uma ferramenta que facilita o tratamento de dados qualitativos de diferentes fontes documentais. Trata-se de um programa que permite uma análise de conteúdo qualitativa dos textos ao inserir um ou mais códigos para cada citação destacada, e que, ao final, podem ser analisados em perspectiva e por meio de tabelas comparativas entre os “códigos” e os “documentos” feitas pelo próprio programa. A partir dessas tabelas24, foram feitos gráficos para cada categoria, para termos uma visão geral dos resultados. Finalmente, observa-se que as fontes de todos os 36 textos utilizados se encontram em Behr25, no Anexo I, e todos os códigos e suas respectivas citações estão disponíveis no Anexo II. Em resumo, o Atlas.ti é uma ferramenta útil porque nos ajuda a identificar e sistematizar os conteúdos mais importantes que emanam dos 36 textos dos cinco atores. Especificamente, ele nos ajuda a capturar como a questão ambiental e climática está sendo mobilizada dentro de uma estrutura típica de teoria da conspiração e quais elementos moralizadores emanam desses discursos. Ao compreender a estrutura conspiratória e suas mensagens morais, estaremos mais aptos para compreender como essas teorias conspiratórias alimentaram uma visão de mundo populista no início do governo Bolsonaro.
- 26 Cook, John; Washington, Haydn. Climate Change Denial: heads in the sand, 1(...)
17Começando pela categoria “negacionismo”, foi possível captar os três tipos de negacionismo climático: da atribuição, da tendência e do impacto.26 A negação de um aumento das queimadas e do desmatamento na Amazônia também foi codificada. Importa dizer que em todas as instâncias de negacionismo analisadas, em nenhuma delas houve referência a artigos científicos revisado por pares, mas apenas a documentários, entrevistas no YouTube e alguns livros.
18De acordo com a figura 1, vemos que o código “negacionismo da atribuição”, isto é, a ideia de que o ser humano ou o CO2 não são responsáveis principais pela mudança do clima, ocorreu em 61 % dos casos. Já o “negacionismo da tendência”, a ideia de que a tendência de aquecimento não está acontecendo foi o 2º código mais repetido, com 18 % de ocorrências. É importante notar que em apenas dois momentos, em Araújo e Martins, há certa abertura para a aceitação do consenso científico do clima. Entretanto, nestes momentos, fica claro a desconfiança na instrumentalização política da ciência, como proferido por Martins em uma entrevista: “seja como for, independentemente do que a ciência diga [sobre a responsabilidade humana nas mudanças climáticas], a gente identifica claramente uma instrumentalização política disso”27.
Figura 1 – Categoria “negacionismo” e seus códigos.
Fonte: autor.
19O que a categoria “negacionismo” nos mostra é o seu lugar central na estrutura conspiratória. Ela funciona como uma base que sustenta toda a estrutura, porque se a verdade sobre a mudança climática ou as queimadas da Amazônia é questionável, errada, falsa ou manipulável, então a pressão interna e externa por fortalecimento da política ambiental-climática que sobre ela se assenta torna-se também questionável. Essa lógica é apresentada claramente por Ernesto Araújo, em uma citação que exemplifica tanto o código “negacionismo da atribuição” quanto o “negacionismo da Amazônia”:
No caso do Brasil, o raciocínio é o seguinte: há uma crise climática; essa crise climática catastrófica decorre do aquecimento global; o aquecimento global decorre das emissões de CO2; as emissões de CO2 decorrem do desmatamento; o desmatamento decorre da queima da Amazônia pelo Brasil; então “vamos invadir o Brasil”, como foi proposto em um artigo na Foreign Policy. É claro, tudo é bom e tudo é aconselhável contra um país que está destruindo o planeta. Guerra, sanções comerciais, o que mais? O fato é que muitos, senão todos os passos desse raciocínio são errados ou ao menos questionáveis. O Brasil não está queimando a floresta. Os incêndios estão na média. (grifo nosso)28
20Qual é a agenda política na qual a questão climática está sendo instrumentalizada é o que a categoria “meta” busca identificar. Conforme mostra a figura 2, foram encontrados um total de 73 ocorrências referentes a 7 códigos diferentes que podem ser agrupados em 3 grandes grupos. (1) uma meta contra o Brasil (45 %); (2) uma meta global (43 %); e (3) uma meta contra o indivíduo (12 %). A ideia principal que os códigos evidenciam é a busca por controle: seja um controle sobre a soberania do Brasil, sobre a política mundial, a cultura, a economia, um controle sobre os indivíduos no geral e a liberdade de expressão em particular.
Figura 2 – Categoria “meta” e seus códigos. Em verde o grupo de códigos “meta contra o Brasil”; em laranja o grupo “meta global”; e em amarelo o grupo “meta contra o indivíduo”.
Fonte: autor.
21A questão da soberania da Amazônia está no centro da preocupação de Bolsonaro, remetendo a ideia de que existe uma “cobiça de alguns países sobre a Amazônia”, de “interesses de muitos países outros nessa região” e de uma “agressão à nossa soberania”. Esta ideia é bem sintetizada nesta citação oriunda de uma entrevista a jornalistas, em que o presidente faz uma analogia entre a cobiça sobre a floresta e a cobiça sobre um corpo feminino: “O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer [...] Então falta a vocês, jornalistas, não todos, uma visão de Brasil. A Amazônia é dos brasileiros na cabeça dos europeus? [...] O que o outro mundo quer é preservar essa área pra eles explorarem um dia”29.
22Percebe-se que o código “controle político mundial” é um código que apareceu com destaque e com alto grau de ocorrência (15; 21 %). “Administração planetária”, “construção de um Estado mundial” e “sistema mundial totalitário” são alguns termos que Carvalho utilizou que qualificam o referido código. Por sua vez, é o ministro Ernesto Araújo quem mais soou o alerta sobre uma meta de dimensão global. Para Araújo, a ameaça que ronda é o aumento do poder, (a) do Estado sobre a economia, (b) dos órgãos internacionais e (c) da China:
Esse dogma [a ideologia das mudanças climáticas] vem servindo para justificar o aumento do poder regulador dos Estados sobre a economia e o poder das instituições internacionais sobre os Estados nacionais e suas populações, bem como para sufocar o crescimento econômico nos países capitalistas democráticos e favorecer o crescimento da China.30
23A categoria “conspiradores” buscou entender justamente os atores que estariam por trás dessas metas. Foram encontradas 101 ocorrências totais e, no geral, elas sugerem que os atores são externos – e quando internos, são contra os interesses nacionais.
24Um primeiro elemento de análise é que muitas vezes esses atores, grupos e elites se misturam e estão vinculados, como demonstra essa citação de Carvalho:
- 31 Carvalho, Olavo. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, Rio de Janeir (...)
Entre esses grupos [que conduzem o processo histórico] destacam-se, é claro, as famílias dinásticas, de origem nobre ou não, que hoje constituem o núcleo vivo da elite globalista. Quando essas famílias têm a seu serviço a classe acadêmica mundial, os organismos reguladores internacionais, o grosso das empresas de mídia, a rede planetária de ONGs e, por meio destas, até a massa de militantes enragés que imaginam combater aqueles que na verdade os dirigem, quem pode resistir a tanto poder concentrado?31
25Ou seja, em um parágrafo foram atribuídos três códigos na categoria conspiradores: elite internacional genérica (“elite globalista”); elite intelectual/ epistemológica (“classe acadêmica mundial”, “grosso das empresas de mídia”) e elite tecnocrática/ONGs (“os organismos reguladores internacionais”; “rede planetária de ONGs”).
Figura 3 – Categoria “conspiradores” e seus códigos.
Fonte: autor
26De acordo com a figura 3, das 101 ocorrências, enfatiza-se que a “elite internacional genérica” (“sistema”, “o primeiro mundo”, “alguns países”, etc) e a “elite intelectual/ epistemológica” foram as que mais apareceram, somando-se 56 vezes. Talvez o momento em que essa ideia conspiratória entre “elite intelectual/ epistemológica” e “elite tecnocrática/ONGs” tenha mais se sobressaído foi no episódio envolvendo o diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE), Ricardo Galvão, no qual foi acusado por Bolsonaro de manipular os dados sobre o aumento do desmatamento na Amazônia porque estaria a serviço de alguma ONG:
[a divulgação] de ontem, do INPE, é uma cópia de anos anteriores. Até mandei ver quem é o cara que está na frente do INPE, ele vai ter que vim aqui se explicar em Brasília, esses dados que passaram para a imprensa no mundo todo, que pelo nosso sentimento, não condiz com a verdade. Até parece que ele está a serviço de alguma ONG que é muito comum.32
27É curioso perceber como o código “esquerda/ comunismo” apareceu relativamente pouco (9 %) embora em algumas citações elas apareçam como atores centrais, como por exemplo nesta fala de Araújo: “A tática da esquerda consiste essencialmente no seguinte: sequestrar causas legítimas e conceitos nobres e pervertê-los para servir ao seu projeto político de dominação total. A causa ambiental é um bom exemplo”.33
28Enfim, entre os “conspiradores” nominalmente citados nos textos aparecerem Leonardo DiCaprio, Al Gore, George Soros, Macron, Merkel, Biden, Ricardo Galvão (diretor do INPE), além de países e organizações como a China, os europeus, Fundação Rockefeller, Fundação Ford, ONU e ONGs.
29A partir da codificação dos textos pelo prisma da categoria “vítimas” foram identificados três códigos: nação/ povo brasileiro (47 ocorrências); indígenas brasileiros (8 ocorrências) e população mundial (14 ocorrências) – como mostra a figura 4. Ou seja, manteve-se uma coerência: se os “conspiradores” são majoritariamente externos, então as “vítimas” tem caráter preponderantemente interno.
30Observou-se que Bolsonaro é o ator que mais denuncia e alerta sobre as potenciais vítimas da conspiração. Todas as suas codificações se concentram em torno do Brasil. Em 29 momentos, ele comenta como o país é alvo de ataques, como este trecho do discurso que fez na ONU em 2019:
Nesta época do ano, o clima seco e os ventos favorecem queimadas espontâneas e criminosas. [...] Problemas qualquer país os tem. Contudo, os ataques sensacionalistas que sofremos por grande parte da mídia internacional devido aos focos de incêndio na Amazônia despertaram nosso sentimento patriótico.34
- 35 Carvalho, Olavo. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota,, (...)
31Nos textos de Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo aparecem não apenas a nação, mas também outros povos do mundo. Em uma citação ilustrativa, Carvalho afirma que diversas propostas, entre elas “regulamentos ecológicos draconianos”, são impostas tanto sobre o povo brasileiro como todos os outros povos: “Nenhuma dessas propostas veio do povo brasileiro ou de qualquer outro povo. Nenhuma delas tem a sua aprovação. Isso não importa. Elas vêm sendo e continuarão sendo impostas de cima para baixo, aqui como em outros países”35. Em um discurso de 2019 na Heritage Foundation, Araújo é explícito de como o Brasil do governo Bolsonaro e os Estados Unidos do governo Trump são alvos do “sistema” que usa da questão climática como artilharia:
O sistema apontou as baterias das mudanças climáticas na direção do presidente Trump e do presidente Bolsonaro, porque são eles, principalmente, que lutam contra o sistema. O Brasil está fora do pacto globalista. Os Estados Unidos estão fora do pacto globalista. Então eles nos perseguem, tentando reduzir-nos e levar-nos de volta ao pacto.36
32É justamente essa noção de usar “as baterias das mudanças climáticas” como uma arma estratégica que iremos nos aprofundar na próxima seção.
Figura 4 – Categoria “vítimas” e seus códigos.
Fonte: autor.
33A categoria “estratégia” talvez seja a categoria mais importante. É ela que irá mostrar como a questão ambiental-climática é utilizada como “meio” de implementação da “meta”. Essa importância se demonstra justamente por ter sido a categoria que abarcou mais códigos (12) e com alto grau de ocorrências totais (163). A partir destes 12 códigos. Foi possível agrupá-los em três grupos que representariam as três principais estratégias de ação: ação via ideologização (77 %); ação via instituição (19 %) e ação via crime (4 %), conforme apresentado na figura 5.
34Ou seja, se o objetivo é controlar, então a melhor estratégia é por meio da ideologização da questão ambiental-climática. É neste sentido que o código “doutrinar”, ou seja, agir de modo a controlar via discurso, narrativas, pensamento, ideologias, foi o código mais frequente (33 %). Para usar alguns termos dos próprios atores, doutrinar significaria o uso de “técnica psicológica”37; da “questão da psicose ambientalista que existe para conosco”38, ou “mais do que ciência, o que se faz hoje em nome desse alarmismo climático é uma ideologia”39.
Figura 5 – Categoria “estratégia” e seus códigos. Em laranja o grupo de códigos “ação via ideologização”; em amarelo o grupo “ação via instituição”; e em verde o grupo “ação via crime”.
Fonte: autor.
35A estratégia de promover o alarmismo ambiental – seja climático (18 %), amazônico (12 %) ou do planeta (1 %) – também apareceu com frequência. Em uma citação significativa, Araújo demonstra como as categorias “doutrinar”, “promover alarmismo climático” e “promover alarmismo na Amazônia” estão inseridas dentro da lógica conspiratória dos meios para atingir os fins dos conspiradores, que seria a imposição de um controle socialista sobre a economia e a soberania das nações:
Após todas as experiências terríveis com o socialismo no mundo, como se pode sonhar com a imposição do controle socialista da economia em um país como os Estados Unidos, por exemplo? Nunca por meio do debate democrático normal, é claro. Somente por meio de uma declaração de emergência. “Crise climática!”, eles gritam. Como pode alguém, em tempo de paz, sonhar em infringir a soberania de um país como o Brasil com relação ao seu próprio território? Repetindo “a Amazônia está queimando”, uma e outra vez. Em razão da ideologia, desse grito primário de crise climática, “vamos salvar o planeta”40.
36O código “regulamentação política”, isto é, a ideia de que os acordos políticos internacionais e as políticas públicas nacionais de proteção ambiental são suspeitas, foi preponderante em Jair Bolsonaro. Em resposta ao jornalista inglês Dom Phillips, em 19 de julho de 2019, jornalista assassinado na Amazônia em junho de 2022, é possível perceber como aparece ao mesmo tempo os códigos “promover alarmismo na Amazônia” e “regulamentação política” e como ambos estão interligados, porque só existe proteção ambiental se há ameaça:
Primeiro, você tem que entender que a Amazônia é do Brasil, não é de vocês, tá? A primeira resposta é essa daí, tá certo? A gente sabe do interesse mundial pelo que resta do planeta, basicamente a Amazônia. Eu não tenho provas, mas o interesse em criar agora uma grande área de preservação da Amazônia, de 136 milhões de hectares, se discute lateralmente quando há essas reuniões de clima aí pelo mundo afora. E como disse no começo, se toda essa devastação que vocês nos acusam, que estamos fazendo e que já foi feita no passado, a Amazônia já teria sido extinta, já seria um grande deserto.41
37Ou seja, o alarmismo irreal sobre a região (“toda essa devastação que vocês nos acusam [...] a Amazônia já teria sido extinta”) é o que justificaria eles pressionarem “em criar agora uma grande área de preservação da Amazônia”. Este excerto é ilustrativo também porque demonstra como existe uma desconfiança sobre “essas reuniões de clima aí pelo mundo afora”. O presidente acusa, mesmo admitindo não ter provas, como são nessas reuniões do clima que “se discute lateralmente”, ou seja, às escondidas, interesses escusos contra o Brasil por meio da criação de grandes áreas de preservação que prejudicam o potencial econômico do país.
38Enfim, as cinco categorias analisadas (“negacionismo”, “meta”, “conspiradores”, “vítima” e “estratégia”) nos dão um panorama geral sobre a lógica conspiratória ambiental-climática. Falta, por último, analisar a categoria “moralismo” e entender as mensagens morais emanadas por estas teorias conspiratórias.
- 42 Lago, Miguel. “Como explicar a resiliência de Bolsonaro?” In Starling; Lago; Bignotto, (...)
39A categoria “moralismo” é uma categoria central e de forte presença em todos os textos. O termo “moralismo” está alinhado com a noção de Miguel Lago: “um julgamento especulativo derivado de normas de comportamento”. Trata-se de uma operação lógica dicotômica na qual “a moral opera a partir de bem/mal”42. Nesta categoria, foram encontrados 12 códigos e um total de 359 ocorrências (figura 6) nos quais duas mensagens principais podem ser inferidas: (1) é preciso desmascarar a instrumentalização política da questão ambienta-climática; (2) e é preciso resistir contra essa instrumentalização e seu projeto de poder.
40Mais uma vez, Araújo é um ator que se destaca. Em uma citação significativa é possível perceber uma forte carga moral:
O climatismo é basicamente uma tática globalista de instilar o medo para obter mais poder. O climatismo diz: “Você aí, você vai destruir o planeta. Sua única opção é me entregar tudo, me entregar a condução de sua vida e do seu pensamento, sua liberdade e seus direitos individuais. Eu direi se você pode andar de carro, se você pode acender a luz, se você pode ter filhos, em quem você pode votar, o que pode ser ensinado nas escolas. Somente assim salvaremos o planeta. Se você vier com questionamentos, com dados diferentes dos dados oficiais que eu controlo, eu te chamarei de climate denier e te jogarei na masmorra intelectual. Valeu?”43
41Percebe-se da citação como há uma noção de desmascaramento acusatório e que podem ser exemplificados a partir de quatro códigos: (1) “doutrinadores” porque buscam utilizar a ideologia da mudança climática, para manipular as pessoas; (2) “autoritários” porque buscam “instilar o medo para obter mais poder” e controlar tudo, “sua liberdade e seus direitos individuais”; são (3) “monopolistas do debate” pois controlam os dados oficiais e chamam de “climate denier” aqueles que ousam questionar; e por fim, são (4) “desqualificados” justamente porque caricaturizados de forma exagerada, ao ponto de quererem controlar até mesmo se as pessoas podem “acender a luz”.
Figura 6 – Categoria “moralismo” e seus códigos. Em laranja o grupo de códigos “desmascarar”; e em amarelo o grupo “resistir”.
Fonte: autor.
42A acusação de que há “hipocrisia” na questão ambiental e climática contra o Brasil é um fator que traz forte sentimento de indignação. Bolsonaro foi praticamente o único ator para o qual esse código apareceu. Sua acusação gira em torno de como o Brasil é exemplo de política ambiental, enquanto que os europeus são hipócritas em suas críticas sobre o aumento do desmatamento. Na mesma resposta que deu para Dom Phillips, Bolsonaro expõe esse código “hipocrisia” e como a partir dela questiona se existe real preocupação com a Amazônia ou se, na verdade, não haveria um “interesse futuro” sobre a região:
Eu repetindo aqui, nós preservamos mais que todo o mundo, nenhum país do mundo tem moral para falar sobre a Amazônia, nenhum país do mundo tem moral para falar. Vocês destruíram o seu ecossistema, praticamente, e nós não estamos no mesmo caminho de vocês, agora só cobram de nós. [...] Eu até perguntaria para vocês, por que tanta ONG na Amazônia, já que são tão preocupados com meio ambiente e o ser humano, e zero na região do semiárido nordestino? Responda para mim isso aí? Será que o interesse de vocês é com o ser humano, ou é outro interesse futuro nessa área?44
43Na esteira do código “hipocrisia”, o código “mentirosos” é um dos códigos de maior carga moral e aparece explicitamente em 12 momentos. Por exemplo, nesta passagem de Bolsonaro em pronunciamento na ONU de 2019, quando denunciou que a floresta amazônica “não está sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia.”45
44Entretanto, o código de maior carga acusatória e de imoralidade é o código “transgressores” porque gira em torno da ideia de que a defesa do meio ambiente está acobertada de interesses financeiros, corrupção ou ação criminosa. Carvalho foi um ator que se destacou neste código. O trecho seguinte é o trecho mais conspiratório e moralizante de todos os textos analisados:
- 46 Carvalho, Olavo, O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, R (...)
Nos anos 1950, grupos globalistas bilionários [...] tomaram a iniciativa de contratar algumas dezenas de intelectuais de primeira ordem para que escolhessem a vítima das vítimas, alguém em cuja defesa, em caso de ameaça, a sociedade inteira correria com uma solicitude de mãe [...]. Depois de conjecturar várias hipóteses, os estudiosos chegaram à conclusão de que ninguém se recusaria a lutar em favor da Terra, da mãe natureza. Foi a partir de então que os subsídios começaram a jorrar para os bolsos dos ecologistas que se dispusessem a colaborar na construção do mito do planeta ameaçado pela liberdade de mercado.46
45Trata-se de uma citação significativa porque considera que a ameaça ambiental nada mais é do que um “vitimismo” e um “mito”, uma mentira contratada por grupos bilionários, inventada por um punhado de estudiosos intelectuais e apoiada por ecologistas bem pagos com a finalidade de atacar a liberdade de mercado e aumentar o estatismo esquerdista.
46Diante de 208 codificações de mensagens que versam sobre a imoralidade de doutrinadores, monopolistas do debate, dissimuladores, desqualificados, autoritários, mentirosos, transgressores e hipócritas, é de se esperar que emergisse também um sentimento de repulsa e oposição para fazer frente a esse mundo imoral. Os textos analisados mostraram quatro códigos nessa direção que agrupados emanam a mensagem moral da necessidade de “resistir” aos ataques ambientais-climáticos.
47Deste grupo de códigos, o que mais se sobressaiu foi o de “sentimento patriótico”, representando 19 %, e o ator do qual mais emanou esse código foi Jair Bolsonaro (39/69). Em discurso logo depois da crise das queimadas na Amazônia de repercussão mundial, em 2019, Bolsonaro reafirmou que a floresta é cobiçada e que a “Amazônia brasileira é nossa [...] isso que aconteceu há poucos dias47 foi muito, mas muito bom para despertar o patriotismo entre nós”48. Percebe-se que os códigos “vitimização” e “patriotismo” se associam. Em discurso anual na ONU de 2020, Bolsonaro expôs como o Brasil é vítima “de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia” e como “essa campanha [é] escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil”49.
48O código “resistência” (35; 10 %) indica as formas pelas quais é necessário resistir e reagir a essa politização ambiental-climática. Por exemplo, como apareceu principalmente em Araújo e Carvalho, a resistência acontece na recomendação de livros, vídeos e documentários com informação alternativa “para entender por que o efeito estufa e o alarmismo sobre a emissão de gases são grandes embustes”50. Resistir também por meio da intimidação pela força, como sugere Bolsonaro: “E como você faz a dissuasão disso [interesse pela Amazônia]? Ter Forças Armadas preparadas”51. Além da força, a resistência passa, acima de tudo, pela verdade: “Nós, com perseverança, com determinação e com verdade, devemos resistir. Essa região [amazônica] é muito rica. [...] devemos resistir. Mostrar a verdade, acima de tudo”52.
49Por fim o código “líder moral” é um código que nos remete diretamente ao conceito de populismo. Trata-se de um código que apareceu relativamente poucas vezes (8; 2 %), porém com força significativa. Nas cinco vezes em que o código “líder moral” apareceu em Bolsonaro, ele se colocou como defensor dos interesses nacionais, e em contraposição aos outros líderes políticos do passado: “Quando os outros presidentes iam nessas reuniões [fora do país] como eu fui, vinham pra cá e demarcavam dezenas de áreas indígenas [pressionados por lobby e dinheiro de fora]”53. Soma-se a essa contraposição à defesa da verdade e da liberdade: “No passado chefes de estado do Brasil faziam campanha negativa contra seu próprio país. Mentiam sobre números de crianças abandonadas, fome, desmatamento. Isso está mudando: João 8:32. ['E conheceis a verdade, e a verdade vos libertarás']”54. Por fim, um líder que se diferencia de uma esquerda imoral e que é, sobretudo, defensor da soberania brasileira, como escreveu no twitter em resposta ao candidato democrata Joe Biden, em 2020: “O que alguns ainda não entenderam é que o Brasil mudou. Hoje, seu Presidente, diferentemente da esquerda, não mais aceita subornos, criminosas demarcações ou infundadas ameaças. NOSSA SOBERANIA É INEGOCIÁVEL” (destaque do original)55.
- 56 Müller, Jan-Werner, What is populism?, 1st edition, Philadelphia, Un (...)
- 57 Ibidem, p. 10.
50Neste artigo procuramos mostrar como as teorias da conspiração em torno da questão ambiental-climática foram mobilizadas no fortalecimento de uma ideologia populista nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro. Para o conceito de populismo, nos baseamos principalmente na abordagem de Müller que argumenta que o populismo é uma “particular imaginação moralista da política, uma maneira de perceber o mundo político”56 e que essa percepção se baseia em “um conjunto de reivindicações distintas e tem o que se poderia chamar de uma lógica interna”57. A lógica do populismo se fundamenta em um tripé que se autoalimenta: da luta moral entre o “povo de bem” contra uma “elite corrupta”; do líder como único representante legítimo deste povo porque defende seus valores morais; e da teoria da conspiração que alimenta a política do medo, o vitimismo e o maniqueísmo contra os inimigos do povo e do líder – fechando assim o círculo povo-líder-inimigos que faz o movimento populista ganhar tração e raízes. Entender como as teorias da conspiração ambiental-climáticas contribuíram para essa lógica e esse movimento foi o objetivo central do artigo.
51Para tanto, buscamos analisar (1) como esses discursos conspiratórios articulam uma estrutura típica da teoria da conspiração e (2) quais são os elementos moralizantes que emanam dessas teorias. A análise empírica se baseou em uma análise de conteúdo qualitativa a partir de 36 textos de teor conspiratório sobre a questão ambiental-climática proferidos pela alta cúpula do governo: Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Ernesto Araújo, Filipe Martins e Olavo de Carvalho. A partir de uma análise de conteúdo em códigos e categorias, e com o auxílio do software Atlas.ti, foi possível perceber uma estrutura conspiratória e alto grau de moralismo.
52Em primeiro lugar, uma estrutura assentada na noção de negacionismo. Há uma crença de que os dados transmitidos pelas autoridades epistemológicas sobre as mudanças climáticas e a Amazônia são questionáveis, não verídicos, demasiado alarmista ou, até mesmo, produto de manipulação criminosa. Se os dados são questionáveis, logo também são as pressões para o fortalecimento das políticas ambientais e climáticas. Assim sendo, uma estrutura conspiratória pode ser formulada da seguinte maneira: elites globais, intelectuais, tecnocráticas e de esquerda buscam controlar as soberanias nacionais e as ações dos indivíduos por meio da instrumentalização da agenda ambiental-climática – em especial via doutrinação ideológica e da promoção de uma ameaça climática exagerada ou inexistente, ameaça esta que justificaria o controle generalizado. Duas mensagens morais principais podem ser extraídas dessa estrutura: (1) necessidade de desmascarar essa instrumentalização política; e (2) necessidade de resistir contra seu projeto de poder. Portanto, conclui-se que diante uma luta na qual a verdade e a liberdade estão no centro, e as mudanças climáticas e a Amazônia nela inserida, Bolsonaro é apresentado como um líder patriótico que defende a soberania, o desenvolvimento e os interesses do povo e da nação. Para Bolsonaro, a questão ambiental-climática se encaixa muito bem com o slogan do governo: “conheceis a verdade, e a verdade vos libertarás”.
