- 1 O presente trabalho apresenta resultados parciais da pesquisa “Centralidade em disputa: impactos ci (...)
1Mestrando no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros (PPGDS/Unimontes). Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Pesquisador associado do CITADINO (Núcleo de Interdisciplinar de Temáticas Urbanas da Unimontes-MG). E-mail: jcarignatodavid@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3514-3816.
2Neste presente texto, apresentaremos relatos e desenhos derivados de um exercício etnográfico ocorrido no âmbito do seminário “Lima-São Paulo: las centralidades como espacio habitado”, evento realizado na Universidade de São Paulo (USP) entre os dias 18 e 22 de julho de 2022. Trata-se de uma produção coletiva elaborada por pesquisadores vinculados ao CITADINO – Núcleo Interdisciplinar de Temáticas Urbanas da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes-MG) –, a partir de suas respectivas áreas de atuação e de seus interesses temáticos. As descrições contemplam as principais impressões e experiências obtidas por meio de uma caminhada feita no centro tradicional de São Paulo em 19 de julho de 2022, terça-feira, no período matutino.
- 2 Por meio de uma postura de perto e de dentro é possível apreender, pelas vias etnográficas, comport (...)
3O breve trajeto se dera por vários espaços da região central da capital paulista, o que nos possibilitou observar e acompanhar uma série de situações transcorridas em espaços públicos. Se na ocasião não tivemos uma aproximação etnográfica por meio de uma perspectiva de perto e de dentro (Magnani, 2002)2, ao menos nos foi possível praticar uma modalidade do método etnográfico caracterizada como de passagem, ou seja, percorremos “a cidade e seus meandros observando espaços, equipamentos e personagens típicos com seus hábitos, conflitos e expedientes, deixando-se imbuir pela fragmentação que a sucessão de imagens e situações produz” (Magnani, 2009, p.106-107).
4Em vista disso, as descrições ora apresentadas terão como foco certas dinâmicas relacionais de uma centralidade tradicional notadamente marcada por usos e apropriações citadinas, por formas de sociabilidade e conflitos, por mobilidades alternativas, por toda sorte de artimanhas frente às estratégias políticas e urbanísticas que tentam regular o cotidiano urbano da metrópole mais populosa do país.
5A primeira caminhada ocorreu no centro tradicional de São Paulo, comumente chamado de Centrão por muitos citadinos paulistanos. Trata-se de uma extensa região composta por vários bairros, os quais estão ligados a distritos que, por sua vez, são englobados, do ponto político e administrativo, pela Subprefeitura da Sé. O encontro da equipe de pesquisadores se dera nas catracas da estação Santa Cecília, situada na linha vermelha do metrô.
Imagem 1 - Distritos que compõem a Subprefeitura da Sé.
- 3 Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/QA-SE.pdf. Aces (...)
Crédito: Divulgação / Prefeitura de São Paulo3.
- 4 De acordo com Magnani (2000), o pedaço, em seu sentido antropológico, é definido “quando o espaço – (...)
6Por volta das 11 horas encontramos Pablo Lafosse e José Guilherme Magnani, além de Manuel Guardia, César Ponce e Tarik Tavera (CIAC/PUCP). Giancarlo Machado ficou responsável por guiá-los até o prédio onde reside o Prof. Rosenilton Oliveira, antropólogo vinculado à Faculdade de Educação da USP. Antes de chegarmos ao prédio, tivemos a chance de fazer rápidas observações no entorno da estação de metrô. Saímos pela plataforma que dá acesso à rua Ana Cintra, sentido Minhocão (Elevado Presidente João Goulart). A outra saída do metrô está conectada ao Largo da Santa Cecília, espaço público marcado pela presença da Paróquia Santa Cecília, santa padroeira dos músicos. Aliás, a música se faz presente com vigor nas adjacências da igreja. O largo é um pedaço tradicional do samba em São Paulo4. Aos fins de semana, pessoas provenientes de várias partes da cidade, facilitadas pelo acesso decorrente do metrô, ocupam os bares que rodeiam a igreja para confraternizar e para curtir as músicas entoadas por conjuntos diversos que se revezam noite adentro.
- 5 Para mais detalhes sobre os faria limers, vide a matéria “Faria Limers: como é o jeito de viver de (...)
7Não tivemos a oportunidade de caminhar pela Santa Cecília. Contudo, cabe assinalar que o bairro vem passando por muitas mudanças em sua paisagem, algo decorrente, segundo o antropólogo Maurício Alcântara (2019), de um processo de hispterização, isto é, de uma crescente atração tanto para moradia como para lazer e consumo de jovens adultos urbanos de camadas médias superiores genericamente classificadas como hipsters. O termo se refere, conforme resumo da dissertação de mestrado do antropólogo supracitado, a pessoas ligadas a atividades profissionais tidas como criativas (tais como comunicação, tecnologia, inovação e artes), majoritariamente alinhadas a um espectro político mais progressista, e que encontram na região central uma infraestrutura, diversidade sociocultural e redes de lazer e sociabilidade que não apenas são importantes para a plena realização de seus estilos de vida, como também não podem ser encontradas em outros bairros da cidade. A pesquisa de Alcântara – a qual se concentrou não apenas na Santa Cecília, mas também na Vila Buarque e República – teve como ponto de partida uma série de novos negócios (tais como restaurantes, bares, livrarias, cafés, lojas de decoração, moda e design) abertos nos últimos anos no bairro de Santa Cecília e que são voltados a (e foram criados por) pessoas potencialmente classificáveis como hipsters, e que oferecem produtos e ambientes que prometem o alto nível de sofisticação e especialidade buscado por este perfil, que busca produzir formas de distinção por meio da evitação do consumo de massa. Ademais, é importante registrar que tais hispters de Santa Cecília ganharam a alcunha de santa ceciliers, em oposição aos faria limers5, tipo urbano atrelado à avenida Faria Lima, esta última assinalada pela proeminência do setor terciário, com foco em empresas de tecnologia. Estas categorias em itálico, utilizadas muitas vezes de maneira jocosa, merecem atenção por parte dos investigadores tendo em vista que exprimem as vicissitudes das centralidades paulistanas e seus respectivos impactos sobre estilos de vidas urbanos.
8Ao sair da estação de metrô, deparamo-nos com uma área arborizada, bastante sombreada, contudo, as árvores estavam num espaço público gradeado, com acesso limitado. Ao lado constava o terminal de ônibus Amaral Gurgel, que ficava embaixo do Minhocão, e, em sua frente, um novo empreendimento imobiliário, um prédio composto por estúdios, isto é, apartamentos compactos, sendo esta uma tendência de moradia e hospedagem na região central.
9O Minhocão comporta múltiplos usos e sentidos, sendo, por isso, repleto de contradições. Enquanto sua parte superior é ocupada por jovens descolados e por pessoas entregues a momentos de lazer e descontração, a parte inferior parece ser evitada por muitos de tais citadinos, embora também seja um local de permanência para tantos outros que se encontram em situação de rua.
10Havia muitas artes urbanas nas redondezas, algo que contribuía para espetacularizar o lado alternativo da região. Ao menos dois grafites nos chamaram a atenção: um mural na empena de um prédio, com imagem de dois corpos, que continha a inscrição “No país da corrupção, pixar é crime”, seguido pela sigla “ZS” (Zona Sul); e um grafite numa parede que trazia a imagem de dois punks, cada qual com referências, em suas respectivas jaquetas, a bairros paulistanos (Sacomã, Campos Elíseos, Ipiranga, Glicério, Grajaú, Vila Anglo) e a cidades da baixada santista (Praia Grande e Santos). Tais artes afirmam formas de citadinidade (pichação e movimento punk), bem como indicam a constituição de circuitos que se ampliam desde as periferias, e até mesmo de cidades alhures, para esta centralidade.
Imagem 2 - Vista parcial do Minhocão.
Crédito: Mariana Teixeira.
- 6 Sobre as controvérsias das ciclovias em São Paulo, ver Moraes (2021).
- 7 Vide https://cidadederefugio.com.br/2022/. Acesso em 15/10/2022.
11Após uma curta caminhada pela rua Ana Cintra, chegamos à avenida São João, onde havia uma intensa e rápida circulação de ônibus. A avenida também dispõe de ciclofaixas, algo que vem contribuindo para o aumento da presença de bicicletas na região central da cidade6. O nosso primeiro destino estava logo à frente: tratava-se do edifício Racy, apelidado de “Copanzinho” (a sua fachada lembra a do emblemático Copan, situado na República, edifício que fora projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer). Antes de entrarmos, porém, um estabelecimento ao lado do prédio despertou a nossa curiosidade. Havia um amplo letreiro com a seguinte inscrição: “Comunidade Cidade de Refúgio”. Não tivemos como deixar de aventar a possibilidade de o local ser um centro de acolhida para refugiados. Há muitos deles na região central de São Paulo, das procedências mais diversas, portanto, em vista da questão humanitária, seria plausível que aquele tipo de estabelecimento pudesse acolher as demandas dos refugiados. Ao pesquisar na Internet7, para nosso espanto, tal comunidade diz respeito a uma igreja evangélica que, ao que consta em seu site, parece não ter ligação com o atendimento de refugiados.
- 8 Para investigações detidas sobre a cracolândia, vide Frúgoli Jr. & Skair (2009; Frúgoli Jr. & Caval (...)
- 9 Para reflexões sobre os nóias, enquanto categoria de acusação, vide Frúgoli Jr. & Spaggiari (2010).
12O professor Rosenilton nos aguardava no hall do prédio. Junto dele estava a síndica, que, diante do nosso grupo, tentou prezar pelas regras de acesso e de controle. Todos tiveram que fazer cadastro na portaria. Somente após isto é que pudemos, então, subir para a cobertura, no topo dos 14 andares. O grupo dividiu-se a fim de respeitar a lotação do elevador. A oportunidade de olhar São Paulo desde o alto, de fora e de longe do chão da cidade, foi impressionante. O edifício Racy nos permitiu uma vista em 360 graus, algo que expôs as contradições tão caras a esta região central. Num dos lados, a Santa Cecília e seus prédios com vários murais feitos por artistas urbanos. Noutro, a parte superior do Minhocão, a qual abrangia uma extensa área desde próximo à Praça Roosevelt até a estação Marechal Deodoro do metrô. Também observamos a extensão da avenida São João e a sua ligação sentido avenida Ipiranga, e, aos fundos, na rua Helvetia, um dos pontos da cracolândia8. Esta última concentrava-se no bairro da Luz, precisamente nas imediações da Praça Júlio Prestes, onde se dava o intenso fluxo de usuários de crack (conhecidos, no senso comum, como nóias)9. O agravamento de vários problemas sociais em nível nacional – como desemprego e inflação, decorrentes dos descalabros políticos –, repercutiu sobremaneira em São Paulo, culminando, com efeito, no considerável aumento da população em situação de rua. Como parte desta população, tem-se a presença de usuários de crack, os quais, há décadas, constituem um incômodo para aqueles que habitam ou frequentam certas partes da região central. Dada esta presença que, para muitos, é poluidora dos espaços, a prefeitura de São Paulo, sob a atual gestão de Ricardo Nunes (MDB, 2021-2024) não tem realizado ações sociais contundentes, optando estrategicamente, ao contrário, por medidas meramente repressivas (vide as tantas ações policiais truculentas que têm ocorrido em tempos recentes). Face à repressão, a aglomeração que marcava a cracolândia ramificou-se, estando os usuários espalhados por diversos pontos do centro. Esta dispersão tem sido analisada por Frúgoli Jr. & Cavalcanti (2013) como parte de um processo de territorialidades itinerantes.
- 10 Região moral, sob a ótica de Robert Park (1967), é um território residual, segregado, marcado por p (...)
13Ainda sobre a cracolândia da rua Helvetia, percebemos algumas alterações quanto à ocupação do espaço. Se antes os usuários ocupavam livremente esta rua, onde ocorriam os chamados fluxos, agora eles ficam confinados num espaço restrito, demarcado por cones que foram colocados pela prefeitura. Tais cones cercam as calçadas e metade da rua, ao passo que a outra metade fica livre para circulação de carros. Desde o alto do prédio tivemos, então, uma clara percepção de uma região moral (Park, 1967) estrategicamente criada pelo poder público municipal a fim de controlar uma área onde se parece tolerar certas ilegalidades10.
14Após esta percepção da centralidade desde o alto, prosseguimos, enfim, com as caminhadas. Parados em frente ao prédio, decidimos nos dividir em grupos a fim de estabelecer diferentes trajetos. Nosso grupo – composto por Giancarlo Machado, Nayara Machado, Mariana Teixeira, José Vitor Carignato e César Ponce – optou em seguir rumo às galerias da rua 24 de Maio e ao Vale do Anhangabaú. O percurso foi feito em ritmo moderado a fim de não deixarmos nos afetar pelo caráter blasè (Simmel, 2005) que emerge quando se está rodeado por demasiados estímulos.
15As imediações da avenida São João, na altura do edifício Racy, onde estávamos, também reverberam as contradições da região. Se num quarteirão tínhamos uma das cracolândia, em outro, a poucos metros à frente, havia bares sofisticados (focados no consumo do vinho) ou alternativos (como Shuffle Bar e Morfeus Club, que têm como clientela um público jovem apreciador de vários estilos do rock). Imperava, portanto, uma coexistência de sentidos, de pedaços, de circuitos, uma aparente confusão que, sob o prisma citadino, revelava uma coerência de uma cidade permanentemente feita.
16Das calçadas avistamos fachadas com muitos grafites. Tantas cores que contrastavam com o cinza corriqueiro. Os estabelecimentos comerciais presentes no percurso eram destoantes. Lojas de móveis, fliperama, lanchonetes, cabelereiros, bancas de jornais. Ao olhar também para o alto, para as sacadas dos apartamentos, percebemos uma bandeira da Palestina e uma toalha de Lula, candidato à presidência do país. Estes itens revelavam uma região que conecta e amplia pautas políticas, identitárias e humanitárias, possibilidades que talvez fossem vistas com desconfianças nas demais centralidades econômicas da metrópole.
17Cruzamos a avenida Duque de Caxias de maneira apressada. A condição de pedestre nem sempre é confortável, afinal, em certas ocasiões tivemos que disputar espaço com carros, motos e ônibus cujos condutores não demonstravam menor empatia para com os mais vulneráveis em trânsito. Novamente na avenida São João, por onde prosseguimos, encontramos pessoas em situação de rua no decorrer de todo o trajeto. Estavam presentes embaixo de marquises, ou, simplesmente, no meio das calçadas, sendo negligenciadas pelos demais transeuntes que, com suas respectivas atitudes de reserva (Simmel, 2005), evitavam relações ou um mero olhar sensível.
18Além de lojas de veículos e estacionamentos privados, também observamos restaurantes peruanos e árabes (estes últimos com foco na venda de shawarma). A Praça Júlio Mesquita, atravessada no caminho, transparecia ser um espaço de passagem. Apesar de arborizada, não dispunha de bancos, condição que dificultava a permanência prolongada de pessoas em seu interior. Após alguns metros, passamos pelo tradicional Bar Brahma, no cruzamento das avenidas São João e Ipiranga. Havia uma movimentação em frente ao estabelecimento: aglomeração de pessoas, de carros da Guarda Civil Metropolitana (GCM), além de jornalistas. Algo ocorria, porém não conseguimos identificar o que era naquele instante. Soubemos, depois, que o prefeito da cidade estava no local a fim de cumprir alguma demanda. Após o cruzamento das avenidas, entramos num trecho com muitas obras. Diversas fachadas não estavam ativas, com estabelecimentos comerciais fechados, o que causava, em pleno centro, certos vazios e sensação de insegurança.
- 11 De acordo com Magnani (2012, p. 97), o circuito “é uma categoria que descreve o exercício de uma pr (...)
19Chegamos à Galeria do Rock, onde tivemos a oportunidade de transitar por alguns dos seus andares. A galeria constitui um ponto de cruzamento para diferentes circuitos juvenis (Magnani, 2012)11, sendo, por isto, marcada não apenas pelo consumo, mas também por formas de sociabilidade. Conta com lojas de diferentes tipos, com oferta de produtos alternativos. Cada andar tinha como foco alguma cultura urbana, como skate, hip hop, rock, reggae, tatuagem, etc. É comum que adeptos destes diferentes universos venham para galeria para encontrar outros conhecidos, para passar o tempo, para ficarem por dentro de todas as novidades. De modo concomitante à presença destes que participavam do underground paulistano, o local também recebia uma considerável visita de turistas, os quais faziam fotos e observavam as vitrines e demais frequentadores habituais com um misto de euforia e estranhamento.
Imagem 3 - Desenho da vista a partir da Galeria do Rock.
Crédito: Mariana Teixeira.
20A varanda curvilínea da Galeria, posicionada de frente para a avenida são João, convida nossos olhares para contemplação da paisagem, que emoldura a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em composição com os demais edifícios e copas de árvores. Daquela perspectiva, os transeuntes e veículos quase ficavam despercebidos, uma vez que o verde das frondosas árvores camuflava uma porção de detalhes. Um olhar mais detido, no entanto, revelava um Largo do Paiçandu disputado por pedestres de passagem, vendedores ambulantes, moradores em situação de rua, pessoas esperando ônibus, dentre outros.
21Saímos da Galeria do Rock e resolvemos tomar o tradicional chá mate da avenida São João. Havia alguns estabelecimentos nas redondezas. Os funcionários da lanchonete foram muito cordiais, tinha uma interação próxima entre eles e os clientes. Eles ofertaram, inclusive, um chorinho, prática que consiste em adicionar bebida no copo para além do tanto previsto. Há tempos frequentamos esta parte do Centro e, com base em nossa frequência regular, consideramos que há um trajeto muito caro às diferentes culturas urbanas: envolve não apenas a Galeria do Rock e estabelecimentos de mate, mas também sebos, Galeria Olido, SESC 24 de Maio, demais galerias, além de espaços e equipamentos públicos, como Theatro Municipal, Praça das Artes, Vale do Anhangabaú.
22Em vista destas possibilidades, resolvemos, também, visitá-los. O primeiro local foi a Praça das Artes, edificação finalizada em 2012, que foi projetada com intuito de revitalizar o Antigo Conservatório Dramático Musical de São Paulo, ampliando-o de modo a conectar a rua Formosa com a avenida São João, criando assim um espaço de interesse cultural e também de passagem. Tal projeto compôs a estratégia de revitalização da região do Vale do Anhangabaú, uma vez que demarca uma das opções de acesso a ele, adota um estilo arquitetônico mais contemporâneo, utilizando materiais e traçados harmônicos, porém contrastantes com as edificações antigas, além de concentrar funções ligadas à arte e à música, o que impõe um caráter mais enobrecido ao conjunto.
Imagem 4 - Passagem da Praça das Artes para o Vale do Anhangabaú.
Crédito: Mariana Teixeira.
23Ficamos apenas em sua área externa, uma ampla área que dava acesso ao equipamento cultural. É um local que, apesar de uma considerável parte coberta, não favorecia a permanência. Optamos por tirar algumas fotos de suas passagens, a partir das quais foi possível ter uma vista dos prédios das redondezas e do Vale do Anhangabaú. Neste ínterim, caminhamos para tal local.
24A extensa área do Vale do Anhangabaú estava ocupada por inúmeras pessoas. Era horário de almoço, por volta das 13 horas, condição que favorecia sua ocupação por aqueles trabalhadores que estavam em momento de intervalo. Foi possível observar muitos deles com crachá e/ou com uniforme de trabalho, dispostos pelos bancos, canteiros e demais áreas que possibilitavam descanso. Sentados sozinhos ou em grupo, pareciam relaxar em meio à correria dos afazeres: conversavam, namoravam, fumavam, navegavam na Internet pelo celular, colocavam a conversa em dia. A sociabilidade ocorria não apenas entre aqueles que pertenciam a um mesmo círculo profissional, mas também entre pessoas supostamente estranhas umas às outras. Prova disso foi quando observamos a interação entre dois citadinos em situação de rua com um grupo de trabalhadores. A interação, por sua vez, não foi pontual: envolveu, durante minutos, conversas sobre assuntos variados e trocas de experiências. Esta situação acaba por contrastar o distanciamento, o caráter blasé, a atitude de reserva tão cara aos centros metropolitanos.
25Resolvemos nos sentar num dos bancos de concreto a fim de acompanhar as demais dinâmicas relacionais e as formas de apropriação transcorridas no Vale do Anhangabaú. Conforme Machado (2022) abordou em outra publicação, o local teve a sua reforma concluída recentemente, em 2021. A intervenção que nele se incidiu fora permeada por muitas controvérsias, algo decorrente, também, da metodologia empregada no planejamento, qual seja, a de uma “cidade para pessoas”, capitaneada pelo arquiteto urbanista dinamarquês Jan Gehl. Objetivava-se garantir, através de uma inversão de escala, um ambiente acolhedor para pessoas de modo que fomentasse as suas permanências no local. Contudo, a crítica feita se deve ao fato do planejamento ter preterido das intenções certas pessoas, como as mais vulneráveis que historicamente ocupam o centro. Este desprezo, portanto, apenas realocaria as desigualdades: por um lado a região teria a frequência de um novo público consumidor, porém aqueles que padecem pelas misérias urbanas continuariam ignorados ou combatidos.
Imagem 5 - Desenhos do Vale do Anhangabaú.
Crédito: Mariana Teixeira.
26Apesar destas estratégicas pretensões, avistamos vários citadinos que colocavam em xeque o gerenciamento neoliberal do espaço público em questão. Havia usuários de drogas recreativas, pessoas em situação de rua, desempregados, pessoas que simplesmente estavam à toa, sem se envolverem em nenhuma atividade. Presenciamos skatistas em muitas de suas partes, sobretudo no Memorial do Skate (situação que será abordada detidamente no próximo tópico). Ademais, também foi possível acompanhar o ligamento dos jatos d’agua na esplanada, uma das novidades mais criticadas em razão do seu caráter higienista, e também muitas grades para delimitar certos espaços a partir das demandas da empresa que ganhou a licitação que garantia o gerenciamento do Vale do Anhangabaú.
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- 12 Para análises antropológicas sobre o skate de rua em São Paulo, ver Machado (2014; 2022).
28Neste “novo” Vale do Anhangabaú, há algo que se destoa de todo o resto que fora renovado: trata-se do Memorial do Skate. E usamos o termo “do skate” tendo em vista que é um espaço que tem a sua história e ocupação intimamente ligadas com a prática do skate de rua12. Para entender tais dinâmicas, é importante fazer uma pequena digressão. O Vale do Anhangabaú, antes de sua reforma, era um espaço com características de um parque urbano. Fora estruturado através de um projeto ganhador de um concurso público – de autoria dos arquitetos Jorge Wilheim, Rosa Grena Kliass e Jamil José Kfouri – e entregue ao público no início dos anos 1990. Nesta época, o centro tradicional de São Paulo passava por um período de deslocamento das elites econômicas para outras centralidades paulistanas, entretanto, a efervescência cultural característica da região continuou (Frúgoli Jr., 1995; 2000). Estes fatores, aliados à facilidade de transportes para se chegar ao centro e aos seus equipamentos urbanos, fizeram com que o Vale do Anhangabaú se tornasse um ambiente de prática e de sociabilidade para os skatistas de rua em São Paulo. A sua ocupação efetiva por parte destes frequentadores durou aproximadamente 30 anos.
29Em 2019, quando a reforma teve início, os skatistas se sentiram lesados não apenas pela destruição de um importante espaço para o skate, mas também pela falta de diálogo com o poder público e pela agressividade da medida. Eles então se organizaram e conseguiram mudar os rumos do projeto de reforma: ao invés da construção de uma pista de skate no local (atribuição que poderia mitigar, na percepção dos planejadores, os conflitos com os skatistas), negociaram a construção de um memorial feito com os granitos de cor rosa que constituíam o antigo Vale do Anhangabaú. Portanto, o Memorial do Skate se destoa do restante local exatamente pelas suas condições materiais: enquanto o espaço reformado é marcado pelo concreto cinza liso, o Memorial e o seu chão adjacente é de granito.
Imagem 6 - Vista parcial do Memorial do Skate.
Crédito: Mariana Teixeira.
30 O Memorial do Skate também se difere pela sua ocupação. Os skatistas ficam dispersos por todo o Vale do Anhangabaú, todavia, o Memorial é o local da prática e da sociabilidade por excelência, logo, por isto, carrega toda uma simbologia. Para andar de skate nesta área é preciso saber códigos específicos e adotar certas condutas, como veremos a seguir. Apesar de tais condições, há frequentadores que tentam lhe atribuir outros sentidos. Isso ficou bastante claro quando chegamos ao espaço. Havia poucas pessoas andando de skate, afinal, o sol estava a pino. Porém, nos degraus mais altos (o Memorial é constituído numa ilhota com vários degraus, numa espécie de arquibancada), onde uma árvore ao redor projetava sua sombra, uma equipe de trabalhadores da limpeza da prefeitura descansava e conversava durante seu horário de almoço. Outros citadinos, também trabalhadores do entorno, estavam sentados nas redondezas, e faziam o uso de maconha.
- 13 Correria, conforme Machado (2014), é um termo usado por vários grupos urbanos e denota uma série de (...)
- 14 Segundo Machado (2022), vivência, dentro do universo skatista, exprime outras dimensões da sociabil (...)
31 No momento em que estávamos no Memorial do Skate, detectamos apenas três skatistas: um pré-adolescente, mas que já apresentava um alto nível técnico de manobras, e outros dois jovens, os quais estavam captando imagens em vídeo para depois divulgá-las nas redes sociais e na mídia especializada. Estavam, segundo os próprios, trabalhando, fazendo suas correrias13. No restante do Vale do Anhangabaú, fora da área do Memorial, alguns skatistas também praticavam suas manobras, entretanto, o nível técnico destes era bem inferior. Eles utilizavam o espaço de maneira despretensiosa, isto é, estavam na vivência14.
32 O Memorial do Skate se apresentou, nestas circunstâncias observadas, como uma área de uso misto, mas com grande afinidade para a prática do skate de rua. E, neste local, tal prática assume uma dimensão espetacularizada. Para andar de skate é necessário (ou no mínimo, recomendável) ter um alto nível técnico. Com efeito, é um lugar onde o skate é mais sério, há um maior comprometimento com este universo, tanto que diversos skatistas estão ali para fazer suas correrias. Diferente, afinal, do que ocorre no restante do Vale do Anhangabaú, onde a prática do skate está mais atrelada ao lazer e às vivências.
33A nossa caminhada direcionou-se ao destino final: a Galeria 7 de Abril, onde se localiza o Estúdio Ceda el Paso, iniciativa comandada por Jéssica Andrade, integrante do LabNAU/USP, em parceria com Ricardo Luís Silva. Encontramos os demais pesquisadores no local, e, na ocasião, houve o compartilhamento de experiências a partir dos olhares e impressões obtidas por meio dos diferentes trajetos realizados nesta centralidade paulistana. De maneira geral, é consenso que a região é marcada pela coexistência de múltiplas formas de citadinidade, por aproximações e distanciamentos, por vários sentidos citadinos e por demasiadas camadas de memória que ultrapassam gerações.
34O trajeto adotado pela nossa equipe, com as pausas em locais e horários escolhidos, nos permitiu observar a complexidade da vida urbana na centralidade tradicional de São Paulo, região onde se encontra diferentes perfis de usuários em uma intensa utilização cotidiana. Como observadores participantes, pudemos experimentar, ainda que brevemente, o mosaico de usos e modos de apropriação realizados nas ruas, calçadas, praças e edificações. Em determinados arranjos, a imponência e a dimensão dos prédios, ecléticos, neoclássicos, modernistas ou contemporâneos se projetam sobre a rua, valorizando-se, mas diminuindo, proporcionalmente, a escala humana. Contudo, é evidente, nas práticas sociais, maneiras criativas e táticas de contornar as forças que se impõem.
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