1Em 1968, a organização revolucionária Ação Popular (AP), uma das mais influentes da esquerda brasileira das décadas de 1960 e 1970, redefiniu a sua identidade e a sua estratégia política pela adesão ao maoísmo. Criada em 1962, a AP caracterizou-se, inicialmente, pela proposição de um projeto socialista humanista, aberto a diferentes influências filosóficas, como o cristianismo, o existencialismo e o marxismo.
- 1 Dias, Reginaldo Benedito, Histórias da Ação Popular, 2ª. Edição, São Paulo, Alameda, 2021.
2Depois de 1964, no período aberto com a implantação da ditadura militar no Brasil, a AP desencadeou um processo de retificação de sua estratégia e de sua identidade, tendo como eixo norteador o marxismo. Embora houvesse outras tendências em seu interior, prevaleceu, em 1968, a adesão ao maoísmo, reconhecido como a terceira etapa do marxismo, o marxismo da atualidade.1
3Abrindo um novo período na história da AP, a definição pelo maoísmo exerceu forte repercussão na formulação de sua Linha Geral para a revolução brasileira, sobretudo na maneira como eram examinadas as chamadas condições objetivas, resultantes da interpretação da estrutura econômica e social do país.
4A recepção do maoísmo não teve, todavia, um sentido unívoco. Entre 1968 e 1973, período de maior influência do maoísmo na história da AP, houve intensas controvérsias sobre o seu significado e sua aplicação à complexa formação social brasileira, gerando teses com interpretações contrastantes, disputas e cisão organizativa.
5Associado à reflexão acadêmica decorrente, o objetivo é escrutinar os documentos que a AP produziu, em sua fase de filiação ao maoísmo, para formular a Linha Geral da revolução brasileira, destacando as variações presentes no debate interno e na luta entre as suas correntes.
6Logo após o golpe de Estado de 1964, a AP retificou sua linha de ação, optando pela adesão à luta armada para derrubar a ditadura militar e desencadear a revolução social. Para formular essa nova estratégia, a AP dedicou-se ao estudo das revoluções contemporâneas, notadamente da cubana e da chinesa, com as quais manteve aproximações por meio de sua política de relações internacionais.
7De início, a AP foi mais influenciada pela Revolução Cubana. Em documentos elaborados quando havia a hegemonia maoísta, essa fase seria referida como “foquista”. Tratar-se-ia, porém, de um “foquismo reinterpretado”, visto que as ações concretas, apesar da constituição de uma comissão militar, não se pautavam pelo imediatismo das ações armadas, mas pela arregimentação da luta de massas por meio da radicalização das lutas institucionais.2 Seja como for, a AP esteve representada no congresso de fundação da Organização Latino-Americana de Solidariedade, em meados de 1967, em Havana.
8Nesse período, contudo, a AP também experimentava estreitamento de relações com a China. Em 1966, o coordenador nacional da AP, Aldo Arantes, fez uma visita oficial à China, quando entabulou tratativas para que fosse enviada uma delegação para treinamento político e militar naquele país. Na volta, sistematizou os resultados de sua visita em documentos, estimulando o debate interno.
- 3 Ação Popular, Resolução Sobre o Debate Teórico e Ideológico, [S.l.:s.n.], 1967, p. 5.
9Em 1967, avançando em sua transformação ideológica, a AP aprovou duas resoluções que balizariam a sua trajetória posterior e seriam decisivas para consolidar a sua filiação ao marxismo. A primeira foi a Resolução sobre o debate teórico e ideológico, que convocou os dirigentes e militantes ao estudo e ao debate organizado do marxismo. Recusando o ecletismo presente em sua origem, a AP diagnosticou que quase havia caído “na pretensão de forjar uma teoria revolucionária à margem da tradição revolucionária contemporânea e não a partir das aquisições do marxismo”.3
10Nesse diapasão, a segunda resolução reconheceu a necessidade de constituir um partido de vanguarda para dirigir a revolução brasileira. Explique-se que, em sua origem, a AP identificava-se como um movimento revolucionário, e não como um partido. Nos documentos da AP, essa fronteira de transformação ideológica passou a ser referida como o início do seu processo de proletarização. Em outras palavras, o início de sua transformação em um partido de vanguarda da revolução brasileira, regido pelo marxismo-leninismo.
11No curso desse debate teórico e ideológico, foram mapeadas cinco tendências,4 mas houve o afunilamento em duas correntes em seu desfecho, ocorrido na I Reunião Ampliada da Direção Nacional (RADN), em setembro de 1968. Na linguagem interna, foram enumeradas como correntes 1 e 2.
- 5 Ação Popular, Esboço de uma história da Corrente 1, [S.l.:s.n.],1969a, p. 10.
12Após o retorno da primeira delegação enviada para treinamento na China, foi constituída a corrente maoísta, referida como “corrente 1”, que rapidamente formou maioria na direção da AP. Ao narrar a sua história, a corrente maoísta atribuiu a sua organização ao núcleo composto por “companheiros que fizeram a viagem à China. Estes companheiros puderam assimilar o marxismo-leninismo na sua etapa atual, o pensamento de Mao Tsé-tung”.5 O dirigente Jair Ferreira de Sá liderou a formação da corrente maoísta.
- 6 Ação Popular, Os seis pontos, [S.l.:s.n.], 1968a.
13As bases da corrente maoísta foram sintetizadas em um documento intitulado Os seis pontos. Não se tratava de um documento analítico, mas de uma sequência esquemática de pontos que fundariam a nova estratégia, sem que houvesse dissertação sobre cada um deles ou sobre o conjunto.6 Por isso, ficou conhecido como “Esquema dos seis pontos”.
14Resumidamente, o documento Os seis pontos propunha: 1) em face da degenerescência do partido comunista histórico, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que teria sucumbido ao revisionismo, defendeu a tese de reconstrução do partido de vanguarda, sem que isso se confundisse com a continuidade do anterior, tomando como base o pensamento de Mao Tsé-Tung; 2) política de integração com as massas, dentro da qual a integração mais importante era na produção; 3) a base teórica era o pensamento de Mao Tsé-Tung, entendido como a terceira etapa do marxismo, o marxismo da atualidade; 4)Linha Geral da revolução brasileira: revolução nacional-democrática; 5) linha militar: guerra popular prolongada, com o cerco da cidade pelo campo; 6) mudança do eixo de atuação, tendo o campo como arena principal.
15A respeito da Linha Geral, incorporada como o quarto dos seis pontos, registra-se a seguinte discriminação:
IV Linha Geral da Revolução Brasileira (ressalva - caráter de hipótese de trabalho e pesquisa): A) Caráter da sociedade – hipótese: a sociedade brasileira é semifeudal e semicolonial -. Divergência: caráter semicapitalista e caráter semicolonial; B) Caráter da revolução – anti-imperialista e antilatifundiária; democrática nacional; democrática-popular; democrática nacional-popular – duas etapas em um processo ininterrupto; Forças motrizes: força dirigente: proletariado; força principal: campesinato e assalariados agrícolas; aliados: pequena burguesia urbana, média burguesia (burguesia nacional); Inimigo principal: imperialismo; secundário: latifúndio e burguesia monopolista. Revolução brasileira tem duas etapas: uma democrática e outra socialista, em um só processo ininterrupto, na luta pela sociedade comunista.7
16No tema fulcral, o caráter da sociedade brasileira, do qual derivaria a estratégia propriamente dita, o texto indica a ressalva de que havia hipóteses a pesquisar. Malgrado a insuficiência de elaboração por meio de documentos escritos, os debates realizados nas instâncias diretivas foram persuasivos para formar a maioria e reorientar a linha estratégica no curso da I RADN. Os pontos eram suficientemente conhecidos no âmbito dessas instâncias para estimular a constituição de uma corrente contrária, referida como “Corrente 2”, que apresentou um extenso documento no decorrer da I RADN, intitulado Duas posições.
- 8 Ação Popular, Duas posições, [S.l.:s.n.],1968b, p. 10.
17Contestando a concepção de que se vivia a temporalidade da Revolução Nacional-Democrática, a “Corrente 2” argumentou que se tratava de uma “análise falsa da realidade brasileira, calcada em um modelo pré-fabricado, num transplante mecânico e que, portanto, se afasta dos verdadeiros interesses das classes oprimidas em nosso país”.8 Nessa direção, alegou que seria impossível para a burguesia nacional encontrar saídas para a crise nos marcos do capitalismo, cujos vínculos de dependência com o imperialismo configurariam um obstáculo ao pleno desenvolvimento das forças produtivas. O programa estratégico da revolução brasileira era, pois, a construção do socialismo.
18No calor da disputa, prevaleceu a maioria composta pela “Corrente 1”, sustentada nas diretrizes dos Seis pontos, e os signatários do documento Duas posições foram expulsos da AP. Na memória organizacional remanescente, foram acusados de defender uma linha revolucionária esquerdista e de adesão a uma linha militar foquista.
19A direção da AP que emergiu da I RADN editou um documento para compartilhar com as bases da organização a refutação das teses da “Corrente 2”. Nesse texto, uma emblemática passagem assinala que havia divergências na “Corrente 1” sobre a Linha Geral e sua caracterização do Brasil como país semicolonial e semifeudal:
- 9 Ação Popular, Desmascarar o grupo oportunista e provocador de Rolando, [S.l.:s.n.],1968c, p. 33.
Dentro da Corrente 1 havia vários membros que sustentavam o caráter predominantemente capitalista da nossa sociedade, embora defendam igualmente a existência de um modo de produção feudal subordinado, e existe até mesmo um companheiro que sustenta o caráter capitalista dominante de nossa sociedade e nega a existência de feudalismo no Brasil.9
- 10 Wright, Paulo, Cinco pontos de luta interna, [S.l.:s.n.], 1970, p. 41-42.
20Não eram divergências superficiais sobre um tema tão central à elaboração da Linha Geral, mas prevaleceu, ao que tudo indica, a identificação com a diretriz da integração com as massas, de grande ressonância na formação e na história da AP, que tinha como contrapartida a rejeição ao foquismo que a corrente majoritária atribuía à linha militar dos adversários. A esse respeito, em intervenção posterior, o dirigente Paulo Wright argumentou: “A unidade formada na Corrente 1 era em torno da linha militar dos princípios da Guerra Popular, já que sobre a linha política era difícil alcançar mais do que uma unidade precária e temporária”.10
21O desenvolvimento efetivo das teses maoístas pode ser visto em documentos posteriores, emanados das instâncias oficiais da AP, monopolizadas pelos vencedores da luta interna de 1968.
- 11 Ação Popular, Audácia nos objetivos. Rigor nos métodos, [S.l.:s.n.], 1969b, p. 26.
22Nova jornada de sistematização política foi realizada em 1969, durante a II Reunião Ampliada da Direção Nacional, cujo tema predominante foi o partido de vanguarda. A principal resolução foi a de reconstruir o partido unificado do proletariado do Brasil. Recusou-se o chamado “foquismo” e “foi reafirmada a validade do princípio marxista de a classe operária ter o seu próprio partido”.11
- 12 O PcdoB foi criado em 1962 por dirigentes que haviam sido expulsos do PCB, acusados de indisciplina (...)
23A II RADN, ao estabelecer as condições para a reconstrução do partido, ressaltou dois pré-requisitos: o estádio da luta de classes no Brasil e a luta contra o revisionismo internacional. Compreendia-se que a AP e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) eram dois partidos criados em 1962, aptos a desempenhar as tarefas exigidas pela terceira etapa do marxismo.12Apontou-se o cenário de unificação entre essas duas forças, que poderia ocorrer por intermédio de fusão e surgimento de um terceiro partido ou pelo destacamento de um polo principal aglutinador.
24A resolução elencou 12 tarefas que a AP deveria realizar para levar adiante seu processo de proletarização com vistas à reconstrução do partido operário. A quinta tarefa focalizava a Linha Geral da revolução brasileira, reconhecendo a precariedade da elaboração até o momento vivido:
- 13 Ação Popular, Audácia nos objetivos. Rigor nos métodos, [S.l.:s.n.], 1969b, p. 115-116.
Quanto ao debate sobre o caráter da sociedade, pouco avançou. Daí para cá, o partido começou a trabalhar sobre estas hipóteses. Necessitávamos aprofundá-las, sistematizá-las de uma forma concentrada, para finalmente concluir por uma tese para o II Congresso. Neste itinerário é que se introduziu a II Reunião Ampliada da Direção Nacional. O seu tema principal era o partido. Secundariamente, porém, uma comissão interna na II RADN tratou do problema da linha geral. Foi feita por esta comissão uma sistematização do quanto já avançamos nesta questão. [...] Deverá descer às bases dentro do processo de preparação do II congresso, quando será retomado como tema principal.13
25A despeito dos resultados da II RADN, as diferenças existentes no interior da heterogênea base comum que se constituiu não tardaram a aflorar. Em 1970, o dirigente Paulo Wright divulgou o documento Cinco pontos da luta interna, abrindo divergência e demarcando nova fase de debates.
- 14 Wright, op. cit., p. 3.
26Wright assegura que considerava o “Esquema dos seis pontos” um avanço na história da AP, dada a sua contribuição para a transformação da organização em um partido proletário, mas o questiona e propõe retificações. Primeiro, afirma que não se trata de uma linha política, mas de princípios que embasariam avanços na construção da Linha Geral. Segundo, avalia que, para cada um dos seis pontos, haveria duas linhas de compreensão e aplicação concreta.14
27Em autocrítica às condições em que ocorreu o debate anterior, Wright afirma que havia sido promovido o transplante mecânico do modelo chinês para a realidade local, traduzido na compreensão que se fazia da sociedade brasileira como semifeudal.
- 15 Ibidem, p. 19.
- 16 Ibidem, p. 21.
- 17 Ibidem, p. 28.
28Expondo a divergência frontal, sustentou: “A minha compreensão do caráter da sociedade, [...] considero ser uma sociedade capitalista dependente”.15 Indo às origens, adicionou: “Do ponto de vista histórico, considero que a sociedade brasileira teve seu início intimamente integrada no seio do capitalismo mundial em formação”.16 Concluiu que “o Estado brasileiro é há algum tempo um Estado burguês moderno, dominando uma sociedade capitalista dependente do imperialismo, em múltiplas formas ou em graus variáveis”.17 Wright questionou não apenas a caracterização do país que embasa a tese dos “seis pontos”, mas também a interpretação do passado colonial brasileiro.
29A respeito da definição do partido de vanguarda, propôs a rejeição da tese da reconstrução do partido operário. Defendendo a construção de um “partido de tipo inteiramente novo”, argumentou:
Necessitamos de um partido de tipo inteiramente novo porque estamos vivendo uma etapa inteiramente nova na revolução mundial e em nosso país. [...] O que vamos construir tem, portanto, uma qualidade nova, independente de que tenha existido ou não no passado no Brasil um partido proletário de tipo novo.18
- 19 Ação Popular, Lutemos pela unificação em torno do Partido Comunista do Brasil, [S.l.:s.n.], 1971a.
30A proposta apresentada por Wright colidia com o fato de a AP, seguindo a orientação da II RADN, encontrar-se em aproximação crescente com o PCdoB. Na oitava reunião da Comissão Executiva Provisória da AP, realizada no final de 1970, ganhou corpo o entendimento de que, no processo de unificação das forças proletárias, a base deveria ser o PCdoB.19
31Foi com a ascensão de divergências frontais sobre a Linha Geral que se realizou, em 1971, a III Reunião Ampliada da Direção Nacional. A reunião aprovou o Programa Básico, oferecendo uma formulação mais sistemática e bem elaborada à linha maoísta adotada em 1968. Além disso, aprovou os estatutos da AP, que passou a se designar como Ação Popular Marxista-Leninista (APML), assumindo o estilo leninista de organização, com centralismo democrático, Comitê Central e Bureau Político.
32Se a conversão ao maoísmo havia sido assentada no “Esquema dos Seis Pontos”, o Programa Básico fora elaborado com o suporte do esboço de um alentado documento, sustentado pelos líderes da nova maioria em formação, intitulado Contribuição ao estudo científico da sociedade brasileira, fortemente subsidiado com dados estatísticos do censo demográfico de 1970. Há duas edições desse documento, publicadas após a III RADN, no clima de intensificação da luta interna.
- 20 Ação Popular, Contribuição ao estudo científico da sociedade brasileira, [S.l.:s.n.], 1973, p. 78.
33O estudo aborda a modernização da economia brasileira, o peso relativo de cada setor econômico, a expansão do capitalismo e o processo de urbanização em curso. Conclui que o Brasil tinha uma formação social complexa, combinando relações capitalistas com relações semifeudais e feudais. Infere que predominaria o capitalismo, mas restos feudais sobreviveriam com destacada importância. Assim, “a tarefa democrática principal da revolução brasileira é a de extirpar todo o sistema latifundiário, o monopólio da propriedade da terra e o cortejo de suas sobrevivências feudais. A revolução nacional e democrática é assim anti-imperialista e agrária”.20
34Registre-se que, ao escrever a apresentação da segunda edição do documento, Duarte Pereira revelou a seguinte divergência, referindo-se a si mesmo:
Um dos autores deste trabalho considera errado afirmar que a sociedade brasileira é semifeudal e semicolonial, embora nela já prevaleçam as relações capitalistas. Toda sociedade tem uma natureza própria e esta é dada, no caso das formações sociais complexas, pelo modo de produção que predomina. [...] Na linha desse raciocínio, um dos autores deste trabalho manifesta sua convicção de que, se os marxistas-leninistas querem avançar na compreensão científica da sociedade brasileira, devem romper com esta sobrevivência de antigas concepções dogmáticas e devem avançar na formulação de um conceito da sociedade brasileira que se aproxime desta formulação: o Brasil é um país capitalista, do tipo dependente e subdesenvolvido.21
35Para a aprovação do Programa Básico, chegou-se a uma solução de compromisso entre as posições que amadureciam no interior da AP, criando uma fórmula de transição que permitisse a reabertura do debate. O II Congresso da AP seria convocado para dar solução definitiva às divergências.
- 22 Ação Popular, Programa Básico, [S.l.:s.n.], 1971b, p. 1.
36O Programa Básico reflete as tensões e compromissos. Em primeiro lugar, afirma que a base teórica da APML eram os “princípios científicos e universais do marxismo-leninismo-maoísmo". Esclarece que “o maoísmo era ao mesmo tempo uma continuação e uma nova etapa do marxismo-leninismo, o marxismo-leninismo da nossa época, da nova época revolucionária em que o imperialismo caminha para sua ruína completa e o socialismo avança para a vitória em escala mundial”.22
37Para a definição do programa mínimo, circunscreve a Linha Geral. Ao caracterizar as estruturas do país, constata que havia a complexa combinação das "relações semifeudais e feudais, com predominância das relações capitalistas".23 Além da insuficiência das condições objetivas, faltariam, também, condições subjetivas para a revolução socialista proletária. Assim, o programa mínimo da nova Ação Popular era a revolução nacional, democrática e popular, anti-imperialista e agrária. Salienta que, nas condições vividas, tratava-se de uma revolução nacional-democrática de tipo novo:
Primeiro, porque faz parte da revolução mundial proletária e não da revolução mundial burguesa. Segundo, porque leva à implantação e desenvolvimento de um capitalismo nacional. Terceiro, porque só pode ser dirigida até o final pela classe operária.24
38A tarefa política principal era a preparação imediata e ativa da guerra popular, com “a justa combinação entre a ampliação e radicalização das ações de massas no campo e nas cidades, e a imediata preparação ideológica, política, orgânica, técnica e material da nova Ação Popular e do povo para a luta armada, no campo e nas cidades”.25 Quanto ao outro tema nevrálgico, o Programa básico define que o objetivo era construir um partido de tipo inteiramente novo, marxista-leninista-maoísta. Considerava-se que, no Brasil, havia um partido marxista-leninista, o PCdoB, e outras forças marxistas-leninistas.
39Não obstante o acordo que viabilizou o Programa Básico, as disputas acerca do seu significado logo ficaram explícitas. O afunilamento na conjuntura imediatamente seguinte dar-se-ia em torno da seguinte polarização. Por um lado, consolidou-se uma maioria favorável à unificação com o PCdoB, com base na afinidade de programas, na defesa do caráter nacional-democrático da fase vivida pela revolução brasileira e no reconhecimento de que ele seria o partido histórico da classe operária no país. Por outro lado, a corrente opositora sistematizou a visão favorável à revolução imediatamente socialista e defendeu a necessidade da constituição do partido de tipo inteiramente novo, próprio da etapa vivida pelo marxismo.
- 26 Ação Popular, Combater o dogmatismo de direita e isolar os liquidacionistas das fileiras do partido(...)
40A réplica às teses da ala majoritária foram sintetizadas no documento Combater o dogmatismo de direita e isolar os liquidacionistas nas fileiras do partido, escrito para repelir a proposta, sedimentada nos debates internos, de dissolução da APML e incorporação de seus quadros ao PCdoB. Defendendo o maoísmo como terceira etapa do marxismo, os autores esclarecem que a construção de um “partido unificado de tipo inteiramente novo” era para conduzir a “luta contra o revisionismo e o dogmatismo até as suas últimas consequências”.26
41Eis um excerto desse documento, formulado para sistematizar a compreensão de que o Brasil vivia a temporalidade da Revolução Socialista. Na análise estrutural, assevera:
Com segurança, [...] a base econômica da sociedade brasileira em toda sua história e suas relações de produção jamais tiveram um caráter feudal ou escravista. Apesar do emprego de relações de trabalho pré-capitalistas, o sistema de plantações no Brasil foi regido pelas leis capitalistas de produção.27
42No período vivido, tais traços teriam ficado mais evidentes. A economia agrícola era regida pelas leis básicas do sistema capitalista e suas áreas vitais estariam empregando principalmente mão de obra assalariada. No campo, residia o elo mais fraco das forças revolucionárias. Além de a população camponesa não ter suficiente densidade para sustentar a revolução, crescia a proletarização nesse setor da economia. Não havia amparo na realidade, de acordo com essa interpretação, para a defesa da revolução democrático-burguesa no Brasil. A revolução deveria ser imediatamente socialista. Em resumo, conclui que "será pela insurreição urbana que a revolução triunfará" e que "o proletariado é a força principal da revolução brasileira".28
43A maioria em formação estava traduzida na composição do Bureau Político da APML, do qual faziam parte Haroldo Lima, Aldo Arantes, Renato Rebelo, Duarte Pereira, Jair Ferreira de Sá e Paulo Wright. Os quatro primeiros lideravam a maioria. Os dois últimos eram identificados com as posições da chamada minoria.
44Nos dois campos, havia nuanças internas. Jair Ferreira de Sá, líder da “Corrente 1” em 1968, promovia uma guinada em suas posições e passava a defender a revolução imediatamente socialista. Paulo Wright, apesar de ter sido articulador da “Corrente 1”, demonstrava divergências com o esboço da Linha Geral desde aquela época. No outro polo, a posição de Duarte Pereira, cuja discordância também estava consignada, seria relativamente distinta da assumida pelos outros três dirigentes. Embora tenha sido o porta-voz da abertura da unificação em torno do PCdoB como polo principal, por essa e outras divergências, não viria a se incorporar ao novo partido.
45No acirramento da disputa estratégica, houve troca de anátemas entre os contendores. A ala minoritária qualificava a tese de seus adversários como dogmática e direitista, por supostamente promover o transplante mecânico da realidade chinesa para elaborar a estratégia política e rebaixar as tarefas revolucionárias pela defesa da etapa nacional-democrática.
- 29 Lima, Haroldo; Arantes, Aldo. História da AP: da JUC ao PCdoB, 1ª. Edição, São Paulo, Alfa-ômega, 1 (...)
46A ala majoritária acusava seus oponentes de desvio “trotsquizante”. Não havia vínculos diretos entre esses dirigentes da APML e o trotsquismo. Conforme explicaram Haroldo Lima e Aldo Arantes, a corrente majoritária considerava que seus adversários desenvolveram a tese da revolução imediatamente socialista por influência de autores “trotsquistas” ou “trotsquizantes”. No caso, foram citados autores adeptos da “Teoria da dependência”, como Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos.29 A eles pode ser incluído, com mais ressonância, Andre Gunder Frank.
47Sem incorporar os adjetivos vocalizados por seus adversários, não há dúvida de que a tese da ala minoritária encontrava na obra dos autores da teoria marxista da dependência o seu fundamento teórico. Ao analisar a obra de Gunder Frank, Guido Mantega apontou:
- 30 Mantega, Guido, A economia política brasileira, 1ª. Edição, Petrópolis, Vozes, 1984, p. 214.
Frank afirmava que a variedade de relações de trabalho do campo brasileiro não eram resquícios feudais ou restos semifeudais, como queriam os partidários do PCB, mas sim relações sociais determinadas e moldadas pelos interesses do sistema capitalista mundial. Na verdade, argumentava ele, não apenas a agricultura, como toda a economia brasileira faziam parte do sistema capitalista mundial. Isso advinha do fato de que a própria formação da sociedade brasileira seria oriunda da expansão do capitalismo mercantil europeu verificada no século XVI, que teria, assim, moldado a colônia brasileira de acordo com suas características capitalistas e interesses específicos.30
- 31 Wasserman, Claudia, A teoria da dependência, 1ª., edição, Rio de Janeiro, FGV, 2017, p. 118.
48Segundo Cláudia Wasserman, “essa tese servia aos propósitos daqueles que defendiam estar a revolução socialista na ordem do dia na América Latina, contrariando a ideia dos defensores da necessidade de uma revolução democrático-burguesa com antecedência aos anseios socialistas”.31
49No desfecho dessa polarização, a ala que formou maioria na direção da APML comandou a incorporação ao PCdoB. Ainda que houvesse atualizações na formulação da Linha Geral, a defesa da revolução nacional-democrática e a linha militar da guerra popular, inspiradas na estratégia chinesa, cimentaram a decisão. Houve, porém, a revisão da tese do maoísmo como terceira etapa do marxismo, pois o PCdoB, embora aliado da revolução chinesa, não se assumia como maoísta.
50Foi com sua formulação maoísta heterodoxa que os remanescentes da APML, oriundos da ala minoritária, procuraram reorganizá-la após a maioria promover o ingresso no PCdoB. Sobrevivendo à cisão organizativa e ao avanço da repressão sobre seus dirigentes, a APML socialista, como ficou conhecida, considerou-se reestruturada em 1977 e teve existência até o final daquela década, quando formalizou autocrítica da adesão ao maoísmo.32
51O processo de adesão da AP ao maoísmo não foi precedido de uma elaboração sólida sobre o significado da Linha Geral. Quando essa elaboração foi aprofundada, emergiram divergências frontais, vocalizadas por troca de anátemas, que puseram em debate o significado do maoísmo.
52Entre 1968 e 1973, anos de maior influência do maoísmo na AP, o debate não cessou e assumiu feições complexas. O maoísmo foi evocado tanto para reafirmar e atualizar a linha estratégica aprovada em 1968 quanto para confrontá-la, mediante o avivamento da tese, fortemente influenciada pela teoria marxista da dependência, de que o Brasil era capitalista desde as suas origens e que, portanto, a revolução deveria ser socialista. A recepção do maoísmo, portanto, foi mais diversificada do que se depreende da letra dos escritos de Mao Tsé-Tung, em decorrência do diálogo com a complexidade da formação social brasileira.
