- 1 O financiamento de parte do trabalho de campo que deu origem a esse texto foi oriundo da bolsa prod (...)
1Habituamo-nos a acompanhar, por diferentes formas de mídia, fragmentos de grandes encontros mundiais organizados pela ONU para discussão de temas considerados fundamentais para o conjunto da população mundial. Essas reuniões, muitas vezes veiculadas com grande dramaticidade, têm sido vistas como momentos únicos em que o destino da Terra ou da Humanidade serão decididos.
2Pela sua estrutura, esses eventos em geral são entendidos como momentos em que a participação da sociedade civil, embora por vezes importantes para o curso das discussões, é minoritária em relação ao papel dos representantes e negociadores dos grandes Estados. Talvez os casos mais emblemáticos sejam os das Conferências Mundiais sobre o Clima, realizadas em 1992, no Rio de Janeiro e, em 2015, em Paris, em que os interesses dos países mais industrializados, ou em vias de industrialização, prevaleceram em relação à agenda de ONGs, de cientistas especializados na temática e de pequenos países. Nessa perspectiva geopolítica, as decisões de maior peso se dão em negociações entre os “Grandes” (Oliveira, 1992).
3Há diversas razões para que essa visão seja a dominante na opinião pública. Alguns países têm poder de veto nas decisões do Conselho de Segurança e, concomitantemente, a ONU não tem poder de impor as decisões tomadas em seu âmbito para o conjunto dos países do Globo. O princípio da soberania, exceto em casos muito específicos e de grande repercussão de desrespeito aos direitos humanos, faculta aos governos nacionais a possibilidade de não assinar as convenções e acordos ou de emitir reservas a trechos dos acordos.
4Esse texto parte de uma perspectiva diferente. Assentado em pesquisa realizada nos últimos anos em alguns eventos organizados pela ONU, em Nova York, para discussão de temáticas diversas, o autor e a autora desse artigo, sustentam a ideia de que para além dos interesses geoestratégicos dos maiores e mais influentes países no âmbito das relações internacionais, o peso de outros atores está longe de ser negligenciável em discussões específicas, sobretudo, aquelas que se dão no formato de conferências e encontros. Interessa-nos observar e analisar não a produção de consensos ou os interesses hegemônicos, mas este cenário como um campo em disputa e marcado por dissensos em níveis diversos. Representantes de ONGs, funcionários da ONU e de outras instituições multilaterais, cientistas e pesquisadores (alguns dos quais prestam assessoria para a ONU), jornalistas especializados, homens públicos com reconhecimento internacional, entre outros, influenciam igualmente as discussões e formação de “quase consensos”, em menor ou maior grau a depender da visibilidade de cada um desses atores e da conjuntura em que se realizam esses eventos. Para interpelar esse cenário, na esteira de outros estudos realizados por cientistas sociais acerca do modo como as decisões são negociadas no interior dessas organizações (Banton, 2015; Muller, 2013, Abèlés, 2011, entre outros) analisaremos alguns dos aspectos que envolveram as Abèlles em torno do “2016 High-Level Meeting on Ending Aids” (Encontro de Alto Nível Para Pôr Fim à AIDS, 2016). Evento que teve lugar na sede da ONU-New York, entre os dias 08 e 10 de junho de 2016 e que foi organizado pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), o qual assim apresenta seus objetivos:
O UNAIDS une os esforços com 11 organizações – ACNUR, UNICEF, PMA, PNUD, UNFPA, UNODC, ONU Mulheres, OIT, UNESCO, OMS e Banco Mundial – e trabalha em estreita colaboração com parceiros nacionais e globais para acabar com a epidemia da AIDS até 2030 como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. (UNAIDS, 2017)
- 2 Como parte de uma ampla agenda acerca da construção dos Direitos Humanos analisamos a interface pol (...)
5Esperamos com esta análise nos aproximar e contribuir com aqueles que argumentam em favor das pesquisas sociológicas e antropológicas no interior de organizações multilaterais como forma de entender uma das modalidades sobre como se constroem os discursos sobre direitos2 em nosso tempo.
6Nosso interesse nesse processo, prende-se muito mais ao modo como os atores sociais interagem para ‘fazer’ a ONU funcionar, que às relações entre os Estados entre si, domínio, em geral de outro campo de estudos: as relações internacionais. Nosso foco são as relações sociais nesse contexto. Aquilo que para Muller (2013), significa tanto entender como as instituições pensam (no sentido dado por Mary Douglas, 1998) mas igualmente como pensam e agem os atores sociais no interior destes cenários e fora deles.
- 3 Último acesso 12 de outubro de 2022.
7Esse é um percurso de pesquisa ainda pouco explorado pelas ciências sociais brasileiras, a despeito das evidentes influências que eventos da ONU nas últimas décadas tiveram na legislação e na dinâmica social do país, a exemplo da Conferência de Durban, em 2001 (Eghrari, 2021). Em pesquisa realizada na plataforma Scielo com o descritor ONU, aparecem 130 títulos, se usarmos como filtro “Coleção Brasil”3. A grande maioria em periódicos de relações internacionais, embora haja de um a quatro artigos em revistas de sociologia, ciência política e feministas. O descritor “Nações Unidas” traz 328 títulos distribuídos nas áreas de relações internacionais, administração, economia, turismo, entre outros temas. Com este descritor, ampliam-se consideravelmente os títulos da área de saúde, com 107 registros, e em ciências humanas, 178. Percorrendo os periódicos chegamos, na Revista Dados, a dois títulos que dialogam mais de perto com o propósito de nossa pesquisa.
8Ítalo Beltrão Sposito, em artigo de 2019, intitulado Mudança na Política Externa dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos: Uma Análise Baseada nas Votações da Assembleia Geral das Nações Unidas, analisa as possibilidades de “Redirecionamentos na Política Externa (RPE)”, na América Latina entre 1945 e 2008, a partir de um recorte quantitativo das votações na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU). Já Marco Cepik e Giovanna Kuele (2016) analisam as operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), após o ano de 2001. A pesquisa se desenvolveu a partir de dois eixos: análise das modificações institucionais do Secretariado da ONU o trabalho operacional de três missões de paz.
- 4 Gois Filho, seguindo uma trilha lapidada por Mariza Peirano (2002) e Moacir Palmeira, explora a est (...)
9Interessante notar, no sentido de compreender a configuração do campo, que em nenhum dos títulos pesquisados, localizamos artigos recentes com trabalho de pesquisa na própria sede das Nações Unidas, em Nova York. O livro O Clube das Nações: a missão do Brasil na ONU e o mundo da diplomacia parlamentar, representa uma exceção, ainda que tenha sido publicado há cerca de 20 anos4. Paulo de Gois Filho, diferentemente do autor e da autora deste manuscrito, era um “quase insider”. Por questões familiares e ambições profissionais conviveu com diplomatas, conhecia os códigos e partilhava atributos. Sua etnografia mergulha de modo privilegiado no universo da diplomacia na ONU.
10Esse espaço produz dinâmicas específicas a partir de rede de relações em parte previamente formadas, mas que se atualizam e reconfiguram durante as reuniões e as interações nos corredores e nos espaços de alimentação. Esperamos, assim, contribuir para essa área fundamental de pesquisas. As dinâmicas próprias e as dificuldades, que não são poucas, de um trabalho nessa instância serão explicitadas adiante.
11A seguir, iremos contextualizar o percurso da luta contra a epidemia do HIV/Aids no sentido de circunscreve o lugar da ONU nesse debate, bem como o trabalho de campo realizado.
12A preocupação das organizações internacionais com o controle da epidemia da AIDS começa desde os anos 1980, com a realização da I Conferência Internacional sobre o tema em 1985, em Atlanta. Articulada conjuntamente pela OMS (Organização Mundial da Saúde, ligada à ONU), o Departamento de Saúde dos Estados Unidos e diversos institutos de pesquisa, essa conferência buscou dar visibilidade ao problema da epidemia da AIDS e, assim, incitar os governos a financiar pesquisas científicas sobre a doença e implementar políticas públicas de prevenção e assistência aos infectados (Knight, 2006).
13Essas preocupações estarão presentes a partir de então nas agendas de diversas instituições internacionais, inclusive da ONU/OMS, o que explica em parte a criação de um órgão específico para discutir as políticas públicas referentes à prevenção da AIDS. Trata-se da UNAIDS (The Joint United Nations Programme on HIV/AIDS), criada em 1996, com o objetivo de congregar os esforços no interior da ONU em torno da luta contra a AIDS, pois até então isso era feito por outro órgão da ONU, a Organização Mundial de Saúde (OMS), que tinha também outras atribuições.
14Assim, dentre as razões citadas oficialmente para a criação da UNAIDS, as principais eram a necessidade de uma resposta global à epidemia, de ajudar os países sem recursos e a de criar uma mobilização social com vistas a disseminar práticas de prevenção da doença (Knight, 2006).
15A dramaticidade da questão fez com que o tema se tornasse recorrente na agenda das instituições multilaterais, como se pode perceber no fato de que a partir de 1985 as conferências internacionais sobre o tema dar-se-ão com uma periodicidade anual até 1994, e bianual a partir de então. Fato raro no âmbito da ONU, onde as conferências e encontros sobre temas específicos obedecem a periodicidades superiores a 5 anos (Knight, 2006). Esses encontros foram importantes na formulação de políticas de combate à AIDS e na ação política para a redução dos preços de medicamentos de controle da doença.
16Paralelo a essas conferências, diversos outros meetings têm sido realizados sob a chancela da UNAIDS para discutir a questão. O “Encontro de Alto Nível” de junho de 2016 que acompanhamos, deu-se poucas semanas antes da XXI Conferência Internacional sobre AIDS, realizada entre os dias 18 e 22 de julho de 2016. Nesse sentido, a ideia do meeting, em que a presença de membros da sociedade civil era menor e mais técnica que nas conferências, era de avançar uma proposta inovadora que pudesse servir de referência para a Conferência.
17Os objetivos do Encontro de 2016 serão vistos como relacionados diretamente com os engajamentos de reuniões anteriores, como se pode notar na declaração que será votada pela assembleia geral da ONU ao final do Encontro. Segundo esse texto, os países representados na ONU não apenas se comprometem a respeitar os engajamentos anteriores como também se empenham a pôr fim à epidemia da AIDS até 2030.
18Em outras palavras, há uma clara intenção de associar as decisões tomadas como uma evolução natural de engajamentos acordados em reuniões anteriores. Mas, ao mesmo tempo, a declaração “reafirma” os direitos soberanos dos Estados em implementar essas políticas, levando em consideração as leis nacionais e as prioridades nacionais de desenvolvimento.
19Isso, sem deixar de pôr em evidência a universalidade dos direitos humanos. Essa referência pode ser interpretada como a reiteração de uma reivindicação de organizações da sociedade civil de incluir o combate à AIDS como um direito humano e, concomitantemente, como uma forma de vencer as resistências de alguns Estados em implementar medidas vistas contrárias às suas tradições religiosas e/ou culturais, como nos foi enfaticamente destacado por um funcionário da ONU que entrevistamos. Como veremos a seguir, esse tópico foi um dos mais debatidos e tensionados durante a realização do Encontro de 2016.
20Os principais resultados obtidos dos Estados nesse encontro foram o compromisso de por fim à epidemia da AIDS até 2030 e a introdução no documento final da necessidade de políticas focadas em grupos discriminados em vários países, a exemplo das mulheres, dos homossexuais e das trabalhadoras do sexo. Além disso, o enfoque na urgência de políticas antidiscriminatórias para esses grupos, vinculando as políticas de combate à AIDS aos princípios dos direitos humanos, foi visto por diversos interlocutores como uma vitória dos grupos militam em favor de políticas de controle da epidemia da AIDS.
- 5 Projeto intitulado “A Fabricação dos Direitos: A ONU como instrumento de normatização e homogeneiza (...)
21Como dito anteriormente, o trabalho de campo que deu origem a esse texto foi realizado em Nova York, EUA, entre os dias 28 de maio de 2016 e 05 de julho de 2016. Nesse período, a parte mais importante da pesquisa foi realizada junto à ONU (Organização das Nações Unidas), órgão que vimos acompanhando desde 2013, período em que realizamos Estágio Sênior na Princeton University, com apoio financeiro da CAPES, momento em que acompanhamos outros eventos de porte similar5. Naquele ano, seguimos “2016 High-Level Meeting on ending Aids”, também sediado na ONU em NYC, entre os dias 08 a 10 de junho, como já mencionado. No tempo mais largo do trabalho de campo, fizemos mais algumas visitas, entrevistas não gravadas dentro e fora da sede e circulamos pelo espaço em diferentes momentos.
- 6 Embora não possamos citar aqui as pessoas que tornaram possível essa presença nas dependências da O (...)
22A primeira dificuldade para quem se aventura a estudar a ONU é a possibilidade efetiva de realizar a pesquisa. Por razões de segurança, essa é uma organização de difícil acesso. Para entrar em suas dependências ou acompanhar suas atividades, precisa-se de uma autorização de algum setor interno, indicando as razões da visita. O que nem sempre é muito fácil de ser obtido, principalmente para pesquisadores que não são membros de outras organizações que podem participar de eventos específicos. Só conseguimos acesso ao evento aqui descrito através da mobilização de redes ampliadas de relações pessoais e profissionais, uma vez que o caminho institucional se apresentou infrutífero6. Em uma de nossas primeiras visitas fomos vistos com muita desconfiança, pois estávamos em meio ao processo de Impeachment da Presidente Dilma Housseff. Notamos que havia um grande receio de que fizéssemos alguma manifestação num momento político muito delicado. Tudo isso torna a pesquisa sócio-antropológica nessa instituição uma tarefa que exigiria um tipo de apropriação específica do trabalho de campo multi-situado (Marcus, 1998) ou cosmopolita (Appadurai, 1995). Não só porque as decisões são tomadas em diferentes etapas, tempos e lugares, com a participação de variados atores, mas também, porque as deliberações nesse âmbito obedecem a lógicas que são, ao mesmo tempo, globais e locais. Em outras palavras, mesmo em encontros realizados em um mesmo lugar e tempo, militantes de vária partes do mundo mobilizam lógicas, valores e temporalidades diversas. Do ponto de vista institucional, o primeiro passo para ter acesso a uma atividade oficial é o envio de correspondência ao setor organizador do evento para solicitar um passe. Isso é mais fácil para ONGs e associações com atuação pública em torno do tema abordado no evento que para indivíduos sem vínculos institucionais. De todo modo, no nosso caso concreto, as correspondências nem sempre foram respondidas e, quando o foram, ocorreram em um prazo que tornavam praticamente impossíveis as medidas burocráticas para viabilizar a viagem até New York (vistos, compra de passagens e reserva de hospedagem a preços abordáveis, envio de documentos para a organização do evento, etc.).
23Como dito, tivemos de agenciar diferentes redes para obtermos as necessárias autorizações para acompanhar parte do evento. Isso se deu, em alguns momentos, por ex-alunos de um dos autores inseridos em organizações internacionais que conheciam funcionários da ONU, na sede de New York; em outros momentos, pela proximidade de um membro da família de um dos autores com alguém do corpo diplomático brasileiro, o qual pode interceder junto à missão brasileira na ONU para que pudéssemos acompanhar algumas atividades com passe dessa missão.
24Esses expedientes não são incomuns entre os pesquisadores que elegem agências multilaterais como tema de pesquisa. Alguns se valem de elos com ONGs, sindicatos ou outras associações, outros postulam para o cargo de experts acadêmicos que prestam consultorias em torno de temas especializados, etc. O caso de Marc Abelès (2011) que obteve uma autorização formal da direção da OMC (Organização Mundial do Comércio) para que ele e sua equipe pudessem acompanhar todas as atividades não confidenciais da instituição, é uma possibilidade rara. Em geral, há que se encontrar estratégias variadas para ingressar nesse emaranhado e labiríntico mundo das burocracias internacionais e nas redes ampliadas dos atores que intervém nesse âmbito. Assim, por exemplo, segundo um colega, membro de uma equipe de pesquisadores franceses, após tentativas infrutíferas junto à organização, o grupo só teria conseguido acompanhar os eventos da reunião (RIO+20), em junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro, devido aos laços de parentesco da esposa de um dos pesquisadores com um membro da direção de um importante sindicato convidado a participar do evento. O que mostra o nível de imprevisibilidade do acesso ao campo quando se trata de pesquisas sobre o modo de funcionamento das organizações multilaterais. Essa imprevisibilidade está presente mesmo depois de se conseguir acesso, pois as credenciais para ingresso ora passam por uma rigorosa e demorada checagem; ora as regras são flexibilizadas e entra-se rapidamente na sede. Situação similar pode ocorrer no emaranhado de reuniões: às vezes é possível o acesso uma vez que se entrou no prédio; em outras, o processo é recheado de impedimentos burocráticos, catracas de checagem e deslocamentos por vários corredores. Essa dificuldade, frequentemente atribuída, como dito, à segurança está também e, talvez, sobretudo vinculada à necessidade de garantir uma certa representatividade dos atores da sociedade civil que estarão presentes nos espaços para os não diplomatas ou funcionários da ONU.
25Cremos que há aqui uma vontade em garantir que aqueles que terão acesso aos debates e, ainda que de forma limitada, poderão influenciar o voto dos diplomatas representando os estados nacionais, tenham alguma legitimidade para discutir as questões em foco. Além disso, espera-se que elas possam difundir as ideias e as resoluções votadas ao nível da ONU, atuando como caixa de ressonância aos valores hegemônicos no interior da instituição.
26Um exemplo desse desejo de usar os eventos da ONU como amplificadores das discussões em torno de uma temática julgada importante, foi-nos dado pela fala do moderador de uma das mesas redondas organizadas pela sociedade civil (cujo título era “Scaling local pharmaceutical production to end AIDS by 2030”). Ele incitou a audiência a usar os telefones celulares para difundir nas redes sociais o debate que estava correndo naquele momento para que “mais pessoas em torno da terra” pudessem acompanhar os temas discutidos. Essa busca pela repercussão midiática é algo que leva os funcionários da ONU encarregados da infraestrutura dos eventos a selecionar os atores que terão ou não direito a acompanhar as discussões.
27De todo modo, uma vez obtidos os passes para acompanharmos algumas das atividades previstas, pudemos conversar e entrevistar militantes da sociedade civil, funcionários de carreira da ONU e diplomatas. Desses eventos, pudemos acompanhar diretamente quatro e, através das filmagens difundidas na TV ONU, os outros restantes.
28O documento final, após discussão entre os representantes dos países membros da ONU, foi votado e transformado em documento oficial em uma reunião da Assembleia Geral da ONU no último dia do meeting.
29O encontro, como em geral ocorre na ONU, foi organizado de forma a dar voz a representantes da sociedade civil em meetings preparados para esse fim e, ao mesmo tempo, manter o espaço em que o poder decisório dos representantes dos Estados é exercido. Visto de um modo institucional, tudo parece ser decidido nos muros internos da ONU, quando os representantes dos Estados votam contra ou a favor dos documentos propostos. Na verdade, a assinatura de um documento é apenas um momento do longo processo de decisão sobre temáticas referentes a direitos humanos nas agências internacionais.
30De uma forma geral, os temas que mais apareceram nas falas dos palestrantes foram a questão do financiamento dos programas de prevenção e de assistência às pessoas que vivem com HIV, a focalização das políticas nos grupos mais tocados pela epidemia (transmissão materna, homossexuais, trabalhadoras do sexo, mulheres, entre outros), o papel central dos Estados na execução de políticas públicas de prevenção e tratamento da doença e a relação entre a AIDS e o desenvolvimento econômico e social sustentável.
31Assim, as cinco mesas redondas organizadas diretamente pela UNAIDS giravam em torno das temáticas julgadas mais importantes pelos organizadores e que, de uma certa maneira, traduzem os principais pontos e propostas lançadas pelo documento inicial de discussão, a saber: 1) o impacto da AIDS sobre o desenvolvimento econômico dos países atingidos pela doença; 2) a questão do financiamento das políticas contra a epidemia; 3) uma agenda para tornar acessível os medicamentos que controlam a doença; 4) a necessidade de políticas antidiscriminatórias contra os afetados pelo vírus; e 5) a necessidade de políticas focadas nas crianças e mulheres adolescentes e jovens para diminuir a transmissão da AIDS de mãe para filhos.
32Além dessas, para se ter uma ideia do escopo do evento, setores da sociedade civil propuseram uma série de 32 mesas redondas abordando temas que iam da necessidade de produção local das drogas para combater os efeitos da AIDS ao fim das discriminações contra populações mais vulneráveis à infecção pelo vírus HIV (como, trabalhadoras do sexo, LGBT e mulheres). Vê-se, portanto, uma maior abertura temática dos side events, os quais estão menos presos às formalidades diplomáticas e às suscetibilidades de alguns países membros quanto a certos temas.
33De todo modo, durante as mesas acompanhadas (in loco ou através de vídeos), pudemos perceber algumas das características do modo de funcionamento da ONU que explicam como alguns debates reverberam nas decisões tomadas internamente. Em muitas das falas durante as mesas redondas ou nas sessões plenárias dos representantes dos países membros, a ideia de que o “combate à AIDS era um direito humano” era recorrente, traduzindo assim, como anteriormente mencionado, a vontade de se criar certos consensos em torno das políticas de combate ao vírus. Isso não significava, obviamente, a ausência de conflitos e de críticas acerbas de organizações da sociedade civil contra os governos de alguns países. O objetivo dessas discussões parece ser tanto o de influenciar as decisões das representações estatais como também de reverberar os termos desses debates na sociedade civil internacional.
34Assim, na mesa redonda oficial “Leaving no one behind: ending stigma and discrimination through Social justice and inclusive Societies” a ideia geral foi de sublinhar o fato de que “a luta contra a AIDS era também uma luta pelos direitos humanos e contra as desigualdades sociais”, o que colocava a questão de políticas públicas focadas em populações-chave, sobretudo mulheres, homens que fazem sexo com homens- trabalhadoras do sexo, entre outros grupos. Para uma das pessoas que trabalhava em uma delegação diplomática com quem conversamos, isso era algo novo na discussão sobre a epidemia no âmbito da ONU: eventos anteriores teriam sido mais técnicos, voltados para propiciar tratamento para o maior número de pessoas. Para ela, ainda, o fato dessa temática ter sido introduzida na programação oficial e ter sido contemplada na declaração final era fruto do trabalho das organizações da sociedade civil e dos experts em convencer os representantes de alguns países sobre a necessidade de incorporar esses temas nas resoluções da ONU.
35De um modo geral, o que vai caracterizar esse encontro é a diferença de tom entre os representantes dos países e os membros da sociedade civil ou funcionários da ONU. Enquanto os primeiros tendiam a sublinhar os esforços e conquistas de cada país na luta contra a epidemia, as falas de representantes da sociedade civil tendiam a ser mais críticas e a denunciar como o sexismo, a homofobia e as desigualdades sociais eram fatores que dificultavam a eliminação da transmissão do vírus.
36Isso certamente criava constrangimentos diplomáticos e morais para alguns países que, mesmo reivindicando o direito de soberania e de respeito à diversidade cultural para criticar passagens do documento final (foi o caso de alguns países árabes com relação à questão da homossexualidade e à posição social das mulheres, por exemplo), assinaram o texto.
37Na base dos debates há a idéia de que, apesar das diferenças culturais e de tradições, o problema da epidemia de HIV-AIDS precisa ser abordado de forma conjunta: uma questão de direitos humanos e, concomitantemente, de desenvolvimento sócio-econômico.
38Na carta de apresentação do documento que serviu de base para as negociações entre os representantes dos Estados membros da Organização das Nações Unidas durante o Encontro, os dois co-faciladores dos debates afirmam, dentre outras coisas, que o texto havia sido fruto de discussões com a sociedade civil e de consultas aos representantes dos países membros.
39Esse texto - escrito para apresentar a primeira versão do texto definitivo que seria debatido, modificado e depois votado pelos representantes dos Estados membros -, expressava de forma clara os procedimentos que dão legitimidade aos documentos produzidos no âmbito da ONU. Essa legitimidade, como nos explicou um diplomata, é buscada através de diversos procedimentos e processos, a saber:
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Linha de continuidade com documentos e Declarações anteriores sobre o tema, o que implica uma certa proximidade com decisões e acordos anteriores e, ao mesmo tempo, a ideia de evolução e de progresso moral em relação aos textos anteriores; a ideia de progresso dos Direitos Humanos, que autores como Norberto Bobbio nos falava, não é de todo estranha a essa lógica discursiva;
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Proximidade também com os relatórios elaborados pela Secretaria Geral das Nações Unidas, em geral formulados por especialistas (experts) que colaboram com a ONU elaborando textos, pareceres e propostas em suas áreas de especialização. Temos aqui a expressão do fato de que a ciência e o conhecimento universitário se tornam meios de justificação das tomadas de decisões e posicionamentos dos representantes estatais e de outros atores envolvidos no debate;
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Viés participativo das decisões, visível nas consultas preliminares a representantes da sociedade civil que atuam na área;
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Algum grau de respeito à diversidade de sensibilidades nacionais em relação a certas temáticas que aparecem nas consultas preliminares aos representantes dos Estados com assento na ONU.
40Em suma, vemos aqui explicitada uma lógica que rege o processo de formulação e de legitimação das decisões e documentos no âmbito da ONU a partir de quatro eixos centrais: progresso moral dos documentos, expertise de acadêmicos e cientistas legitimando as decisões, representatividade das posições dos Estados membros e participação da sociedade civil. Se essa lógica nos fala do percurso complexo de formulação dos documentos onusianos, também nos dá pistas das negociações que se dão fora da ONU para se construir consensos acerca de “direitos” e de formas de pressão para garantir a aplicação dos mesmos pelos Estados.
41A ideia de progresso moral das resoluções na ONU é, desde a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, algo que permeia a noção mesma de direitos humanos a serem retificados e ratificados por acordos e protocolos posteriores. Não à toa a noção cunhada por Norberto Bobbio de ‘geração de direitos’ ganhou notoriedade entre pesquisadores, juristas e na opinião pública de modo geral. Assim, a cada reunião de análise e de avaliação de declarações e documentos anteriores há a expectativa de que haverá avanços em termos de reconhecimentos de direitos, consagrando e reiterando um formato de organização política próprio das democracias ocidentais.
42Esses avanços são supostamente oriundos de duas fontes diferentes. Por um lado, são uma consequência da expertise de especialistas científicos na temática que, de par com seus conhecimentos, trazem novas visões dos problemas e dos temas debatidos. Por outro lado, as organizações da sociedade civil, muitas das quais têm seus próprios experts, atuam no sentido de trazer para a cena as demandas de grupos sociais concernidos pela problemática em tela. Desse modo, quando os representantes dos Estados tomam decisões no interior da ONU, essas decisões expressam não apenas as opiniões dos diplomatas e dos grupos que estão à frente dos Estados (que, de fato, têm as prerrogativas para tomadas de decisões, após negociações e busca pelo consenso), mas são também influenciadas por vozes de outros grupos e setores sociais do que poderíamos chamar uma arena pública internacional.
43A ONU é mais que uma instância onde decisões são tomadas em nomes dos governos. Ela é também uma arena pública, na qual ideias circulam, redes de entidades representantes da sociedade civil são constituídas, alianças entre Estados se esboçam, contatos entre diplomatas e ONG’s se dão e, sobretudo, onde se constituem consensos e quase consensos em torno de temas considerados espinhosos.
44Nesse sentido, seguindo Fresia (2012), não seria um exagero afirmar que são no interior das organizações internacionais que se formam os consensos globais sobre determinados temas a partir da ação de certos atores com expertise técnica e possibilidade de participar dos debates no interior dessas instituições. Os ideais de igualdade e simetria constitutivos desde universo, paradoxalmente são suplementados nas negociações por evocações às diferenças e hierarquias (Gois Filho, 2003).
45Embora a organização institucional da ONU preveja que as decisões são prerrogativas dos representantes dos Estados membros, o que alguns dos nossos interlocutores deixaram escapar é a ideia de que essas decisões, por serem em alguma medida tomadas com algum grau de autonomia pelos diplomatas representantes dos Estados membros a partir de suas convicções pessoais, a possibilidade das associações da sociedade civil, dos intelectuais que atuam como experts e dos funcionários da ONU influenciarem ou mesmo modificarem os votos desses diplomatas durante as votações dos documentos finais dos encontros e conferências patrocinados pela ONU, é grande.
46Em parte, isso se explica pela relativa autonomia dos representantes dos Estados em alguns temas considerados menos importantes pelos políticos no âmbito das políticas internas dos Estados: é o que parece ser o caso daqueles relacionados aos chamados direitos humanos. Isso, sem contar o fato de que muitos documentos assinados pelos Estados no âmbito da ONU jamais são implementados por alguns Estados membros, como bem nos lembra Michael Banton (2015), que atuou como expert da Comissão para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU entre 1986 e 2001.
47Parece-nos impressionantemente premonitório o que o Brasil enfrentou nos anos que se seguiram a essa parte do nosso trabalho de campo, especialmente no governo de Jair Bolsonaro. Um de nossos interlocutores disse que, no caso do nosso país, felizmente o parlamento não prestava muita atenção ao que a representação do país assinava; se assim não fosse, dado ao carácter conservador e fundamentalista de uma parte considerável dos parlamentares brasileiros, alguns documentos não teriam sido assinados, o que mudaria a reputação de país liberal que o Brasil gozava nessa esfera. O que, de fato, veio a acontecer nos anos posteriores, sobretudo a partir de 2018.
48Essa relativa autonomia do corpo diplomático, que vigorou até a gestão do atual governo brasileiro, foi reafirmada (inclusive como um valor) em diversas situações narradas por aqueles com quem convivemos. Em uma negociação importante, uma representante de um país muito interessado na assinatura do acordo, insistiu no fato de que uma cláusula acerca dos direitos das mulheres deveria ser acrescentada ao documento final. Como certos países de peso eram contrários a isso (China e Rússia, sobretudo) e como a diplomata em questão não cedeu de sua posição inicial, o acordo não foi assinado. Em outras palavras, em negociações entre vários países, nem sempre é possível consultar a todo momento os governos nacionais, o que faz com que nas negociações os princípios caros a um grupo de diplomatas se tornem uma questão importante no processo.
49O mesmo parece se dar em relação aos diretos LGBT, tanto do ponto de vista de uma maior abertura de alguns países (o Brasil inclusive), às questões dos direitos humanos dessa população, quanto de uma aversão de representantes de outras nações a esse ponto - o que faz com que funcionários da ONU encarregados de facilitar as negociações sobre os direitos humanos afirmem que se certo/a negociador/a desses países estiver presente em uma reunião é sinal de que nenhuma posição favorável à população LGBT será discutida.
- 7 Algo próximo ao conceito de “National Honour” desenvolvido por Appiah (2010).
50Segundo esses relatos, esse posicionamento com frequência se coaduna mimeticamente aos princípios e leis defendidos pelo país (como, por exemplo, a posição resistente de alguns países africanos e árabes sobre a homossexualidade e as questões de gênero de uma forma geral), mas, como alguns daqueles com quem convivemos realçaram e nós assinalamos anteriormente, pode ser também uma consequência dos valores e identidades dos diplomatas envolvidos nas discussões. Assim, diplomatas do gênero feminino ou diplomatas homossexuais serão mais sensíveis a questões de gênero e aos direitos de mulheres e da comunidade LGBT, por exemplo. Algo possível, mesmo quando seus governos são, em princípio, resistentes a essas discussões, mas que, por razões de reputação internacional do país, não fecharam posição nem se pronunciaram formalmente sobre o tema. Em outras palavras, nem sempre essas negociações têm a ver com as posições que os países vão ou não implementar, mas sim com a reputação internacional7 que uma nação tem ou que seus governantes querem que ela tenha. O Brasil aparecia naquele momento com uma aura progressista neste campo. A configuração dos LGBT como sujeito de direitos repercutia também naquele cenário. O fazer-se no Estado, para usar uma expressão de Silvia Aguião (2018) igualmente se forjava no cotidiano da política nas reuniões nas Nações Unidas.
51Em conversa informal com dois diplomatas brasileiros na sede da ONU, falou-se da relação dialética entre a sociedade civil e a diplomacia no âmbito das agências multilaterais. No caso brasileiro, antes do país assumir sua posição oficial, o Itamaraty era obrigado por lei a realizar consultas públicas à sociedade civil. Nesses encontros, que se assemelham aos de conselhos de políticas públicas, uma primeira versão do texto a ser proposto pelo Brasil é apresentada aos membros da sociedade civil e depois modificado pelas propostas e sugestões que surgem. O manuscrito seria, em seguida, enviado ao Itamaraty que, após consultas ao governo, estabelece o texto final com as propostas a serem defendidas pelo país nas negociações que se darão no âmbito internacional.
52A depender do tema (sua importância geoestratégica, interesse que ele desperta em camadas da sociedade civil ou no governo, etc.) a participação dos atores não-governamentais no processo era mais ou menos intensa. Algo que desapareceu com as mudanças políticas a partir de 2018. De todo modo, os diplomatas participantes do processo têm uma importância grande na definição dos termos da proposta brasileira. Segundo nossos interlocutores, mudanças que tinham ocorrido na carreira diplomática durante os governos do Partido dos Trabalhadores, com aumentos salariais mais consequentes, passaram a atrair jovens de um espectro social mais largo que no passado (quando os salários relativamente baixos eram compatíveis apenas para membros das camadas sociais mais elevadas, que eram a maioria nas carreiras diplomáticas). As transformações das condições salariais e do perfil social dos diplomatas foram lidas como tendo permitindo maior permeabilidade do corpo diplomático à sociedade civil. Nesse sentido, os posicionamentos desses mediadores naquele momento demonstraram estar em sintonia com muitas demandas públicas na sociedade civil brasileira com relação às questões dos direitos humanos e à discussão das minorias sociais no âmbito das relações diplomáticas brasileiras nas organizações internacionais.
- 8 Como vimos, a formação da opinião pública no interior da ONU parece ser a função principal dos vari (...)
53A votação dos documentos oficiais se dá, em geral, a partir de um manuscrito produzido por algum comitê constituído por especialistas da área e submetidos a discussões com representantes dos Estados membros em diferentes encontros informativos que precedem os meetings decisórios. Com base nesse material, constitui-se um grupo de países facilitadores, os quais designarão diplomatas responsáveis pela atividade. Estes realizarão consultas aos diferentes países membros e após diversos eventos em que distintas opiniões serão expressas8, os facilitadores proporão um texto a ser discutido em plenária pelas delegações dos países.
54Esse parece ser o momento mais delicado e explosivo das negociações: as divergências entre os países e entre os blocos se tornam mais visíveis, e as alianças entre países e grupos de países se fazem valer de forma mais forte. Um exemplo do peso dessas alianças é posição ambígua da África do Sul na defesa dos direitos da população LGBTQI+ nas assembleias da ONU. Embora eles tenham uma legislação considerada exemplar por diversos movimentos LGBTQI+, as alianças da África do Sul junto ao bloco africano na ONU teriam como efeito uma inibição do ativismo do país nessa área, considerada sensível para muitos países africanos.
- 9 Que envolvem, além das negociações em si, uma infinidade de eventos paralelos, tais como mesas redo (...)
55As versões finais dos documentos aprovados em Assembleia Geral são os produtos de negociações diversas, em que os membros e grupos de países se posicionam buscando manter ou substituir, acrescentar ou suprimir, artigos ou capítulos do texto. Nesse processo, consultas aos governos são frequentes, mas o poder discricionário dos diplomatas negociadores, como já destacamos, não é de forma alguma negligenciável. Segundo diversos depoimentos, além das consultas aos governos, realizam-se também consultas informais aos membros presentes da sociedade civil durante as conferências ou Encontros9, de modo a sondar as expectativas dos grupos mais mobilizados em torno de uma temática. Segundo alguns observadores, é nesses momentos que as posições adotadas pelos países se consolidam ou são transformadas, a depender da ideia de repercussão pública que a posição sobre um certo tema possa ter na sua sociedade.
56O resultado das negociações desemboca nas votações dos representantes dos países. Elas são frutos de busca de consensos ou de acordos mais ou menos majoritários, item por item, artigo por artigo, até que o texto modificado é votado. Alguns podem inclusive votar favoravelmente um texto com reservas de certas cláusulas, o que significa que o país em questão não se compromete a respeitar tais pontos específicos.
- 10 Às quais, por razões óbvias, não tivemos acesso.
57No caso da conferência sobre a AIDS, o ponto polêmico, segundo vários diplomatas10, foram os relacionados à definição dos direitos LGBTQI+ (descriminalização, contra as discriminações, entre outros tópicos.), os direitos das mulheres (sobretudo, referente à educação) e às políticas de financiamento que cada Estado deveria adotar. Essa negociação se tornou ainda mais complexa, segundo muitos observadores, pelo fato de que a Rússia teria rompido o acordo de segredo em relação ao texto preliminar proposto para o início das negociações; essa divulgação teria criado resistências por parte de alguns estados, temendo que houvesse repercussões na opinião pública de cada país: antes do início do Encontro, não foram poucos os atores envolvidos que nos confessaram que eles temiam um fracasso nas negociações, o que significaria dizer que a ONU iria manter o mesmo texto do Encontro anterior, realizado dez anos antes, em 2006. Vemos aqui expressa a ideia de que manter os documentos anteriores, sem avanços, seria um fracasso nas negociações. Poderíamos chamar isso de “fracasso moral”?
58Isso não ocorreu, mas muitos países fizeram reservas a alguns tópicos do texto. Na impossibilidade de se chegar a um consenso, adota-se o documento que satisfaça à maioria dos países e blocos, com a reserva dos países que discordam de alguns pontos. De acordo com nossos interlocutores, muitos aspectos entram na balança das decisões. Um primeiro aspecto é a reputação do Estado Nacional em “temas com relativa força moral”, como é o caso dos direitos humanos. Poucos países se permitem aparecer para a opinião pública como aqueles que não respeitam os direitos humanos, argumentando, nesses casos, sempre em termos de especificidades religiosas, culturais ou políticas para falarem de uma outra interpretação neste campo.
59No caso brasileiro, a reputação construída desde os anos 1990 de país promotor do debate sobre os Direitos Humanos nos fóruns internacionais levaria os negociadores a alinharem-se com posições consideradas mais avançadas. Essa preocupação com a imagem do país pode também ser percebida no seu protagonismo em áreas consideradas como importantes. Nas palavras de um de nossos entrevistados: “como o Brasil não é um grande país em termos militares ou com centralidade econômica, resta ao país os discursos dos direitos humanos para ganhar destaque internacional e, assim, consolidar sua imagem de grande `player` no contexto mundial”. Desta forma, temas como direitos de minorias (negros, indígenas, população LGBTQI+, mulheres, etc.) o combate à AIDS ou a questão das mudanças ambientais tornaram-se pautas com as quais o Brasil havia construído sua reputação de país avançado na diplomacia dos direitos humanos".
- 11 O tema das intervenções militares para defender os direitos humanos é fortemente polêmico, tanto no (...)
60Por diplomacia dos direitos humanos entenda-se sobretudo a defesa no âmbito internacional de direitos ligados à tradição democrática e tidos como universais11. Essa diplomacia não significa que internamente esses princípios sejam os únicos a influenciar as ações governamentais, mas simplesmente que o país precisava, até certo ponto, demonstrar que leva em conta essa imagem em suas ações.
61No Brasil, o trabalho de veicular uma imagem de “país civilizado” e respeitador das regras internacionais teve até 2018 como repercussão interna a assinatura de convenções internacionais, o que levará o governo a adequar sua legislação interna aos novos marcos principiológicos em que o país se inscreveu ao assinar tais documentos.
62Um exemplo disso foi a mudança nas normas de reconhecimento de populações tradicionais que o país passa a adotar a partir de 2001, após a assinatura da convenção 169 da OIT nesse ano, que estipulava que o critério de autodefinição deveria ser adotado pelos Estados no reconhecimento das populações tradicionais (Neves, 2017). O número crescente dessas comunidades no Brasil é um indício dos efeitos internos da ação diplomática brasileira no âmbito dos organismos internacionais multilaterais.
63Outro movimento nessa direção é o citado por um intelectual e militante negro que ocupou cargos na administração federal durante os governos do Partido dos Trabalhadores. Segundo ele, uma das estratégias dos militantes negros dentro do governo era de mapear todos documentos internacionais assinados pelo Estado Brasileiro e ratificados pelo Congresso que fizessem menção a políticas voltadas para a população negra a fim de, assim, convencer setores resistentes a pôr em prática tais políticas. Nesse caso, os documentos internacionais funcionavam como instrumentos de negociação no interior do Estado, pois se o país os assinara e ratificara seria cobrado em relatórios posteriores se não implantasse nenhuma das recomendações, criando situações constrangedoras para o governo frente à opinião pública, tanto interna quanto externa. Uma vez demonstrado isso, segundo esse interlocutor, tornava-se mais fácil negociar com os técnicos e gestores dos ministérios envolvidos.
64Tudo isso nos leva a pensar que uma discussão sobre os meandros das negociações que levam a resoluções e convenções internacionais não se restringe à dimensão diplomática que rege as regras mais gerais dessas instituições multilaterais. Para além desse eixo, essas discussões apontam também para como os “direitos” são mobilizados e agenciados pelos atores sociais na vida política nacional.
65Este texto está assentado na ideia de que as discussões que têm lugar nas agências internacionais têm um peso cada vez maior na formação dos discursos hegemônicos sobre direitos humanos usados por atores sociais os mais diversos, de militantes de ONGs a representantes dos Estados nacionais, de órgãos da imprensa a atores ativos nas redes sociais, entre outras instâncias. Em outras palavras, ao estudar essas organizações estamos na verdade nos aprofundando no processo de construção das ideias de direitos que se tornaram, ou são vistas, como majoritárias em diversas partes do mundo. Entender esse processo, as tensões que o atravessam, as narrativas em disputa, os atores envolvidos e as suas repercussões nos parece ser da maior importância para dar inteligibilidade a algumas questões atuais.
66De fato, é de fundamental importância entender o peso dos órgãos internacionais na construção de uma agenda moral que varia de acordo com o país e com o tema. Durante o período em que realizamos trabalho de campo, pesquisadores estadunidenses com quem dialogamos estranharam a premissa de que a ONU seria um lócus importante para pensar a elaboração de direitos de minorias e afirmaram que nos Estados Unidos a ONU é, em geral, mal vista. Os políticos sempre necessitam se posicionar de forma independente frente a ela, exceto talvez o ex-presidente Jimmy Carter, mas esse era mesmo uma exceção. Essa observação, certamente tem razão de ser: países como o Brasil estão mais abertos (ou vulneráveis, a depender do ponto de vista que se adote) às decisões que se dão no âmbito da ONU (mesmo no governo de Jair Bolsonaro, declaradamente contrário às pautas onusianas) que países como os EUA, a Rússia e a China, só para citar os mais poderosos (militar e economicamente). Cada um ao seu modo, é constantemente citado em casos de desrespeito aos direitos humanos em seus territórios e/ou fora deles. O que significa dizer que a “pressão internacional” é mais eficaz sobre determinados países que sobre outros.
- 12 O regime autoritário de segregação racial conhecido como apartheid foi instalado na África do Sul e (...)
67Contudo, há que se levar em conta que mesmo as potências mundiais não podem fingir que as discussões e debates que têm lugar nos organismos multilaterais não influenciam a opinião pública internacional, inclusive no interior de seus territórios. Consensos morais em nível internacional podem ser ignorados nas políticas internas, o que tem acontecido de forma recorrente desde a criação da ONU e dos demais órgãos próximos, contudo isso tem um custo político grande. Nessa direção, Dudziak (2000) argumenta que, durante a guerra fria, o preço para os Estados Unidos manterem leis segregacionistas contra pessoas negras era ver a propaganda da antiga URRS apresentá-los como um país onde os direitos de um certo grupo de pessoas não eram respeitados com base na raça. Da mesma forma, a pressão internacional teve um peso importante na queda do regime que mantinha o apartheid 12na África do Sul, nesse caso tanto em termos econômicos quanto políticos e simbólicos.
68A ideia de que precisamos sair das fronteiras impostas pelos Estados modernos, as chamadas sociedades nacionais, para estudar os fenômenos sociais não é nova nas ciências sociais e humanas. Basta pensarmos em autores como Marx ou Braudel, por exemplo, ou nas correntes teóricas construídas em torno de ideias como imperialismo, dependência ou sistema mundo, dentre outras, para nos darmos conta do quanto o “nacionalismo metodológico” do qual nos fala Beck (2007), nunca foi uma unanimidade nas ciências humanas.
69De todo modo, é com o que se convencionou chamar de globalização que essa discussão passa a ocupar um lugar de destaque nas obras de diversos autores (Habermas, 2001; Bauman, 1999; Appadurai, 1996; Held, 2010, etc.). Para muitos, o nível de entrelaçamento econômico, cultural e político dos principais países em escala mundial estaria levando a uma revolução em diferentes níveis nos modos como os atores socais se relacionam. Isto estaria também conduzindo à perda de influência e de poder dos Estados nacionais (Habermas, 2001), dando espaço para a criação e fortalecimento de estruturas supranacionais que estariam ditando normas e leis para conjuntos variados de populações nacionais. Ou, para usarmos a expressão de Muller (2013), tratar-se-ia de um tipo de “governança sem autoridade soberana”. Para outros, (como Appiah, 2007: Benhabib, 2006) estaríamos prestes a realizar o sonho Kantiano de uma sociedade mundial cosmopolita, em que o nível nacional seria subsumido pelas regras internacionais.
70Não é nosso objetivo aqui fazer um balanço das diversas teorias que tentam explicar o fenômeno da globalização ou as dimensões reais ou não do cosmopolitismo em nosso tempo. De forma mais modesta, acreditamos que é possível pensarmos no modo como as ciências sociais, em especial, a antropologia, vêm pesquisando as instituições internacionais, as quais têm sido uma das principais bases empíricas para essas teorias mais gerais.
71Para Abélès (2011), que coordenou uma pesquisa realizada por diversos antropólogos no interior da Organização Mundial do Comércio em Genebra, esses tipos de organizações obedecem a variadas lógicas de ação, algumas ligadas às negociações entre os diferentes países membros e outras ligadas a especificidades internas, tais como o lugar do saber técnico nas tomadas de decisão.
72Essa primazia do saber técnico das burocracias será também realçada por Barnett e Finnemore (2005) ao estudar em que se baseia a autoridade dessas organizações. Para eles, essa autoridade está assentada em grande medida na expertise que as burocracias dessas organizações desenvolveram ao longo do tempo, conferindo-lhes uma grande autonomia em relação aos Estados que financiam suas atividades e que têm poder de voto nas tomadas de decisões no interior das instituições. Ademais, essa expertise seria frequentemente assentada em valores liberais e na ideia de direitos humanos.
73Esse papel da ONU e de outras organizações internacionais na difusão dos direitos humanos já havia sido notado por Kymlicka (2007) ao abordar a questão dos direitos das minorias. Para ele, a internacionalização dos direitos das minorias étnico-culturais era a expressão do papel das organizações multilaterais na formulação e implementação de normas internacionais de proteção desses grupos e, de forma mais larga, de uma visão liberal dos direitos humanos.
74Já para Fresia (2013), os estudos etnográficos acerca das organizações internacionais nos ajudam a entender o modo como se constroem os consensos globais em determinados temas vistos como de dimensão mundial. Consensos formados a partir da ação de grupos com expertise técnica, tais como os funcionários dessas organizações, os intelectuais do mundo acadêmico que prestam assessoria nas suas áreas de especialidades, ou, ainda, os militantes de algumas ONGs com atuação mundial nesse âmbito. Esses consensos, quando traduzidos em normas nos tratados e convenções internacionais, repercutiriam em diversas esferas da vida contemporânea.
75Assim, para Muller, a partir de um discurso da universalidade dos princípios e das políticas propostas por essas instituições, busca-se reduzir as resistências dos Estados nacionais às obrigações previstas nos documentos.
76Esse é um ponto central em todos esses debates e que, como veremos, aparece de forma explícita nas discussões sobre as políticas de combate ao HIV-AIDS. Frente ao discurso oficial de universalidade dos direitos humanos, base da legitimidade das instituições internacionais, diversos países irão reivindicar o direito à especificidade cultural e à soberania nacional para elaborar leis de acordo com essas especificidades, mesmo quando em oposição a alguns princípios dos direitos humanos.
77Além dos representantes dos Estados nacionais, dos funcionários das Instituições internacionais e dos experts que prestam consultorias a estas organizações, um outro ator muito citado na literatura sobre os organismos multilateriais são os chamados “representantes da sociedade civil”. Na perspectiva de Lipshutz (2005), as organizações da sociedade civil que atuam no âmbito internacional participam de uma governamentalidade global de cunho neoliberal, que tende a reduzir as discussões políticas a questões de mercado. Ainda segundo o autor, essa biopolítica seria particularmente visível nos debates em torno da epidemia do HIV/AIDS, em que ganha realce a discussão sobre o papel dos Estados em tornar os medicamentos mais baratos para facilitar o acesso de todos os que vivem com o vírus. Em outras palavras, haveria uma forma de complementaridade entre a ação estatal e as organizações da sociedade civil.
78Nesse sentido, as reuniões das instituições multilaterais abertas são momentos de negociação em que as entidades não-estatais participam, ainda que de modo minoritário e indireto, das definições das ações internacionais e das obrigações que cada Estado deve cumprir. A questão levantada pelo autor é até que ponto essas organizações da sociedade civil podem ou não transformar a lógica que rege essas ações, pautadas em uma visão individualista que informa os princípios dos direitos humanos.
79De todo modo, há um relativo consenso de que a participação de setores civis cumpre um papel importante nos debates que ocorrem em torno dos temas ligados aos direitos humanos que dão lugar à organização de conferências e encontros, ensejando o enfrentamento de temas que dificilmente teriam sido discutidos sem a participação desses atores, como, por exemplo, demonstra Bellier (2012 e 2013) com respeito aos direitos dos povos indígenas na ONU.
80Eghrari (2021) e Silva (2008) nos mostram o quanto a participação de representantes da sociedade de países como o Brasil foram importantes nas decisões tomadas durante a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada pela ONU, em 2001 na cidade de Durban, África do Sul. Para muitos militantes do movimento negro, inclusive, a atuação da delegação da sociedade civil do país foi fundamental para que se chegasse ao texto aprovado (Carneiro, 2002; Bentes, 2002).
81Nessa direção, partimos do princípio de que nas reuniões da ONU a intervenção das organizações da sociedade civil visa não apenas criar canais de negociações com os representantes dos Estados, mas igualmente usar a plataforma midiática que é a Organização das Nações Unidas para influenciar a opinião pública internacional. O que significa dizer que devemos considerar não apenas as lógicas internas a essas organizações, como igualmente, o modo como os atores usam suas inserções nessas organizações para influenciar o debate público internacional.
82A análise precedente mostrou uma faceta muito interessante acerca do modo como temas ligados aos direitos humanos são tematizados e publicizados em uma dimensão internacional. Terá a ONU se tornado um protótipo de um novo tipo de governança nas sociedades contemporâneas, como querem alguns autores? (Muller, 2013) Há sujeitos, especialmente os que se sentem ameaçados ou “fora dos direitos humanos” que fazem contundentes críticas a essa possibilidade (Moutinho, 2012). Estes são justamente os que não compartilham do ideal de uma ordem internacional democrática.
83Esse é um debate importante. Se não exatamente no sentido de diminuição dos poderes e da soberania dos Estados Nacionais, mas como um espaço em que a dimensão heurística e normativa dos direitos ganha legitimidade (embora não necessariamente, efetividade). Um aspecto interessante, já destacado por Gois Filho (2003), refere-se a força de uma configuração política baseada na persuasão e não no argumento de autoridade. A dimensão da efetividade tem sido garantida pelos Estados Nacionais, os quais têm a prerrogativa de acatar ou não as decisões da ONU – embora com altos custos no segundo caso, como a situação atual do Brasil na esfera internacional parece indicar. Em outras palavras, o político não pode se realizar sem o Estado, ao menos no modo como se organizam as sociedades contemporâneas, mas concomitantemente esse processo se tornou muito mais complexo com as pressões que sofrem os Estados Nacionais.
- 13 Para uma discussão de como esse debate aparece nos debates sobre relações internacionais, ver Guima (...)
84Essa tendência é uma consequência da primazia ganha pelos discursos assentados nos Direitos Humanos depois da Segunda Guerra Mundial. Discursos que, ao menos na sua formulação original, são marcados por uma tensão entre uma lógica liberal e uma lógica comunitária13. Essa tensão vai se traduzir em outras esferas da ONU, como demonstrado por MacDonald (2013): conflitos costumam aparecer nos textos e resoluções. O problema que esse cenário coloca é pôr em relevo estratégias centradas em lógicas individuais em certos momentos, e em outros nas coletivas, o que nem sempre é conciliável.
85No caso analisado, a estratégia dos principais promotores do texto inicial era a de fazer passar as teses dos direitos universais individuais contra os argumentos dos representantes dos países que brandiam sobre “respeito à cultura, diferente em cada país”, eles diziam. Essa era a posição, por exemplo, da Rússia e da maioria dos países árabes com relação às referências aos direitos e necessidades específicas de mulheres e homossexuais, com relação às políticas de controle da AIDS.
86Das informações que pudemos colher acerca das negociações entre os representantes dos Estados, o compromisso obtido foi a aprovação do texto com algumas mudanças, mas com o recurso da não ratificação dos artigos mais polêmicos por alguns países. Isso vai aparecer na fala de representantes nacionais durante a sessão de encerramento do evento, a exemplo do enviado do Sudão e de outros Estados africanos e árabes. De todo modo, ao final do encontro nossos interlocutores pareciam muito felizes com o fato de que um acordo fora possível e que os principais pontos do documento preliminar (Draft) haviam sido preservados.
- 14 Ver, nessa direção, essa recente repercussão “Promessa de acabar com a AIDS até 2030 está ameaçada, (...)
87Como vimos, o ponto mais importante desse documento era o compromisso assumido de que até 2030 a transmissão da AIDS seria erradicada. Para isso, políticas específicas voltadas para populações mais vulneráveis (especialmente, mulheres jovens, mães, homens que praticam sexo com outros homens e trabalhadores do sexo) deveriam ser implementadas. Esses compromissos vêm sendo negociados num campo de força no interior de cada país, com poder de pressão da comunidade internacional, com o nível de organização da sociedade civil, etc. Ao final do processo, não houve a sensação por parte dos envolvidos, de fracasso moral na negociação. Um avanço foi conquistado. A existência desse documento e seu monitoramento14 repercutem local e internacionalmente em níveis diversos.