1O reconhecimento da coexistência da heterogeneidade e da produção de espaços ou fronteiras como força motriz da cidade tem sido a marca dos estudos urbanos. Pelo menos desde a Escola de Chicago, a cidade, lócus do anonimato e do encontro entre estranhos que definiria o caráter de seus habitantes (Simmel, 1903 [2005]; Park, 1967), passando pela Escola de Manchester, quando as pesquisas do Instituto Rhodes-Livingstone trataram dos processos de mudança associados à urbanização das cidades coloniais e à etnicidade com metodologias inovadoras (Mitchell, 1969; Feldman-Bianco, 2010), até chegar aos estudos urbanos transnacionais (Hannerz, (1983); Agier, 2011), a cidade tem sido canonicamente percebida como um ambiente específico capaz de conglomerar diferenças por meio de sua base econômica ou da produção desigual de identidades. Ainda, pelo menos desde a publicação do Reflexões sobre a questão judaica (Sartre, [1946] 1995) e dos clássicos Ethnic Groups and Boundaries (Barth, 1969) e Custom and Politics in Urban Africa (Cohen, 1969), os estudos urbanos dispõem de arcabouço teórico para tratar a diferença de modo intrinsecamente relacional.

2No entanto, temos observado dois problemas no cânone dos estudos urbanos. Primeiro, uma sistemática obliteração da crítica da definição e do tratamento dirigido a alguns estranhos – que torna alguns mais estranhos que outros. Segundo,uma costumeira reposição de elementos de maneira substancializada em detrimento do reconhecimento da relacionalidade. Destacamos substancializações de noções como identidade, cultura e raça, que ainda têm sido encaradas como elementos prévios à constituição das relações que as instauram. Assim, embora os estudos citadinos, em suas mais diferentes frentes, sejam permeados pelas meta-narrativas da urbanização, da modernização, do desenvolvimento e de suas constantes crises, as contrapartes que definem tais ideias raramente são explicitadas.

3No campo dos estudos sobre relações raciais realizados no Brasil, as pesquisas têm desempenhado um papel fundamental na crítica da urbanização excludente, e impactado a criação de agendas políticas específicas. Entretanto, há também uma tendência em repor duas conclusões: a constatação e denúncia do racismo nas cidades brasileiras, por um lado, e a valorização, mais ou menos substantivada, de elementos tais como samba, religiões afro-brasileiras, territórios negros, por outro. Está em jogo a discussão de possibilidades e obstáculos para a incorporação do que se convencionou chamar, histórica e teoricamente, de negro e de cultura negra dentro de um aparato sociojurídico constituído, de cidades racialmente segregadas ou de uma modernidade globalizada. Nesse sentido, o trabalho de Rafael Nascimento César neste dossiê ajuda a reembaralhar cartas marcadas há muito tempo, ao mostrar como, no movimento que ficaria conhecido posteriormente como Bossa Nova, nossas expectativas e nossa imaginação do que seria ‘negro’ e ‘branco”, nacional e transnacional, devem ser repensadas.

4Compõem este dossiê os artigos de Marcos Ferreira, sobre a cidade de Mérida, no México, e de Anderson Kilpp Bernardo, sobre Porto Alegre, no Brasil, que subvertem o estado de coisas das meta-narrativas da urbanização, ao mostrar etnograficamente como, em tais cidades, as populações indígenas ou que participaram de suas fundações são deslocadas para uma posição espacial e simbólica marginal. Tais margens, aliás, se mantêm via processos muito concretos de marcações em corpos que ultrapassam noções fenotipicamente simples, em vestimentas, formas de usar a língua e, é claro, muros e estradas.

5Além do artigo de Ferreira, o artigo de Lourival Aguiar Teixeira se debruça sobre cidades no exterior cujas formações também engendram desigualdades raciais. No texto, o autor destaca a segregação racial e a modulação do racismo na criação da categoria de território palestino, em uma sociedade socialista que dizia ter abolido todas as desigualdades sociais.

6Este dossiê é composto por trabalhos que investigam como a produção de raça costuma coadunar-se com a produção do estranho. Interessa-nos aqui como tais produções se expressam sob o registro do epistemicídio (Carneiro, 2005) e na própria consolidação do cânone da disciplina antropológica, refém da branquidade enquanto obliteração de regimes de conhecimento (Paterniani, 2020) e exclusão de determinados autores, agentes, instituições e temáticas na produção intelectual sobre as mais diversas cidades ao redor do globo. Nesse sentido, a contribuição de Ana Carolina Batista de Almeida Farias faz um necessário movimento ao triangular estudos críticos da branquitude, estudos sobre juventude e interseccionalidade para fazer jus às relações sociais tecidas entre estudantes em uma escola paulista. Renata Monteiro Siqueira, por sua vez, investiga a categoria de território negro e os discursos sobre raça, cultura e cidade produzidos através dele em São Paulo nos anos 1980, destacando as aspirações e lutas heterogêneas da população negra da cidade que os essencialismos associados à noção de território negro, operacionalizado por instituições como a Universidade e o Museu, fizeram perder de vista. Com uma perspectiva semelhante de recusa a aprisionamentos conceituais, sobretudo o da precariedade, o artigo de Ana Larisse Santos Barbosa, Frank Andrew Davies e Guilherme Marcondes dos Santos, além de explicitar mecanismos de manutenção das desigualdades que operam com base na noção de raça como princípio organizativo da cidade de Fortaleza, reconhece etnograficamente o conjunto Jardim União como bairro negro e quilombo urbano, engendrado em práticas de solidariedade.

7Se entendermos a noção de raça a partir de uma alteridade não apriorística, ela deve ser analisada concomitantemente à própria produção da diferença e da desigualdade, em suas variadas escalas, contextos sociais e políticos e com resultados práticos. Assim, neste dossiê privilegiamos pesquisas que visam investigar processos sociais, agentes, movimentos sociais e diferentes instituições burocráticas, técnicas e científicas que definiram e conformaram categorias racializantes, que (re)produziram e (re)produzem sociologicamente os diversos grupos sociais urbanos. Dessa forma, nos artigos que compõem o dossiê, raça e cidade aparecem não como categorias conceituais apriorísticas, preexistentes às relações, mas são vistas como produto e dimensão produtora de relações urbanas e modernas. A partir dessa coletânea de textos procuramos problematizar narrativas sobre as cidades nas ciências sociais e aprofundar visões críticas da urbanização, sobretudo ao considerar relações raciais e produções de desigualdades raciais e categorias racializantes.

8AGIER, M. 2011. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Ed. Terceiro Nome.

9BARTH, F. 1969. Ethnic Groups and Boundaries: The Social Organization of Culture Difference. Bergen and Oslo: Universitetsforlaget, Londres.

10CARNEIRO, S. 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. (Tese de doutorado), São Paulo, USP.

11COHEN, A. 1969. Custom and Politics in Urban Africa. Londres: Routledge.

12FELDMAN-BIANCO, B. 2010. Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo: Editora Unesp.

13HANNERZ, U. 1983. Explorer la Ville. Elements d’Anthropologie Urbaine, Paris, Les Éditions de Minuit.

14MITCHELL, J. C. 1969. Social Networks in Urban Situations: Analysis of Personal Relationships in Central African Towns. Manchester: Manchester University Press.

15PARK, R. 1967. “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”. In: G. Velho. O fenômeno urbano, Rio de Janeiro, Zahar.

16PATERNIANI, S. Z. 2020. (Re)pensando terra, corpo e tempo: algumas ferramentas analíticas anti-branquidade. Revista Educação e Ciências Sociais, v. 3, n. 5.

17SARTRE, J.-P. [1946] 1995. A questão judaica. São Paulo: Ática, 1995.

18SIMMEL, George. [1903] 2005. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana, v. 11, n. 2, pp. 577-591.