Uber e Táxi: um fenômeno global de particularidades locais

1Nicolau Sevcenko, em seu livro “A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa” (2001), utilizando a expressão “síndrome do loop”, nos lança o seguinte questionamento: o que significaria estarmos expostos às forças naturais e históricas, agenciadas pelas tecnologias modernas, alterando marcadamente a condição de vida das pessoas e as rotinas de seu cotidiano nas grandes metrópoles? (Ibid, 2001, p.13). Certamente, Sevcenko (2001) concordaria que o surgimento da mobilidade motorizada a nível global, uma tecnologia que valoriza o fluxo e o movimento nas cidades, fez emergir durante as primeiras décadas do século XX o ofício de transportar pessoas fazendo uso de automóveis.

2Segundo Mike Feathesrtone, em “Automobilies: an introduction” (2004), os automóveis não se tornaram apenas um veículo para viagens independentes ou diferenciação social, mas uma plataforma de múltiplos usos. Nesse sentido, taxistas e uberistas possuem mais coisas em comum do que com a maioria dos moradores de suas cidades. Estes, não só seriam fenômenos globais em termos econômicos e políticos, mas responsáveis por proporcionar o “encontro” nas metrópoles tecendo uma verdadeira rede que conecta os espaços aos indivíduos em Salvador (Agier, 2011).

5A principal diferença é que você não tem vínculo se você for o permissionário com terceiros, você só tem vínculo com a Prefeitura. No caso, que eu sou auxiliar, ainda tenho que prestar contas todo o mês ao proprietário do alvará. Então, nessas circunstâncias, é melhor ser permissionário. Porque aí você vai prestar contas a você mesmo. Declara imposto de renda, pagar INSS, a vistoria, os impostos que têm anual, você vai administrar seu dinheiro sozinho, você não tem que prestar conta a ninguém que você paga aluguel (Ent. Nilton Santos Conceição, taxista permissionário, 12 de maio de 2014).

7Uma realidade bastante presente entre os motoristas de táxi de Salvador é que, antes mesmo de realizarem este tipo de atividade, desempenham ou desempenharam outras profissões ou ocupações. O desemprego, a idade avançada, a falência de pequemos e médios empreendimentos foram circunstâncias determinantes para que se tornassem taxistas. Se encontram atuando como motoristas de táxi na capital baiana: ex-bancários, ex-operários, ex-empresários, ex-moto-boys, ex-motoristas de ônibus ou de caminhão. Outra parcela dos taxistas de Salvador corresponde àqueles que migraram do interior do estado para a capital, aqueles que ascenderam de condições socioeconômicas inferiores, a exemplo de office-boys, feirantes, camelôs, seguranças patrimoniais, zeladores de edifícios, garis, etc...

A maioria dos taxistas tiveram uma atividade, uma profissão antes de ser taxista, todo mundo. Eu antes era encarregado de armador, trabalhava na construção civil desde os 14 anos, que eu entrei naquele tempo a gente tinha assinada a carteira, classificar e ganhar o dinheiro então, eu trabalhei 20 e poucos anos. Quando a idade foi chegando eu não fui mais aguentando passei para táxi. A única coisa que adotei para eu ter uma dignidade uma velhice com dignidade. Então, a gente não ganha milhões, mais o sustento dá para levar. (Ent. Manoel Simplício Alves Filho (Bonitão), taxista auxiliar, 14 de ago. de 2013.

8Para a maioria dos motoristas o trabalho no táxi foi, ou é, mais uma consequência da vida do que uma escolha como projeto de vida. Muitos motoristas de táxi, no início, acreditavam que ao conseguirem novamente o equilíbrio econômico em suas vidas, recuperariam seus antigos empregos ou reabriam novos empreendimentos.

A primeira vez que eu fui ser taxista que eu entrei foi por necessidade entendeu, mas depois que eu voltei a segunda vez foi mas para ter um complemento de renda porque eu tenho um trabalho, sou empregado, em consequência de afastamento; então eu tenho outra profissão, eu trabalho com perfuração de petróleo e o táxi é o meu complemento de renda e por motivo maior para eu não ter que ficar parado, aí estava voltando a trabalhar na praça (Ent. Alzir Alves Farias, taxista auxiliar, 12 de ago. de 2013).

9Essa característica do trabalho no táxi em Salvador, o de ser compreendido entre alguns motoristas como sendo uma espécie de “bico”, segundo Eliot Freidson (1995, p.2) em “Para uma análise comparada das profissões”, corresponderia à posição baixa ou elevada dos taxistas na classificação da força de trabalho na cidade, as aspirações e origens sociais dos membros desse grupo de trabalhadores do volante, como também o grau de importância e o tipo de conhecimento e habilidade vistos como requisitos para esse tipo de trabalho.

10Já a chegada da Uber em território brasileiro em 2014, coincide com um período de crise econômica enfrentada pelo país, consequências da crise mundial no sistema capitalista em 2008. “As crises surgem quando as quantidades sempre crescentes de mais-valia que os capitalistas produzem não podem ser mais absorvidas lucrativamente (Harvey, 2013, p.28). A crise financeira do sistema capitalista do século XXI se explica pela facilidade em obtenção de crédito bancário, provocando um alto número de financiamentos com riscos de inadimplência. Então, os bancos criaram pacotes com dívidas de baixo e alto risco e vendiam para investidores em diferentes países que teriam o capital retornados com juros quando a dívida fosse quitada. O que não aconteceu, produzindo um colapso no mercado.

11Trabalhadores de suas respectivas áreas ficaram desempregados por conta das demissões em massa e, frente a esse cenário, tornar-se motorista por aplicativo, tal como a atividade de motoboy, “surge em um contexto de precarização do trabalho” (Miranda, 2014, p.5). Assim, uma alternativa imediata ao não reingresso no mercado de trabalho formal é tornar-se motorista de Uber para a garantia do seu sustento. Quando se encontram nessa condição de desempregado, ser motorista por aplicativo é um trabalho exclusivo.

Eu tava desempregado já tinha um tempo, tentando empreender em outras áreas, mas não tava dando muito certo. Tinha urgência em ter dinheiro, não podia investir em um negócio que poderia demorar de me dar um lucro imediato. Aí renovei minha carteira que já tava sem renovar fazia uns 10 anos, coloquei aquela atividade remunerada pra poder trabalhar e comecei. (Ent. Thiago, uberista, 08 de out. de 2018).

Eu fiquei desempregada, minha área é bem fechada, difícil encontrar oportunidade. Eu saí da área da indústria, trabalhei 10 anos na indústria petroquímica. Pedi pra sair de lá, não queria mais voltar. Quando tentei retornar, não encontrei nenhuma porta aberta. (Ent. Joice, uberista, 20 de set. de 2018).

13O que foi narrado por taxistas e uberistas da capital baiana sobre as causas e circunstâncias que os motivaram a ingressar nesta atividade, informam sobre as crises econômicas ou insatisfações individuais que conjuntas encorajam homens e mulheres a optarem por dirigirem um Táxi ou um Uber como forma de sustento. Suas realidades são bastante semelhantes no que tange aos eventos que antecedem o ingresso nessas atividades.

14O cadastro na plataforma da Uber necessita de pré-requisitos como a CNH, com a observação EAR, um atestado de Antecedentes Criminais emitido pela Secretaria de Segurança Pública (E) e o documento do veículo. A CNH com a observação EAR significa que o motorista está apto para dirigir com fins profissionais, de acordo com a exigência do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Para tanto, o motorista teve uma formação especial, isso implica em custo adicional de R$ 465,00 reais referente a abertura do laudo no Departamento de Trânsito (DETRAN), exames clínicos e psicológicos com validade de cinco anos.

15O CRLV é um documento também requisitado para ser enviado, junto aos demais, que devem ser digitalizados no aplicativo do motorista ou no site da empresa. O nome no documento do veículo pode estar em terceiros. Portanto, carros alugados de empresas ou particulares são permitidos no cadastro. Outros dados pessoais como endereço, número de telefone, comprovante de residência são informados no cadastramento. O motorista ainda inclui seus dados bancários para a transferência semanal de seus ganhos, sem nenhuma restrição quanto ao banco ou tipo de conta.

16“Do ponto de vista da empresa-app, o trabalhador tem uma posição de demandante do seu serviço de intermediação por meio de novas tecnologias e, portanto, contrata a empresa para se tornar usuário que produz efetivamente a mercadoria” (FONSECA, 2017:2). A plataforma digital possui um sistema de avaliação mútua entre passageiros e motoristas, no qual estes precisam permanecer com uma avaliação acima de 4.6 estrelas para se manter online. O esforço por parte da categoria em permanecer com uma média satisfatória se deve a fatores como: a não obrigatoriedade de todos os usuários os avaliarem, subjetividade das relações interpessoais e até o modelo do veículo, visto o status o qual carrega.

17Já que o uberista não precisa necessariamente utilizar o próprio carro, ele pode recorrer a terceiros ou a locadoras. Algumas das empresas de locação de veículos tem condições especiais para a categoria, como por exemplo: Localiza, Unidas e Movida. Os descontos no aluguel de veículos são ofertados em uma locação mensal, custando na faixa de R$ 1.600,00 reais, com uma franquia de quilometragem de 5 mil ou 6 mil quilômetros, a depender da locadora. Somado a isso, se exige um cartão de crédito para a caução no valor de R$ 700,00 reais.

19A dificuldade dos motoristas em saldar os valores cobrados pelas locadoras, mesmo com os descontos oferecidos a partir da parceria, virou um nicho específico nesse mercado. A prática consiste no financiamento de veículos por parte de um proprietário particular, geralmente uma pessoa física, para alugar ao uberista. O proprietário do veículo insere o locatário no seguro e é responsável por todos os custos do carro, como a manutenção, IPVA e seguro. A mensalidade do aluguel varia com a instalação ou não do kit gás, mas caso instalado, o valor varia em torno de R$ 1.800,00 reais e uma caução em dinheiro. A economia no combustível com o kit gás, se comparado com a gasolina, torna esse tipo de aluguel muito atrativo para quem roda nessa condição.

20A corrida é calculada pela Uber em Salvador, com base em uma estimativa que leva em consideração o Preço Base (R$ 2,50), Preço por Quilômetro (R$ 1,21) e o Preço por Minuto (R$ 0,21), além de uma parcela fixa de R$ 0,75 cobrado ao condutor pelo uso do serviço tecnológico da plataforma via licenciamento de software. O motorista parceiro fica com 75% da viagem, enquanto a Uber fica com os 25% restantes. Em contrapartida, os interlocutores apontaram, repetidas vezes, para uma mudança que acontece no sistema de cobrança, o qual “flutua” em até 40% do valor total da corrida. Entretanto, a empresa justificou que a única variação inferior nos valores das corridas se expressa pelo seu Projeto de Mobilidade Urbana.

21O Projeto visa atender regiões mais afastadas da cidade de forma diferenciada em relação ao preço, como a região da Avenida Suburbana e a região metropolitana de Salvador: Lauro de Freitas e Camaçari. Nessas zonas o Preço Base, Preço por Quilometro e o Preço por Minuto custam R$ 2,30, R$ 1,00, R$ 0,17, respectivamente. O Projeto de Mobilidade Urbana da Uber em Salvador, atinge localidades da cidade e região metropolitana onde o serviço público de transporte é insuficiente ou carente para a população. Os valores correspondentes a cada fator de cobrança são diminuídos minimamente para atrair mais corridas, pois “quando a lógica econômica fala de mobilidade é para definir um ideal técnico de produtividade” (Augé, 2010, p.108).

22No caso dos motoristas de táxi, o cadastro nestas plataformas digitais de carona remunerada (99 Táxi, Easy Táxi, Wappa, It Move, etc…) é efetivado através da consulta das mesmas documentações exigidas pela SETAX, acrescido do DUT referente ao automóvel. O automóvel pode tanto pertencer ao taxista permissionário, auxiliar ou locadora de táxi. Os permissionários de táxi em Salvador costumam cobrar de seus auxiliares de R$ 1.000,00 a R$ 2.000,00 reais por mês pelo aluguel do carro e do alvará. Nessas condições, os auxiliares têm que obter a cada mês um lucro de R$ 4.000,00 reais para poderem pagar o aluguel e sustentar-se a si e sua família, com o mínimo de dignidade.

23Já os donos de locadoras de táxi cobram de R$ 550,00 a R$ 700,00 reais por semana pela locação de um carro-táxi, incluindo o pagamento de possíveis multas de trânsito e manutenção dos carros. O cálculo do empresariado é que toda semana o taxista na condição de condutor lucre entre R$ 1.000,00 e R$ 1.300,00 reais. No mês, esses rendimentos equivaleriam entre R$ 2.600,00 e R$ 2.800,00 reais pagos às locadoras de táxi.

24As cooperativas que exploram o serviço de rádio táxi (Rodotáxi, Use Táxi, Elite Táxi e etc...) na metrópole baiana são constituídas em sua maior parte por taxistas na condição de permissionários ou de auxiliares. Através de um registro a Central de comunicação de cada cooperativa, nomeada pelos taxistas de “banda”, encaminham via frequência de rádio ou Aparelho de Navegação Automotiva (GPS) – PDA (Personal Digital Assistant) os endereços dos passageiros solicitantes das corridas. Por sua vez, a disponibilização desse numeral tem um custo aos taxistas cooperados. Cerca de 20% do valor das corridas realizadas é direcionado ao pagamento pelo uso desse numeral.

25O valor cobrado pelo numeral varia entre R$ 200,00 a R$ 430,00 reais mensais. Para tê-los por definitivo, os taxistas cooperados desembolsam cerca de R$ 10.000,00 reais pelo numeral. O taxista cooperado, ao se associar, também recebe uma máquina de cartão pagando mais R$ 30,00 reais por sua posse. Ainda é cobrado pela cooperativa R$ 1,10 reais por corrida paga com a maquineta. As cooperativas de táxi na metrópole baiana lucram de 20% a 25% em cima do valor final das corridas, sem ter os custos com o estacionamento no pátio desses locais que são pagos pelos próprios taxistas cooperados. Atualmente, muitas cooperativas de rádio táxi têm desenvolvido o seu próprio app, numa tentativa de acompanhar as novas formas de solicitação de transporte individual, que reconfigurou a mobilidade motorizada em Salvador.

26Rodar intensamente pela cidade de Salvador faz com que o uberista desenvolva uma rede preferencial de locais com ofertas de serviços necessários para a sua atividade. Essa rede de serviços é compartilhada pelos motoristas por meio de grupos de Whatsapp e Facebook em que estão inseridos. Dessa forma, os smartphones, em parceria com seus usuários, são, além de meros conectores entre o motorista e o aplicativo, produtores de espaços virtuais e reais de sociabilidades entre os motoristas.

27A rotina de rodar diariamente entre os espaços da metrópole soteropolitana em direção a diferentes destinos de viagens, torna o uberista um condutor do “não-lugar” (Certeau, 1998) por estar incessantemente em deslocamento. O rodar permite ao motorista conhecer diversificados espaços da capital baiana, logo, seu significado pode ser interpretado como o “caminhar” de Michel de Certeau;

Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar – uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e ínfimas (deslocamentos e caminhada), compensada pelas relações e os cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a Cidade. (Certeau, 1998:183).

28Os motoristas de táxi têm a oportunidade de conhecer a cidade de Salvador em seus múltiplos aspectos, ou seja, tanto o seu “lixo” quanto o seu “luxo”. Por meio de seus passageiros e clientes são levados a tomar conhecimento sobre as reais contradições e conflitos entre as regiões e bairros que constituem Salvador. É esse conhecimento que específica os “trajetos” e “circuitos” (Magnani, 2002) que os taxistas preferem ou não rodar o táxi com mais assiduidade.

29Este fenômeno que envolve ações espacializantes (o ato de ir), alternativas (o ato de ver), quadros sociais e movimentos, forneceria aos motoristas de táxi da metrópole baiana uma série de opções de “trajetos” (Magnani, 2002) pelos quais seria possível acessar os locais na cidade solicitados pelos usuários como destinos finais de suas corridas. Quando percebem que o movimento de passageiros ou clientes de táxi se encontra escasso, preferem se deslocar para outras regiões da cidade buscando conseguir corridas em outro “circuito” (Magnani, 2002), em vez de ficarem parados nas filas (Certeau, 1994, p.203).

30Taxistas pertencentes a cooperativas de rádio táxi tomam por base, para definirem seus “trajetos” e “circuitos” (Magnani, 2002) de preferência, a estatística realizada por sua cooperativa acerca das corridas realizadas nas diversas regiões da cidade. Esses números, explicam uma das muitas razões que fazem com que grande número de taxistas em Salvador busque disputar corridas em certos pontos e filas de táxi e não em outros, a exemplo dos pontos da Rampa (no bairro do Comércio), Rodoviária e Shopping da Bahia.

31Em outros casos, preferem a comodidade de estarem nas proximidades de suas residências, o que os levam naturalmente a conduzir em seus táxis pessoas conhecidas ou vizinhos de bairro, como também a possibilidade de usufruir de uma estrutura própria ou próxima: para almoçar, para uso de banheiros, acessar cantinas e abrigos adequados no intuito de melhoramento das condições de trabalho para os taxistas na cidade.

32Ainda, existem taxistas que tendem a preferir “trajetos” (Magnani, 2002) e frequentar “circuitos” (Ibid, 2002:24) específicos na cidade, constituindo uma rede entre motoristas: casas de massagem, boates, restaurantes, hotéis, locais de prostituição, de venda e consumo de drogas. Se durante o dia o taxista em Salvador desempenha a sua função mais óbvia, o de transportar pela cidade passageiros ou clientes para seus compromissos diários, à noite e de madrugada a maioria das corridas são negociadas boca a boca dispensando o uso do taxímetro, pois bons rendimentos em corridas se encontram atrelados a formas questionáveis de se ganhar dinheiro em Salvador.

De dia você trabalha, é taxista. De noite você é “bolo”. Você trabalha de noite, você tem que ver onde pisa, se, não você perde a perna perde tudo, por quê? A ideia do taxista é ganhar dinheiro. Então, se você tem o olho grande como se diz, o olho maior que a barriga… O dinheiro está lá, a forma de trabalhar está lá. Agora todas as formas são questionáveis e aí porque muita gente escolhe a noite (Ent. Adailton Varjão Santos, taxista auxiliar, 20 de jan. de 2014).

33O motorista de Uber também desenvolve, estratégias de trabalho individuais para maximizar seus ganhos. É semelhante ao taxista na cidade de Salvador na “elaboração das estratégias pessoais para concorrer a corridas na cidade” (MACHADO JUNIOR, 2016:118). Há uma constatação nos horários de demanda na cidade que variam entre os dias úteis da semana, quando é mais vantajoso rodar no período matutino e diurno. Entretanto, de sexta-feira a domingo, rodar a noite se torna mais atrativo nos ganhos com as corridas. As estratégias individuais se estabelecem numa relação intrínseca entre a cidade, suas sociabilidades, fluxos da dinâmica da mobilidade urbana (por exemplo, horários de congestionamento, manutenção na malha asfáltica), número de chamadas e a vida pessoal de cada motorista.

36A “tática”, como sugere Certeau (1998), desenvolvida pelos uberistas na capital baiana para aumentarem sua renda, é a prática de realizar corridas fora do aplicativo Através desse intermediário, o aplicativo, o passageiro consegue o contato do motorista e fecha corridas com ele, exercendo a sua liberdade de escolha. O motorista faz uma simulação da viagem no aplicativo do passageiro e cobra o valor conforme mostrado. Com isso, ele não paga a taxa de 25% cobrada pela plataforma e o seu ganho real aumenta. Apesar de ser uma prática condenada pela empresa responsável pelo suporte tecnológico, até mesmo com ameaça de expulsão do motorista, a iniciativa parte tanto dos uberistas como de passageiros.

Denomino (...) “tática” um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto com uma fronteira que distingue o outro como uma totalidade visível. (...). Ela não se dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. O “próprio” é uma vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não lugar, a tática depende do tempo, vigiando para “captar no voo” possibilidades de ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em “ocasiões”. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas (Certeau, 1998:45).

Eu tive pelo menos uma meia dúzia de pessoas que continuaram a fazer corridas comigo, alguns pagavam de imediato, outros pagavam depois no final do mês. Teve uma situação com um passageiro que eu fiquei sem troco, pela maneira de ser dele, ele deixou o troco comigo e falou que queria que eu levasse ele a outros lugares, deixou 38 reais na minha mão, sendo que foi a primeira vez que ele pegou viagem comigo. Ele todo dia ia para a academia com os filhos que era perto da casa da mãe dele, da Cidade Baixa pro Cabula. (Ent. Thiago, uberista, 10 de out. de 2018).

37A relação direta do uberista com o cliente gera prejuízos para a empresa por ela apenas oferecer o suporte tecnológico, o que explica também a sua punição caracterizada pela expulsão do motorista da plataforma. Nesse sentido, o aplicativo é superado pelo contato face a face. Porém, esse trabalhador urbano se encontra em uma zona de vulnerabilidade pela razão da sua instabilidade na profissão, que é crônica, e seus motoristas, “parceiros”, estão sempre ameaçados a passar para a terceira zona, a marginalidade. (Castel, 1997, p.23-24). A relação assimétrica dessa “parceria” entre a empresa e o motorista se expressa pelas ameaças feitas de desligamento do motorista à plataforma por razões já citadas. Portanto, a instabilidade é fruto da não garantia e não estabelecimento de garantias mínimas para um exercício da atividade com mais plenitude.

39A necessidade real e imediata de dinheiro para a sobrevivência material impede que o motorista simplesmente pare de rodar e tente uma oportunidade no mercado de trabalho com garantias da CLT, como férias remuneradas e 13º salário. Aliado a isso, existem os gastos provocados pelo próprio exercício da atividade, como a parcela do veículo financiado, seguro, IPVA e a manutenção do carro. O motorista que possui apenas a sua força de trabalho, exerce a sua atividade já devendo, seja no aluguel ou na compra de um carro.

Comprei o carro achando que iria melhorar, mas eu não senti isso, continuei com a corda no pescoço. Eu tenho que pagar a prestação do carro que ficou 600 reais em 36 parcelas, a instalação do gás que foram 8 parcelas de 375 reais, 150 reais de seguro que eu não tô conseguindo pagar faz 3 meses. Até a parcela do carro eu já atrasei. O que aumenta a minha tensão no trabalho, gerando um enorme cansaço e afetando até o meu psicológico. Mas no momento eu preciso continuar (Ent. Joice, uberista, 20 de set. de 2018).

40No tocante aos taxistas, o que existe é uma relação de amor e ódio com a cidade de Salvador. Tal condição se expressa através de problemas como: estresse provocado pelos engarrafamentos, pela violência e falta de segurança, condições de trabalho precárias, concorrência com clandestinos, a invasão de seu mercado por vans de empresas privadas de turismo, app’s de carona remunerada, sindicato e associações pouco representativos, abuso de autoridade da Polícia Militar, da SETAX e da Transalvador, altos custos proporcionados pelas indústrias dos combustíveis e automotiva para a manutenção dos carros acompanhada por uma tarifa defasada em relação a outras cidades do Brasil, as diárias cobradas pelo aluguel de carros-táxi, multas, notificações e um “planejamento urbano de gabinete” que transforma os espaços na cidade sem consultar aqueles que realmente a fazem.

41Se “cada taxista tem seu nível” estabelecendo para si os “trajetos” e “circuitos” (Magnani, 2002) de sua preferência para disputar corridas, os que rodam táxi na Orla Marítima da cidade por medo de assaltos não gostam e até mesmo se negam a realizar corridas para a região da Cidade Baixa e do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Consciente da realidade social de contrastes que caracteriza a metrópole baiana, os taxistas tendem, de modo geral, a desenvolver certo preconceito e praticar a discriminação junto a passageiros que queiram se deslocar de táxi para regiões da cidade consideradas periféricas, a exemplo dos bairros do Pau Miúdo, Fazenda Grande do Retiro e São Caetano, Lobato, Valéria, Alto de Coutos etc.

42Já taxistas que possuem familiaridade com a região do Subúrbio, por serem residentes nela ou frequentadores, sentem menos a sensação de insegurança nestes locais em comparação aos taxistas que rodam na região da Orla Marítima. De qualquer forma, para a maioria dos taxistas de Salvador que rodam em pontos de táxi onde a incidência de corridas em direção ao Subúrbio e Cidade Baixa é bastante grande, é prudente que detenham certo conhecimento sobre os bairros e seus locais de risco.

43Quando taxistas e usuários negociam os “trajetos” e “circuitos” (Magnani, 2002) que desejam ser deslocados na cidade, estes ganham configurações negativas ou positivas conforme a região. Neste caso, as diferenças e contradições existentes entre as regiões das metrópoles são, em sua maior parte, construídas pela desigualdade que marca as malhas de conexões e acessos (não só os físicos) que articulam os bairros do Subúrbio Ferroviário – e considerados periféricos de Salvador –, aos centros econômicos, de trabalho, lazer e consumo da cidade (Telles, 2010, p.100).

45Em linhas gerais, semelhante aos motoristas de Uber, mesmo que os taxistas de Salvador tenham consciência sobre sua real situação e anseios enquanto classe trabalhadora, possuem grande dificuldade de mobilização política por conta de sua condição de trabalhador autónomo. No caso específico dos taxistas, há um grande distanciamento entre a maioria dos taxistas, Sindicato (Sinditáxi/BA), Associações (AMT) e o Município. Esse descrédito em seus atuais representantes se explica pela história de corrupção no Sinditaxi/BA. Recentemente, a demora com o processo de regulamentação e instituição de parâmetros para o uso e exploração dos aplicativos de carona remunerada no município de Salvador tem provocado inquietude e dúvidas entre os taxistas sobre o futuro da categoria.

46Já os uberistas, em termos representativos, possuem duas entidades sindicais, o Sindicato dos Motoristas por Aplicativo e Condutores de Cooperativas do Estado da Bahia (SIMACTTER-BA) e a Associação dos Motoristas Profissionais de Aplicativos da Bahia (AMPABA). O SIMACTTER-BA possui benefícios ao motorista sindicalizado, como assessoria jurídica, retirada e defesa de multas, reboque 24 horas, desconto em adesão de seguros, Mandato de Segurança, em caso de veículo apreendido por qualquer órgão público, descontos em serviços de manutenção veicular e barbearia. A AMPABA possui uma semelhante rede de produtos para seus associados, com diferenças de descontos em serviços médicos e ensino superior ou técnico em uma instituição de ensino privada. Podemos perceber que ambas as representações buscam oferecer benefícios em “parceria”, reproduzindo, de certa forma, a própria lógica da Uber.

47As associações e sindicatos dos motoristas por aplicativo concentram um número mínimo de filiados diante a totalidade dos profissionais que seriam cadastrados em Salvador (25 mil motoristas, somados todos os aplicativos). Em contrapartida, atuação sindical desta categoria realiza convocações para atos no que tange alguma decisão pública sobre a profissão de motorista por aplicativo. Como por exemplo, o acompanhamento da votação do relatório da Comissão de Constituição de Justiça do Município sobre a PL258/18 que propôs regulamentar o transporte por aplicativo na cidade e teve, entre os principais pontos no texto original, a limitação a apenas 7.200 motoristas e idade limite de cinco anos para o veículo.

Territórios fluídos: filas, pontos e espaço urbano

48Os espaços na capital baiana, particularmente os pontos de táxi, se tornam espaços próprios de produção de cultura dos taxistas. Se formam e se desformam, são frequentados distintivamente durante o dia, a noite e madrugada e disputados entre os taxistas e outros da rua, segundo a importância de sua localização, seu entorno e da grande demanda de clientes ou passageiros pelo serviço de táxi. A percepção da necessidade de se instituir um ponto de táxi em determinado local da cidade advém dos próprios taxistas. Quando percebem que existe a demanda por táxi, estes passam a frequentar diariamente o mesmo local constituindo uma fila.

49O procedimento seguinte é comunicar a SETAX encaminhando uma solicitação por intermédio do Sinditaxi/BA ou Associações de taxistas (AMT), um pedido de regularização do ponto e da fila de táxi que na prática já existem. Após regularizado o estabelecimento dos pontos de táxi, a constituição das filas devem obedecer a um número limite de carros (especificada por meio de placas e pintura no asfalto) determinado pelo órgão fiscalizador GETAX, na medida em que o local de escolha para sua implementação não obstrua o fluxo normal do trânsito nem ofereça risco de ocorrências de acidentes.

50Por outro lado, apesar de serem instituídos por órgão subordinado ao Município, a existência e multiplicação dos pontos e filas de táxi oficiais em Salvador depende da percepção associada ao conhecimento que os taxistas vão acumulando, diariamente, sobre as transformações que ocorrem na cidade e a afetam em seu ritmo e cotidiano. Ao contrário dos pontos e filas de táxi oficiais, em sua maioria localizados nas vias principais da cidade e bastante visíveis aos possíveis usuários, existem aqueles localizados nas ruas internas dos bairros de Salvador. Como espaços “ilegais”, estes pontos de táxi não oficiais em alguns casos nascem pelo encontro entre várias ruas, regiões ou bairros com circuitos de consumo desenvolvido e que, de preferência, sejam saídas para vários lugares favorecendo o fluxo de coisas e pessoas.

51A maioria dos taxistas compreende que a emergência e continuidade dos pontos de táxi além de estarem relacionados à percepção dos motoristas, ao potencial socioeconômico oferecido pela região ou bairro de sua localização, se acrescenta o vínculo que os taxistas constroem junto àqueles que residem, trabalham ou simplesmente são frequentadores destes locais – público este que sempre que houver a necessidade irá fazer uso de seu táxi se tornando alguns ao longo dos anos clientes fiéis.

52O ponto de táxi do Jardim Brasil, bairro da Barra, por exemplo, não é um ponto de táxi oficial, mais existe há cerca de 20 anos. Observei, a partir desse dado correspondente ao tempo de existência do ponto de táxi, a possibilidade de conhecê-lo mais. Buscando saber sobre sua informalidade decidi entrevistar o proprietário do bar Nova Schina (atualmente fechado), utilizado pelos taxistas deste ponto como abrigo contra as intempéries do clima e necessidades fisiológicas, como beber água ou ir ao banheiro. Segundo o empresário, o ponto de táxi já existia bem antes da proliferação de bares e outros empreendimentos como boates, restaurantes e hotéis na região.

Aqui não é ponto de táxi (Jardim Brasil), mas nós estamos aqui porque isso aqui já existe há mais de 20 anos. Não é ponto oficial. A demanda dos moradores fez com que fosse criado o ponto (Ent. Nivaldo Rodrigues, taxista permissionário, 12 de ago. de 2013).

Eu só tenho 8 anos aqui, entendeu. Ele pode ter até 20 anos, mas eu tenho certeza de duas coisas: primeiro, que não é um ponto oficial você não vê nenhuma placa e nem delimitada a área pela Prefeitura; e segundo, porque esse ponto só se tornou ele, está aí, existe há 20 anos, não é por causa do bar, pois até 8 anos atrás essa rua não tinha movimento de bares, esses taxistas que operavam pela parte da manhã que inclusive são outros taxistas, não esses que rodam à noite, faziam ponto aqui a fim de atender à demanda dos moradores da região da circunvizinhança mesmo, não foi por causa do bar. A atividade de táxi desse ponto só se tornou por causa do bar de oito anos para cá e muito à noite, porque os bares não funcionam durante o dia exceto finais de semana e feriados, entendeu. (Ent. Everaldino Lins Costa Junior, proprietário do bar Nova Schina, atualmente fechado, 12 de ago. de 2103).

53Os taxistas desse ponto de táxi rodavam principalmente pela manhã atendendo às corridas solicitadas pelos residentes do bairro e circunvizinhança. A ascensão de uma vida noturna, motivada pelo turismo já desenvolvido no bairro, deu um novo fôlego econômico ao local, não demorando muito para que um outro grupo de taxistas passasse a ocupá-lo também durante a noite e madrugada. Os taxistas desse ponto de táxi afirmaram que a condição irregular do ponto de táxi os deixa na mira das canetas e dos blocos de multas dos agentes fiscalizadores do trânsito (Transalvador), o que produz uma antipatia crônica entre o punido e o punidor.

54Outra característica bastante interessante observada no ponto de táxi não-oficial do Jardim Brasil é sua capacidade de se formar e de se desformar desaparecendo e aparecendo em outro lugar durante as 24 horas do dia, devido a um circuito de consumo que nesta região se desenvolveu. Informaram os taxistas que frequentam este ponto de táxi que de segunda a quarta-feira estes constituem fila no cruzamento entre as ruas Augusto Frederico Schmith, Recife e Marques de Caravelas atendendo, principalmente, à demanda por serviço de táxi dos moradores locais, possíveis turistas hospedados nos hotéis próximos ou frequentadores dos muitos bares e restaurantes que ali existem.

“O barzinho ali já sabe, todos os empreendimentos aqui já sabem que tem táxi aqui. Então, existe um circuito aqui que demanda táxi. Quando fecha isso aqui (os bares e restaurantes) a gente já sobe ali para o lado da boate (Bohemia – Tarantino) que fecha mais tarde, todo mundo já sabe que ali vira ponto de táxi. A gente já se desloca para lá para cima” (Ent. Alzir Alves Farias, taxista auxiliar, 12 de ago. de 2013).

55A partir de quinta-feira a domingo, por volta de 00:00 hora, a fila do ponto de táxi transfere-se para as proximidades da boate Tarantino Art Bar e do Bohemia Music bar (atualmente fechados), ambos os estabelecimentos localizados na parte inicial da rua Augusto Frederico Schmith. A importância do entorno onde estes se localizam para a formulação das estratégias dos taxistas na disputa por corridas, é um exemplo contundente de como a lógica de funcionamento da infraestrutura urbana de Salvador e suas atividades diversas influenciam também na organização dos espaços (pontos de táxi) na cidade e consequentemente na mobilidade dos taxistas por ela.

56Se os pontos de táxi oficiais em Salvador são instituídos pelo Município num movimento de cima para baixo em relação aos taxistas, as filas seguem o sentido contrário. Num movimento de baixo para cima as filas de táxi são formadas, organizadas, negociadas e disputadas pelos próprios taxistas na cidade. Impondo sua ordem as filas de táxi os motoristas produzem espaços próprios na metrópole baiana, o que as transformam em excelentes observatórios de situações ordinárias ou os imponderáveis da vida urbana em Salvador.

57Na fila de táxi, dentro ou fora de seus automóveis a espera de passageiros ou clientes para realizarem corridas, os taxistas de Salvador possuem uma posição privilegiada na rua, o que os habilita a falar com propriedade sobre a rotina da capital baiana como poucos. Mas rodar táxi em Salvador não se resume apenas a estar estacionado numa fila a espera de corridas. Os taxistas mesmo parados continuam a negociar, não mais corridas, passageiros ou clientes, mas com outros que assim como ele vivem ou sobrevivem da rua, particularmente, da relação que mantém com as filas de táxi.

58Pelo que disseram, à maioria dos taxistas, no entorno das filas de táxi coexistem realidades e dinâmicas sociais paralelas produzidas por outros da rua, que se voltam para os taxistas como estratégia de sobrevivência. Conscientes, os taxistas de Salvador sabem que nas filas de táxi não só se negociam corridas, mas relações sociais. Observadas dessa forma, as filas de táxi logo ganham significado para outros trabalhadores da rua na medida em que concebem as filas de táxi como espaços também seus para viver ou vender. Em certos momentos, na praça, são com esses outros da rua que se conversa um pouco abrandando a solidão que o taxista sente em certos instantes na cidade.

[Adriano]: O táxi, não só quem está dentro do carro, mas também as outras pessoas que estão na rua trabalhando como a gente, a gente mantém relações, isso é verdade mesmo. Tem um cafezinho aqui mesmo que gasto numa faixa de uns 4 reais a partir da noite. Tem as pessoas que lavam o táxi, também tem os caras dos postos de combustíveis de gás que sobrevivem através do taxista, porque a maior frota de carros que consomem o combustível gás são os taxistas, fora nossa família e muitas pessoas ao redor. [Cleydson]: Com as pessoas que também estão na rua a gente tem que levar e relevar, na boa. Gente de rua vive na rua, está em contato direto com a gente aqui, às vezes pede um dinheiro ou outra coisa como comida, a gente às vezes dá (Ent. Adriano Luciano Vieira e Cleydson da Costa, taxistas auxiliares, 12 de maio de 2014).

59O fato é que, de uma maneira ou de outra, em níveis distintos, todos esses que vivem, sobrevivem e dividem os espaços na rua (taxistas, uberistas e outros) possuem certa semelhança e isso contribui para aproximação. Por sua vez, o “rodar uber” gera ao motorista um conhecimento prático de regiões com mais chamadas em determinados horários, geralmente situadas em bairros centrais como Pituba, Itaigara, Rio Vermelho, Barra. Apropriando-se desse conhecimento prático dos motoristas, houve uma atualização recente no aplicativo da Uber que notifica ao motorista parceiro online sobre regiões movimentadas, a sua proximidade e como chegar até elas.

60A forma como o uberista atribui um significado próprio de utilizar o espaço público da cidade como meio de trabalho leva em consideração os fluxos de chamadas, em um saber específico da vida social soteropolitana. Sobre as megacidades, Magnani (2002) fala:

Os atuais grandes centros urbanos não podem ser considerados simplesmente como cidades que cresceram demais – daí suas mazelas e distorções. A própria escala de uma megacidade impõe uma modificação na distribuição e na forma de seus espaços públicos, nas suas relações com o espaço privado, no papel dos espaços coletivos e nas diferentes maneiras por meio das quais os agentes (moradores, visitantes, trabalhadores, funcionários, setores organizados, segmentos excluídos, "desviantes" etc.) usam e se apropriam de cada uma dessas modalidades de relações espaciais” (Magnani, 2002).

61O conceito elaborado por Saskia Sassen de “cidades globais” ganha significado importante para a assimilação do encadeamento do motorista de aplicativo com a cidade, no contexto expansionista da globalização na atualidade. O aplicativo se torna o “espaço de fronteira” ao passo que é um intermediário comandado por interesses transnacionais por meio dos seus algoritmos.

As cidades globais são os espaços de fronteira da atualidade. Eu defino a fronteira como uma zona onde atores de mundos diferentes têm um encontro para o qual não há regras estabelecidas. (...). Em alguns casos, este espaço tem uma forma visível. Em outros, mais evasiva, como no encontro com a pobreza e a falta de moradia em Nova York ou Paris, lugares que não achamos possível isso acontecer. Ou também nas interações múltiplas e diversas entre pobres e ricos, idosos e jovens, policiais e negros, práticas religiosas diferentes. (Sassen, Saskia. Entrevista concedida a Revista AU. Entrevistador: Roberto Boettger. 2016)

63Com os primeiros atores, o conflito ocorre devido ao embarque e desembarque de passageiros na entrada do shopping pela Alameda Salvador, onde está situada uma fila de táxi. Já com os ficais de trânsito, na aplicação de multas aos ubers por estacionarem ou pararem na zona azul sem pagar, e, em locais em que há placas sinalizadoras de proibição de estacionar e parar.

65Os pontos criados pelos uberistas são diferentes dos pontos e filas de táxi na capital baiana, pois as corridas não são negociadas e disputadas pelos motoristas porque as chamadas são direcionadas a partir do aplicativo. E tampouco foi criado pelo Município um local próprio para eles. Desse modo, não importa a posição ocupada numa fila de carros porque os algoritmos calculam a menor distância e menor tempo que o motorista se encontra da corrida solicitada.

66Todavia, a avaliação é um critério meritocrático de distinção nesse cálculo, ao passo que exista uma categoria denominada de UberVip, que se caracteriza por uma avaliação superior, com um alto número de viagens, logo, também elevada taxa de aceitação e baixa taxa de cancelamento. Quando essa categoria é solicitada pelo passageiro, mesmo que haja um UberX com mesma distância e tempo do passageiro, o motorista adequado ao critério fará a corrida.

68Na produção desses espaços urbanos, os motoristas por aplicativo contam com os vendedores de comida na rua para a sua alimentação. Na Rua Coronel Rehem, lateral com o Teatro Sesc Casa do Comércio, estão presentes diversos comerciantes com produtos mais variados (alimentos, acessórios de smartphone, lava-jato), que se instalam na calçada, ou estacionam seus carros munidos de suas mercadorias.

70Ali se estabeleceram e foram surgindo a presença de comerciantes como a de vendedores de “quentinhas” e café. Podemos observar que existe uma necessidade para quem trabalha rodando pelas vias citadinas de uma coletividade organizada com condições de infraestrutura mínimas para a formação de filas ou pontos, o que também contribui para a produção de relações sociais.

72A escolha dos uberistas pelo “street food” em vez do “fast food” (DULTRA, 2012) se baseia inicialmente por fatores econômicos, pois os preços desta segunda categoria são mais elevados, mas também porque não alimentam como as iguarias de Niltinho e Zuca. A partir da experiência prática, o motorista elege suas preferências baseadas na qualidade do alimento consumido. Enquanto autônomo e, portanto, trabalhador informal, consome um produto de um outro trabalhador que está, geralmente, na mesma condição que a sua, além deste produzir um tipo de alimento que tem uma carga simbólica marginal compartilhada pela sociedade envolvente.

73Apesar do consumo das comidas de rua ser de baixo valor, quando acumulado pelos dias trabalhados, se torna uma despesa considerável na sua renda. Opções para amenizar este gasto são postas em prática por alguns motoristas que revelam suas estratégias:

Eu não tenho muito esse costume de me alimentar na rua. Eu levo a minha comida toda no carro, não que eu não goste né? Dá pra ver pela pessoa, eu adoro. Mas é a questão financeira mesmo, economizar (Ent. Joice, uberista, 20 de set. de 2018).

Para fazer um lanche, eu evitava comer em lojas de conveniência. Eu tinha a prática de ir aos supermercados e comprava um lanche, comia no carro a depender da situação, principalmente na madrugada. Comprava pão, queijo, presunto, refrigerante ou suco, fazia o sanduíche. Dentro do carro eu lanchava, ali eu trabalhava, era assim que eu me virava. Tinham supermercados perto de locais de grande movimento que ficavam abertos até meia noite, como o Bompreço do Rio Vermelho. E tem o Extra na Paralela que é 24h, já entrei ali 4:40h da manhã pra poder comprar alguma coisa pra comer (Ent. Thiago, uberista, 10 de out. de 2018).

74Do que aqui foi exposto, tanto taxistas quanto uberistas produzem espaços próprios na capital baiana. Estes espaços na cidade possuem como características a fluidez, a (re)atualização e a (re)organização espaço/temporal. São compostos por camadas de significados, compartilhados entre taxistas, uberistas e tantos outros que vivem e sobrevivem da rua, conduzindo suas ações, a partir de suas práticas, experiências e estratégias, que se encontram diretamente ligadas ao ritmo do fluxo de pessoas, coisas e espaços, que se retroalimentam na metrópole baiana (Müller; Machado Júrnior, 2016).

Considerações finais

75Em finais do ano de 2016, entre os taxistas de Salvador, acreditava-se que o implemento do Uber e outros app’s de carona remunerada, eram apenas especulações, boatos. Não demorou muito, proliferava o número de uberistas rodando pela cidade (chegando ao número atual de 25.000 motoristas), onde o impacto na demanda por corridas entre os taxistas se fez sentir fortemente. Nesse processo, as impressões negativas sobre a pessoa taxista afloravam entre passageiros e clientes ressentidos, o baixo custo cobrado pelo Uber pelas mesmas corridas realizadas por taxistas, curiosidade dos citadinos acerca do serviço e a facilidade em solicitá-lo via aplicativo baixado em celular, são aspectos que também contribuíram para sua rápida disseminação.

76Ao que tudo indica, o aplicativo Uber e outros app’s estão sendo facilmente incorporados ao “ethos” citadino dos moradores da capital baiana. Os motoristas de carro particular na condição de uberistas passaram a disputar espaços, lugares de consumo e corridas na cidade, atividade que historicamente é desempenhada por taxistas. Com isso, o Uber não só desestabilizou a relação taxista/usuário na metrópole baiana, mais do que isso, estabeleceu uma forte concorrência aos taxistas colocando em cheque a qualidade do serviço de transporte prestado, a qualidade humana, a urbanidade dos motoristas e a própria necessidade de existência do táxi, um verdadeiro colapso no interior desta categoria de trabalhadores urbanos.

77Como se pode perceber, a chegada da Uber estabeleceu um conflito entre a classe pioneira atuante e uma nova que se formava. Os motoristas por aplicativo mais antigos narram uma tensão nos embarques e desembarques, em estabelecimentos como shoppings e rodoviária, pela ocupação já marcada pelos taxistas nos pontos e nas filas. O bloqueio dos carros de uberistas nesses espaços, eram praticados pelos taxistas, seguido da ligação para Secretaria Municipal de Mobilidade (SEMOB), com o intuito de denunciar a atividade.

78Assim, passageiros e motoristas procuravam disfarçar que se tratava de uma corrida pelo aplicativo nesses locais. Os condutores escondiam o suporte com o smartphone para que não ficassem às vistas dos taxistas e fiscais de trânsito, e os passageiros encenavam a espera de um familiar ou amigo e escolhiam sentar no banco do carona quando estavam desacompanhados. O que, de certa forma, causava a sensação de decréscimo da distância social entre cliente e prestador de serviço.

80Por sua vez, não foram poucas as vezes que ouvi de taxistas, sobre colegas que estavam abandonando a nobre profissão para se tornarem motoristas de Uber, supostamente em busca de condições de trabalho e vida melhores. A maioria deles eram taxistas auxiliares ou vinculados a empresas locadoras que já não conseguiam pagar o aluguel de seus carros-táxi. Já as cooperativas de rádio-táxi sofrem porque o aplicativo Uber coloca em discussão a obsolência do serviço e da tecnologia de direcionamento de corridas (PDA - Aparelho de Navegação Automotiva), ou seja, a falência da relação de intermédio desempenhada pelas cooperativas entre os usuários, a negociação das corridas e os taxistas. Por isso, a pressa em produzir seus próprios aplicativos de solicitação de corridas.

81Entretanto, não considero o Uber nem os outros app’s de carona remunerada os grandes vilões ou o maior dos problemas dos taxistas da cidade de Salvador. A questão é que, os taxistas da metrópole baiana (os uberistas também), continuam a trabalhar em regime de autônomos ou como locatários, sem a existência pelo menos no campo legal, de classe patronal e de empregados. Sem ter assegurado os direitos como um trabalhador comum, tanto taxistas quanto uberistas, dificilmente irão ver modificações impactantes que lhes garantam algum tipo de seguridade social no pós-carreira. Desse modo, penso que alimentar qualquer tipo de conflito entre estes trabalhadores do volante é uma tentativa de escamotear as reais condições de exploração que ambos enfrentam na cidade e pelas quais, devem lutar politicamente juntos.