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Etnográficas

Cooper etnográfico: branquitude nas performances de classe e raça no espaço urbano

Ethnographic Cooper: whiteness in class and race performances in urban space
Fábio Macedo

Resumos

Abordo neste artigo as performances sociais de classe e raça em circulação na Praça das Flores no bairro Aldeota na cidade de Fortaleza, no Nordeste do Brasil. A partir do recurso metodológico do cooper etnográfico praticado com a classe média branca local, descrevo as estratégias que marcaram minha experiência de trabalho de campo. Neste percurso etnográfico, reflito sobre as minhas condições e vias de acesso ao campo, assim como as implicações da minha própria performance de gênero, raça e classe como homem cisgênero, branco e que circula dentro de uma classe média suscitando questões relativas às formas de contatos, misturas e interações sociais no online e offline. A partir das minhas localizações na costura desses contextos, procuro argumentar por meio da categoria de branquitude a relevância de uma abordagem racializada nos estudos dos espaços urbanos de “elite”, buscando compreender os significados que são incorporados nesses espaços de privilégios materiais e simbólicos na cidade.

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Notas da redacção

Versão original recebida em 18/04/2022 / Original Version 18/04/2022

Aceitação / Accepted 18/07/2022

Texto integral

Introdução

1Sou um jovem branco, homem cisgênero, filho de trabalhadores assalariados; morei durante muitos anos em um bairro da periferia. Hoje, como pesquisador e professor universitário, pertenço, do ponto de vista da classe social, a uma “nova” classe média “intelectualizada”. Na condição artesanal de um etnógrafo urbano, desloco-me de carro até a Praça das Flores, um amplo logradouro arborizado, com quadra esportiva, playground e quiosques com variadas espécies de plantas e flores à venda, tudo ao ar livre.

2A praça encontra-se localizada na região central da Aldeota, um tradicional bairro de classe média e alta da cidade de Fortaleza-CE. O entorno da praça é caracterizado por amplas ruas e avenidas igualmente arborizadas que vão compondo o contraste da densa paisagem verticalizada de prédios imponentes formando uma “floresta” de edifícios urbanos de usos residenciais e comerciais de alto padrão.

Foto panorâmica mostra a copa das árvores da Praça das Flores. Foto: Instagram da BSPAR Incorporações, importante grupo empresarial que desde 2016 realiza investimentos na praça a partir de parceria público-privada, tendo diversos empreendimentos financeiros e imobiliários no entorno da praça, como é o caso do BS Design (2019), na Avenida Desembargador Moreira (lado direito da foto), e o BS Flower (2020), em construção na Rua Barbosa de Freitas (lado esquerdo da foto).

  • 1 O “fazer cooper” é a expressão “nativa” utilizada para nomear a atividade física da corrida ou cami (...)

3Comecei a frequentar a Praça das Flores todos os finais de tarde, trajando roupas esportivas e apropriadas para realizar atividades físicas ao ar livre no local, muito semelhante ao estilo do grupo da classe média que passei a estudar naquele ambiente. Contemplando e presenciando a paisagem verde da praça, povoada por pessoas brancas que residem no entorno, eu, assim como elas, fui incorporando à prática do cooper na praça como um ritual de aquecimento e condicionamento físico. O movimento compassado de uma corrida mantendo um ritmo ideal de caminhada de maneira dinâmica, caracteriza a atividade do “fazer cooper1”. Aos poucos o cooper ganhou ritmo e centralidade como prática e recurso da minha observação etnográfica nesta praça que é reconhecida como espaço público de um “bairro de elite”.

4É importante contextualizar que me dediquei a realizar trabalho de campo com um grupo característico de classe média na praça, situado entre as camadas sociais mais bem posicionadas no bairro Aldeota, durante janeiro de 2020 a fevereiro de 2021.

5A cena comum que observei de usos da Praça das Flores foi semelhante a esta imagem onde pode-se ver famílias brancas de classe média com suas crianças brincando nos espaços do playground, a maioria delas sendo acompanhadas por babás que em geral eram mulheres negras e pardas; além da presença de algumas senhoras brancas que aparecem sentadas tranquilamente conversando num dos bancos da arborizada praça, enquanto alguns adultos e jovens passeiam em suas bicicletas e praticam outras atividades físicas.

Umas das regiões centrais da Praça das Flores. Fonte site do blog “Somos Vos”. Foto: Igor Melo (2016).

6Fui reunindo, ao longo desse período, um conjunto de dados etnográficos colhidos mediante o uso de ferramentas metodológicas que englobam a observação e o registro de contextos tanto online quanto offline. Entendo que a produção de significados atribuídos às cidades no mundo contemporâneo precisa contemplar também os modos como estes são produzidos e circulam no meio digital, através de blogs, sites, e de redes sociais que guardam continuidade com as relações face a face no presencial (Miller; Slater, 2004; Günel, Varma, Watnabe, 2020).

7Nos meses anteriores à pandemia Covid-19 – novembro e dezembro de 2019 e janeiro e fevereiro de 2020 – eu frequentei a praça durante eventos culturais, festivais de alta gastronomia, feiras de alimentos orgânicos e produtos ecológicos, participando da degustação de comidas e consumos de lazer praticados no local e destinados a uma classe média e alta.

8Em função da pandemia, durante os meses de março, abril, maio e junho de 2020, dediquei-me a trabalhar com o meio digital: examinar e colecionar matérias de jornais, anúncios publicitários, posts de perfis públicos no Instagram, chegando a descobrir webséries no YouTube de incorporadoras imobiliárias sobre os diferenciais e privilégios dos espaços do bairro, entre eles a Praça das Flores.

9Nos jornais, blogs e no YouTube, os principais critérios que usei para a escolha desses materiais foram: as representações sobre a praça e seu entorno, assim como a relevância dos fatos históricos apresentados pelas fontes. No caso do Instagram, usei o recurso de geolocalização do aplicativo que facilitou o critério de escolha das postagens na praça, e assim fui identificando imagens e legendas divulgadas principalmente em perfis de pessoas de classe média e alta, considerando os significados que esses frequentadores atribuíam ao contexto das suas próprias fotografias no local.

10A partir de julho de 2020, retomei de modo mais sistemático as idas à praça para o trabalho de observação participante. A minha “nova” entrada no campo presencial se deu por meio da prática de cooper, inserindo-me em um grupo de classe média e alta com o qual pratiquei treinos funcionais na praça, sempre sob a supervisão de um personal trainer.

11A partir da inserção e das amizades feitas neste grupo, fui convidado a frequentar um espaço esportivo privado com quadras de vôlei de areia e de Beach Tennis, nas proximidades da praça. Vale ressaltar que a ampliação geográfica do campo para além da Praça das Flores foi algo que se apresentou como necessário ao longo da própria etnografia com estas pessoas de classe média. Desse modo, durante um período de oito meses frequentando a praça para a prática de atividades físicas, incorporei o “raciocínio etnográfico”, conforme propõe Florence Weber e Stephane Beaud (2015), ao seguir as redes para onde elas me levaram.

12Para não privilegiar o olhar do “pesquisador na praça”, considerei outros pontos de vista apreendidos a partir de depoimentos e entrevistas que fui conseguindo realizar com diferentes frequentadores. Os depoimentos foram colhidos presencialmente em conversas, durante os treinos no local, em ambientes fora da praça e a partir de entrevistas que foram realizadas de modo online através do Google Meet. Considero, nesse sentido, que o espaço físico e simbólico da praça se configura como território vivo de classificações que são estruturadas em práticas e representações observadas em maneiras de pensar, sentir, fazer e agir socioespaciais que demarcam esse contexto como um dos espaços da imagem de performances de privilégios dos brancos na cidade, reforçando um sistema material e subjetivo que produziu historicamente lugares sociais de segregação e distinção, nos quais brancos e brancas são vistos como “naturalmente” pertencentes aos ambientes de “luxo”, que têm certa “segurança” e “conforto” material, como evidenciou o trabalho de Geísa Mattos (2022).

13Nessa perspectiva, apresento neste artigo notas reflexivas sobre a construção dos passos deste meu percurso metodológico tomando como ponto de partida não apenas a experiência etnográfica na praça – como ambiente isolado – mas sua cosmologia, como uma espécie de microcosmo social um pouco mais abrangente perfilado pela própria paisagem do bairro Aldeota, associando isso com aspectos e comportamentos da classe média branca local, suas práticas, usos e modos de apropriação dos espaços públicos.

Continuidades de uma praça em imagens online/offline

14O contexto de pandemia do coronavírus exigiu dos pesquisadores instigados pelo trabalho de campo a tarefa criativa de repensar e reformular seus acessos aos sujeitos, ambientes e situações de pesquisa. As limitações de “ir ao campo presencial” abriram perspectivas, como foi o meu caso a partir dos contextos online.

15Um dos primeiros recursos que utilizei no contexto online foi criar um perfil no Instagram chamado @etnografianapraca e começar a seguir (observar) e ser seguido (observado) por perfis de frequentadores, feirantes, floristas, empresários, assim como de empresas e estabelecimentos do entorno da praça.

16Por meio das interações no modo online a partir da geolocalização da praça (geotag: Praça das Flores) no Instagram, eu fui observando, descrevendo e analisando posts (postagens), stories diariamente como se estivesse visitando o campo de pesquisa, seguindo as premissas antropológicas de colocar as experiências socioculturais dessas imagens e legendas produzidas pelos frequentadores da praça em contexto, isto é, considerando online e offline como parte de um contínuo por meio do qual a vida social ganha significado (Miller; Slater, 2004).

17Conforme preconiza Cristina Marins (2020), os estudos urbanos que articulam contextos online e offline tendem a ampliar muito as potencialidades da pesquisa antropológica baseada no trabalho de campo etnográfico. Ao se inserir nesta nova costura metodológica, esta pesquisa buscou também produzir a singularidade do “encontro etnográfico” (Segata, 2017). Desse modo, as postagens no Instagram foram tomadas nesta pesquisa como um terreno fundamental do meu movimento de observação com o cooper etnográfico.

Mulheres brancas com roupas de ciclismo e suas bicicletas posam para uma fotografia na Praça das Flores. Fonte site do blog “Somos Vos”. Foto: Igor Melo (2016).

18A fotografia acima revela uma cena típica de uso da praça na qual duas senhoras brancas praticantes de ciclismo – equipadas com seus capacetes – são vistas em primeiro plano, e, atrás, famílias se divertem com crianças. Na imagem, vemos também uma babá negra de costas, fardada de branco, que pode ser vista ao fundo, segurando a mão de uma criança. A proposta de considerar esses conteúdos e informações como parte de meus recursos metodológicos e também como material etnográfico se revelou como um modo de apreender as diferentes formas e contextos de exposição naturalizadas de capitais culturais, simbólicos e estéticos que estruturam performances sociais evidenciando imagens das posições de privilégio racial que pessoas brancas de famílias de classe média exibem na praça.

19Passei então a considerar metodologicamente os aspectos visuais dos corpos geralmente não racializados das pessoas brancas em circulação nas fotos e legendas postadas na geolocalização da praça no Instagram como uma forma significativa de apreender as performances de classe e raça, os contatos sociais e interações visuais, assim como os marcadores simbólicos da distinção e do privilégio dos que vivem neste território da cidade.

20Esse significativo material de imagens foi muito útil para minha descrição visual, ocupando lugar central nas observações no diário de campo. Pensando com imagens pude ir recuperando os aspectos e as dobras que produzem modos de apropriação deste espaço na cidade e as interações nele tanto no online quanto no offline.

21Essas imagens configuram-se como repertórios que revelam um ponto de vista que se escolhe ver, consumir e circular na cidade, e de maneira específica, em uma praça com área verde, que não por coincidência existe quase que exclusivamente em bairros com os mais altos IDHs da cidade onde a população residente é majoritariamente branca, como na Aldeota.

Pai com sua filha andando de patins na quadra poliesportiva da Praça das Flores. Fonte site do blog “Somos Vos”. Foto: Igor Melo (2016).

22Observemos os aspectos visuais desta fotografia acima. Do lado ensolarado uma menina é conduzida pelo pai ao brincar de patins (direita); no lado ensombrado a imagem de dois meninos com cor de pele mais escura usando chinelos e “roupas com cores que combinam”, e que no contexto socioeconômico da capital cearense, são associados aos modos de se vestir de classes populares. O fato de aparecerem sozinhos, mesmo que tomando picolé, revela como no ambiente da praça existem “impérios parentais”, conforme apontou a antropóloga Ana Ramos-Zayas (2020), que marcam e demarcam diferenças de cuidado racializado e de gênero.

23As imagens e legendas que identifiquei na pesquisa online sobre a praça no Instagram revelam um ambiente que foi naturalizado como cenário fotográfico e paisagístico da classe média e alta nas redes sociais digitais. Essa constatação surge como uma perspectiva que vê a praça como um lugar valorizado na dinâmica das performances de famílias de classe média e alta ligadas a práticas parentais de cultivo de afetos, interioridade e de cuidado com suas crianças. Ser associado/a à Praça das Flores, em imagens e textos veiculados no Instagram, é uma forma de se exibir como portador de uma “vida saudável”, “feliz”, “natural”, “perfeita” e “invejável”.

24Estou denominando de classe média na sociedade fortalezense o segmento que apresenta um elemento distintivo de sua posição social de classe e que consiste na reprodução do capital cultural sob a forma de conhecimento útil e valorizado, conforme conceituado contemporaneamente por Jessé Souza (2018). Nesse sentido, nesta etnografia mobilizei a noção de classe média como a classe social da reprodução de privilégios materiais e simbólicos. Entendo a classe média como uma força simbólica.

25Assim sendo, quando falo em classe média e alta me refiro à experiência prática de incorporação da “branquitude”, e quando emprego a expressão “espaços de elite” me refiro aos ambientes e mundos de vida onde estes indivíduos de classe média também vivem, circulam e consomem. Me aproprio do termo “elite” de forma genérica e como pano de fundo da classificação nativa do território onde realizei a pesquisa, estando plenamente consciente que há diferenças entre a classe média com quem fiz trabalho de campo – e se reconhece como tal – e com uma “super elite” financeira que domina, do ponto de vista político e econômico, este território na cidade. Mesmo sugerindo que há distinções, observo relacionalidades contínuas que produzem interpenetrações entre as performances sociais pensadas em termos de incorporação de capitais e habitus de classe, recorrendo aqui pontualmente ao aparato teórico de Pierre Bourdieu (2007).

Praticando cooper etnográfico com os “nativos brancos” da Aldeota

26O ato de caminhar inicialmente na praça se mostrou como um meio para estabelecer uma “comunicação caminhante”, aguçar não somente o olhar, mas o próprio movimento do corpo do etnógrafo. Nesse sentido, tomei o cooper na praça não apenas como uma atividade física ao ar livre, mas também considerando-o como recurso metodológico, como um meio de interconhecimento. Essa experimentação se fundamenta no agir por aproximação ou zooms naqueles pontos em que “sociólogos de gabinete” costumam olhar mais de longe e de modo indiferente (Beaud; Weber, 2007). Fui, então, tomando o cooper como prática de movimentação etnográfica, que, de modo sistemático, funcionou como meio de envolvimento relacional e contextualizado.

27Seguindo a perspectiva de pesquisa socioantropológica de Loic Wacquant (2002), este trabalho constitui-se como uma elaboração de “corpo e alma” que se traduz em um modo particular de esforço e engajamento do etnográfico no mundo social. Foi partindo dessa premissa e tendo em vista a reabertura do comércio e dos espaços públicos da cidade que passei a retomar as visitas à praça em 21 de julho de 2020.

28Nessa nova conjuntura, fui criando nas idas a campo rituais de interação com os demais frequentadores da praça. Por medidas de segurança, realizei essas visitas na praça fazendo o uso obrigatório de máscara, o que é um fato interessante, pois o objeto de proteção foi se configurando como um acessório que molda sutis diferenças nas interações face a face. Apesar de com a máscara algumas características pessoais permanecerem cobertas, não foi difícil posicionar socialmente as relações racializadas dos sujeitos na praça.

29Neste retorno ao trabalho de campo presencial ainda me via carregando a impressão de que a praça, um espaço visto como “comum” na ótica dos sociólogos, seria um “lugar onde pode estar qualquer um”. Serve aqui a imagem metafórica do “caçador” reproduzida pelo historiador Carlo Ginzburg (1989) como aquele que procura em lugares triviais possíveis pistas, indícios mínimos e “miudezas materiais”. Como sugere o autor, “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas de ‘sinais, indícios, que permitem decifrá-la’” (Ginzburg, 1989, p. 177). Tomei a praça como reveladora de fenômenos mais gerais como as visões de mundo de uma classe média, as formas de acumulação e exibição de capitais, as reproduções de desigualdades e privilégios raciais no espaço urbano, a discriminação racial e as diferentes versões da “branquitude” na cidade.

30Por branquitude entendo inicialmente um sistema social de posição de status, compreendendo-a também como uma localização da condição socioeconômica e estrutural de privilégios (Corossacz, 2014). A identidade racial branca – branquitude – se caracteriza nas sociedades historicamente estruturadas pelo racismo como um lugar de privilégios materiais e simbólicos (Schucman, 2014). Ou seja, a noção de branquitude não é definida apenas pela cor da pele, mas por uma construção social que é fundamentalmente relacional e que requer no plano de sua apreensão uma economia de sinais muito mais ampla (Pinho, 2009). É necessário compreender os contornos que moldam a experiência de incorporação da branquitude e suas performances de supremacia nos espaços. Um conjunto de outras características nas relações financeiras, no consumo de lugares, nas performances de gênero e afiliação social de classe são quase tão importantes quanto o tom da epiderme dos que ali circulam.

  • 2 Utilizo a expressão de “nativo branco da Aldeota” para classificar racialmente a branquitude dos qu (...)

31Comecei, então, a fazer meu “cooper etnográfico” com os frequentadores da Praça das Flores, observando formas de interação, participando de conversas e ouvindo trechos de outros diálogos. Nesse cooper, a figura de um etnógrafo branco não se apresenta como um mero observador externo, já que ele é visto e reconhecido pelos interlocutores como parte natural do ambiente, ganha gestos de comprimento, sorrisos, apertos de mão, escuta e participa de conversas “simpáticas” e “bem humoradas” nas caminhadas, é integrado e interage se exercitando com os nativos brancos2 da praça na Aldeota em uma ginástica corporal e simbólica que faz parte do conjunto de habitus saudáveis de uma “branquitude” na cidade.

Na sequência, um homem branco na faixa etária dos 60 anos relata de modo jactancioso para três colegas também velhos e brancos que em outubro ele havia ido aos Estados Unidos. Narrava sobre seu completo conforto em um hotel de Nova Iorque. Em seguida comenta com os demais uma viagem que fez de avião para Campinas a trabalho pelo Banco do Brasil. Nessa conversa, ele acabou revelando que era gerente do Banco. Contou que a viagem foi de última hora e que havia pedido à “menina” que comprasse suas passagens de avião para Campinas para domingo. A moça o respondeu dizendo que tinha encontrado passagem para São Paulo Capital, mas que seria no horário das três da madrugada. Ele disse que não viajaria na madrugada e a questionou se não teria passagem no horário mais cedo no domingo. Ela disse que sim, mas que ele não iria querer porque o voo seria no horário que aconteceria o jogo da final da Copa do Mundo, que na ocasião o Brasil estava disputando. Ele solicitou que ela comprasse assim mesmo e expressou gestos e palavras de ironia. Após isso, ainda se gabou para os colegas de ter embarcado em um voo com meia dúzia de pessoas (de classe média), todos bebendo champanhe à vontade. No final, ainda ironizou que o Brasil tinha perdido a Copa. No desembarque do aeroporto em São Paulo havia um veículo particular o esperando para levá-lo até o hotel em que se hospedaria em Campinas (Diário de Campo, 2020).

32Em uma escuta de conversas como essa, iam-se esboçando tipos de práticas e visões de mundo dos que estavam ali praticando cooper. Notava o prazer dos nativos brancos da praça na Aldeota de narrar privilégios, que quanto mais exclusivos, tornavam-se mais valorizados e apreciados pelos demais.

33Desse modo, para lidar com um acesso mais sistemático, utilizei da minha posição de observador participante que se inscreve na cena da pesquisa para “tematizar a necessidade de uma sociologia não somente do corpo, no sentido de objeto, mas também a partir do próprio corpo como instrumento de investigação e vetor de conhecimento” (Wacquant, 2002, p. 12). Ou seja, mais do que escrever e registrar as caminhadas em passeios etnográficos pela praça que é aqui meu ponto de observação, senti a necessidade de adentrar nas práticas, colocando o corpo do etnógrafo branco em movimento.

34A partir disso, a escrita do diário etnográfico foi uma construção por meio dos sentidos, dos passos e dos exercícios na praça, de uma disposição complexa do próprio corpo, suando literalmente em razão do esforço físico e mental dedicado ao fazer da pesquisa. O fato de ser um jovem pesquisador branco e estar vestido de “forma adequada” para realizar atividades físicas e esportivas, e se passar por um morador do entorno também facilitou meu acesso aos interlocutores. Se, por acaso, fosse visto como um jovem negro da periferia teria a mesma oportunidade de “passar despercebido”? E de ser visto como um “deles” ou como sendo um nativo branco da Aldeota? Desse modo, realizei uso criativo da minha condição no campo como um “insider” ou, como propõe Patricia Hill Collins, a posição de um “outsider within” que pode ser utilizado como possibilidade de alcançar e produzir “um ponto de vista especial em relação ao self, à família e à sociedade” (Collins, 2016, p. 100).

35Um dos meus contatos mais significativos na praça ocorreu justamente com um dos grupos que praticavam treinos com um personal trainer no local. A partir deles, fui me inserindo na performance esportiva dos nativos na praça. Essa escolha me permitiu entrar em uma rede de sociabilidade de classe social que fui percebendo como racializada na praça, e, nos espaços do entorno, como as arenas de Beach Tennis.

36Conduzida pelo personal, a minha entrada no grupo de treinos foi feita por meio de um procedimento de anamnese, sobre minhas condições de saúde, tempo de treino em musculação e outras práticas esportivas, assim como quais eram meus objetivos com o treino: como ganhar condicionamento, resistência, força e emagrecer. Minha recepção ocorreu em durante um treino experimental, no qual conheci o grupo que treinava na praça. Me apresentei como pesquisador da universidade e um morador do entorno, informação que facilitou minha ambientação nesta rede de treinos.

37Além de ser lido como branco, por ter um fenótipo de cor de pele mais clara, no contexto de Fortaleza, e possuindo um determinado tipo de capital cultural, eu fui performando a classe média, movimento que se traduziu em condições que facilitaram o meu acesso e permanência no grupo. Durante esse tempo, verifiquei que os indivíduos que treinavam na praça já chegavam no local integrados a alguma rede de sociabilidade dos treinos, em alguma turma e com o seu próprio personal (educador físico), não sendo comum a entrada de pessoas aleatórias nos grupos, como no meu caso. Uma vez, inclusive, uma das participantes expressou incômodos em razão da possível entrada de “novas” pessoas nos treinos do nosso grupo com o personal.

38Essa situação ficou muito evidente quando uma mulher e seu filho se aproximaram interessados em participar dos treinos conosco. Naquela ocasião, uma das integrantes do grupo comentou que o treino estava ficando “muito lotado” e que o treinador era o seu personal. Apesar das minhas “facilidades” de entrada, fui sendo sutilmente sabatinado ao longo dos primeiros dias, com perguntas e dúvidas com relação onde eu morava, de que modo eu me deslocava até a praça e sobre como retornava para casa, assim sobre quais seriam meus objetivos treinando, de onde eu conhecia o personal. Aliás, todos ficaram surpresos quando eu falei que havia conhecido o treinador na praça e não em uma academia particular do bairro, como eles imaginavam.

39A convivência diária com eles nos treinos, mas também nas situações de pré-treino e pós-treino foram momentos significativos de interconhecimento, reflexividade e análise etnográfica. Nesses momentos, assuntos da vida ordinária deles marcavam e dominavam o “tom” das conversas e traziam à tona suas maneiras de pensar, sentir e agir na cidade.

40Após as primeiras semanas de treino com o grupo de nativos brancos da Aldeota fui convidado por uma das participantes, uma jovem mulher branca na faixa etária dos trinta e cinco anos e que vive com o marido em uma cobertura de luxo na Aldeota, a conhecer um espaço de lazer esportivo privado no bairro. O convite foi feito durante um pós-treino, quando da praça fomos até um estabelecimento nas proximidades da praça para tomar açaí.

41Neste momento de comensalidade ficamos mais de uma hora e meia conversando. Demos muitas risadas das histórias pessoais e experiências de viagens narradas principalmente por dois interlocutores (brancos de classe média alta moradores da Aldeota). Todos do grupo tinham também em comum o notório prazer de narrar o privilégio de viagens nacionais e internacionais, e aproveitavam para comentar como estava sendo difícil frequentar alguns lugares na cidade – fazendo menção aos ambientes que fazem parte do circuito gastronômico formado por restaurantes frequentados pela classe média branca da cidade – em razão das questões relacionadas à pandemia e ao fluxo reduzido de clientes que os estabelecimentos podiam receber naquele contexto. Inclusive, tocavam nesse assunto com uma espécie de reclamação e um sentimento de indignação política. Esses momentos se repetiram em outras vezes no açaí, na arena de Beach Tennis e em barzinhos do bairro frequentados por uma “elite gourmet”, como classificou uma das minhas interlocutoras que também é uma típica frequentadora da Praça das Flores.

Conclusão

42No início, quando eu comecei a interagir com nativos brancos na praça da Aldeota, os contatos não eram muitos, mas gradualmente fui conseguindo me inserir nas redes de sociabilidade a partir da prática de treinos. Desse modo, minha inserção nessa nova rede de relações a partir da atividade física e depois do esporte foi propiciada com minha performance e posicionalidade como jovem homem branco que facilitou o fato de ser visto como “um deles” e poder praticar tranquilamente cooper na praça.

43Desse modo, o que consigo acessar e desenvolver em termos de interação e permanência neste ambiente como etnógrafo foi sendo tracejado pela correspondência de apresentar o fenótipo previsto para circular, praticando uma atividade física no local e de modo mais complexo pelo conjunto da minha própria performance racial incorporada e reconhecida naquele meio como uma pessoa branca.

44As disposições corporais no cooper propiciaram-me momentos de aquecimento e envolvimento no campo de pesquisa com os nativos da classe média branca. Foi por meio da prática do cooper que consegui tecer os contatos mais significativos sobre as performances de classe e raça em Fortaleza, e fui me associando às práticas desportivas na medida que me exercitando na praça passei a treinar, conviver e aprender sobre o seu mundo de vida. Tomei o cooper como prática e meio de observação das performances da branquitude na praça. Fui tecendo nesse intercurso uma rede que me levou a frequentar uma arena de Beach Tennis, um ambiente do bairro ainda mais “exclusivo” para jovens brancos, que se revelou para mim como espaço de privilégios e parcerias das performances de classe e raça nos ambientes de consumos esportivos na cidade.

45À medida que fui observando na praça e em seu entorno essa dinâmica de performance racializada da branquitude que estrutura os modos de praticar os espaços ainda segregados da cidade, também fui identificando como pessoas brancas e ricas ao frequentarem espaços públicos dos bairros onde residem e consomem, evitam práticas e comportamentos do que seria chamado localmente como “mistura” socioespacial (Barreira, 2019). Observei que na Praça das Flores pessoas negras de classes sociais pobres são vistas e tratadas como “estranhas”, “indesejáveis”, alvos de comentários e piadas racistas, olhares de desconfiança e suspeita. Reflexo de uma estrutura urbana historicamente segregacionista que foi sendo legitimada socialmente por meio da incorporação subjetiva (consciente e inconsciente) da branquitude como disposição naturalizada da maneira de praticar os espaços na cidade, como uma ordem simbólica de classificação socioespacial das relações de classe e raça.

46Existem modos distintos de circulação na praça que são orientados pela incorporação de performances de classe e raça. Nela, pessoas brancas de classe média e alta passeiam naturalmente e tranquilamente se exercitando, praticando atividades físicas com seus treinadores particulares e usando o espaço como ambiente de lazer, de práticas corporais ao ar livre como: yoga, caminhada, corrida e ciclismo valorizando o contato e contemplação da área verde que cerca o lugar.

47Pessoas negras e “pardas”, figuram neste ambiente servindo às famílias brancas, compondo a cena típica da praça como a imagem da babá uma mulher negra usando uma farda branca chamada de “quase da família” e passeando com os filhos da classe média com as pais logo ali do lado em clima de descontração.

48Estas performances fornecem uma paisagem segregada e racializada da praça, na qual, enquanto trabalhadores caminham em direção às paradas de ônibus lotados para voltarem às suas casas na periferia da cidade após um longo dia de trabalho, pessoas brancas fazem usufruto privilegiado de uma praça para praticar cooper e atividades de lazer ao final do dia.

49A população negra e “parda” figura na praça em atividades de trabalho como vendedores de picolé, varredores da praça, babás, jardineiros, floristas e também na condição de pessoas em situação de rua transitando nas proximidades da praça.

50Nessa perspectiva, a Praça das Flores e sua cosmologia foram tomadas como território de pesquisa e uma porta de entrada para realização do trabalho de campo etnográfico sobre as performances da branquitude local. Um espaço formado por paisagens de poder e apropriado pelo capital financeiro e imobiliário que, por meio dos investimentos na praça e no seu entorno, atuam reforçando relações de poder, de reconhecimento e de distinções de classe e raça.

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SOUZA, Jessé. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.

WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Tradução Angela Ramalho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

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Notas

1 O “fazer cooper” é a expressão “nativa” utilizada para nomear a atividade física da corrida ou caminhada em lugares públicos ao ar livre.

2 Utilizo a expressão de “nativo branco da Aldeota” para classificar racialmente a branquitude dos que nasceram e que pertencem a este local de privilégios na cidade. Esta classificação etnográfica se relaciona com a categoria nativa: “o povo das Aldeotas”. Expressão criada e usada pelos moradores da periferia para se referir às pessoas que vivem na Aldeota e nos bairros dos arredores.

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Índice das ilustrações

Créditos Foto panorâmica mostra a copa das árvores da Praça das Flores. Foto: Instagram da BSPAR Incorporações, importante grupo empresarial que desde 2016 realiza investimentos na praça a partir de parceria público-privada, tendo diversos empreendimentos financeiros e imobiliários no entorno da praça, como é o caso do BS Design (2019), na Avenida Desembargador Moreira (lado direito da foto), e o BS Flower (2020), em construção na Rua Barbosa de Freitas (lado esquerdo da foto).
URL http://journals.openedition.org/pontourbe/docannexe/image/12810/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 75k
Créditos Umas das regiões centrais da Praça das Flores. Fonte site do blog “Somos Vos”. Foto: Igor Melo (2016).
URL http://journals.openedition.org/pontourbe/docannexe/image/12810/img-2.jpg
Ficheiro image/jpeg, 321k
Créditos Mulheres brancas com roupas de ciclismo e suas bicicletas posam para uma fotografia na Praça das Flores. Fonte site do blog “Somos Vos”. Foto: Igor Melo (2016).
URL http://journals.openedition.org/pontourbe/docannexe/image/12810/img-3.jpg
Ficheiro image/jpeg, 286k
Créditos Pai com sua filha andando de patins na quadra poliesportiva da Praça das Flores. Fonte site do blog “Somos Vos”. Foto: Igor Melo (2016).
URL http://journals.openedition.org/pontourbe/docannexe/image/12810/img-4.png
Ficheiro image/png, 2,2M
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Fábio Macedo, «Cooper etnográfico: branquitude nas performances de classe e raça no espaço urbano»Ponto Urbe [Online], 30 v.2 | 2022, posto online no dia 28 dezembro 2022, consultado o 29 maio 2023. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/12810; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.12810

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Autor

Fábio Macedo

Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.

Fortaleza, Ceará, Brasil.

E-mail: afabio.macedo@alu.ufc.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1204-1024

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Direitos de autor

CC-BY-4.0

Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional - CC BY 4.0

https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

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