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Periferização e estratégias de resistência: A formação de uma comunidade a partir do processo de crescimento urbano de João Pessoa-PB

Peripheralization and resistance strategies: The formation of a community from the process of urban growth of João Pessoa-PB
Williane Juvêncio Pontes

Resumos

O processo de expansão e modernização urbana da capital paraibana norteia a discussão neste artigo, que reflete sobre o período de intenso crescimento da cidade, a partir de 1970, com ênfase para a ocupação e o desenvolvimento da Comunidade do Timbó, situada em um espaço ermo deixado de lado pelo projeto de planejamento urbano. A análise resulta de uma revisão bibliográfica sobre o crescimento da cidade de João Pessoa, principalmente em relação ao planejamento e desenvolvimento da zona sul, aprofundando a reflexão com a perspectiva dos moradores da comunidade. É uma reflexão preocupada em entender como o projeto de planejamento e ordenamento urbano contribuiu para a construção de espaços nobres e periféricos, com as camadas pobres ocupando e vivenciado a cidade a partir das margens e elaborando estratégias de resistência para a construção de lugares de moradia e pertencimento.

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Notas da redacção

Versão original recebida em / Original version 05/10/2022

Aceito em / Accepted 10/01/2023

Texto integral

Introdução

1A cidade de João Pessoa é uma das mais antigas do Brasil, com surgimento durante o antigo Sistema Colonial e fundação no ano de 1585. A capital paraibana detém a particularidade de ter surgido como cidade, possuindo uma variedade de nomes ligados ao momento político e histórico pelo qual passou, integrando um processo de crescimento da malha urbana e uma modernização que configuram formas de urbanidade (Koury, 2005). Com uma forte característica colonial, o processo de evolução urbana e desenvolvimento econômico é lento e ocasionado pela cultura algodoeira, que modifica, gradualmente, a calma e monotonia pelo crescente ritmo das transformações urbanas, ampliando o número da população e as formas de habitar (Pontes, 2017).

2As transformações pelas quais a cidade passou se apresentam de modo mais expressivo a partir da década de 1920 e, principalmente, de 1970. Períodos em que se intensifica o processo de maquiamento urbano, higienização e reconfiguração estética e arquitetônica (Barreto, 1996; Vilar, 2001) que constituem a modernização (Barbosa, 2019) e a periferização da cidade (Koury, 2018), mas que também proporcionam o desenvolvimento de estratégias corriqueiras para a resistência e manutenção do local de moradia de pessoas pobres vindas, em sua maioria, do interior da Paraíba (Pontes, 2021).

3Não cabe neste trabalho desenvolver uma reflexão histórica e urbanística da cidade, o objetivo é discutir o processo de expansão e modernização urbana sob a ótica da Comunidade do Timbó, situada na zona sul, que teve sua constituição ligada ao período de intenso crescimento da cidade, que desenhou a atual conformação dos bairros.

A configuração urbana atual da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba

Fonte:  Diretoria de Geoprocessamento e cadastro urbano da Secretaria de Planejamento, Prefeitura Municipal de João Pessoa. Modificado pela autora em maio de 2023.

4A análise apreende as décadas de 1970, principalmente, e 1980 que marcam a aplicação de um projeto de planejamento urbano da capital mediante um ideal de modernização, criando espaços nobres e periféricos. Período em que intensificou a procura em organizar o espaço urbano social e moralmente hierarquizado, em busca de beneficiar a população economicamente privilegiada e politicamente empoderada, desenvolvendo o controle sobre a ocupação do solo urbano ao reafirmar o objetivo moral de manter um projeto de cidade moderna e ordenada (Barbosa, 2019, p. 47).

5Uma modernização que se centra no ordenamento e disciplinamento da pobreza urbana, vista como perigosa e danosa para o projeto modernizador da cidade. Assim, processou-se o clamor por um controle eficaz da pobreza, mantendo-a disciplinada e concentrada em áreas determinadas que se enquadram nos códigos de urbanismo e da ordem moral (Pontes, 2021, p. 76). É no final dessa década que surge a ocupação do Vale do Rio Timbó, posteriormente denominada de Comunidade do Timbó, um espaço ainda ermo deixado de lado pelos projetos urbanísticos e apropriado por pessoas pobres como local de moradia, a partir de onde experienciam a cidade, produzindo continuamente modos de viver e sentir no e o lugar de pertença.

  • 1 A pesquisa Emoções e Sociabilidade Urbana: Uma etnografia sobre a Comunidade do Timbó, João Pessoa- (...)

6É uma discussão que resulta de um recorte analítico desenvolvido na pesquisa de Mestrado em Antropologia (PPGA-UFPB)1, e se debruça sobre o modo como a Comunidade do Timbó é apreendida no planejamento urbano, as disputas pelo local de ocupação e as estratégias de resistência para a permanência e consolidação da comunidade. É uma reflexão que apreende a produção bibliográfica sobre a expansão e modernização da cidade e, sobretudo, o processo de formação do Timbó como lugar de moradia. Para isso foram elaboradas algumas estratégias metodológicas, como a realização de um levantamento de produções acadêmicas, com uma busca nos repositórios de instituições públicas de ensino superior, encontrando trabalhos em níveis de graduação (Santos, 2013; Gonçalves, 2017; Oliveira, 2018), mestrado (Dantas, 2003; Pita, 2012; Soares, 2009; Araújo, 2014) e doutorado (Soares, 201) que se debruçassem sobre o Timbó enquanto universo de pesquisa ou o bairro dos Bancários, mas com alguma discussão relacionada à comunidade.

7São trabalhos que resultam de estudos em diversas áreas de conhecimento e tratam, a grosso modo, da formação do espaço, das relações entre o bairro e a comunidade, da segregação urbana e do modo como os moradores do Timbó se relacionam com e na cidade. Contribuíram para um apanhado geral das discussões em torno do universo de pesquisa, complexificando a reflexão com a procura por outros trabalhos que situassem o contexto em que a comunidade surge e se desenvolve, abordando o crescimento urbano da cidade (Lavieri; Lavieri, 1992, 1999; Negrão et al., 2016; Silva, 2011; Silva et al., 2015; Vale; Garcia, 2008). Estratégia proveitosa para situar a singularidade do Timbó no contexto de João Pessoa, auxiliando na composição de um quadro histórico em que a comunidade surge e possibilitando a sua complexificação com base na experiência dos moradores, principalmente os mais antigos, aqueles que acompanharam a constituição e o desenvolvimento local. A leitura desse material foi realizada em paralelo com as incursões em campo, a aproximação com o cotidiano na comunidade e a construção de relações de interlocução para a pesquisa.

8Cabe ressaltar que a conversa com os moradores levou à busca do material, pois a narrativa de como foi e como está o Timbó levou ao interesse em ler e dialogar com a produção acadêmica sobre o contexto urbano da cidade. O interesse em refletir o processo de formação da comunidade na conjuntura de crescimento e modernização de João Pessoa, parte dos elementos apontados pelos moradores, considerando o modo como abordam a formação da Comunidade do Timbó, acessando esse dado mediante conversas informais e entrevistas com os interlocutores principais da pesquisa, isto é, aqueles com quem foram mantidas relações continuadas de conversas e acompanhamento das atividades cotidianas.

9As entrevistas eram realizadas na casa do interlocutor, mas geralmente ocorriam nas calçadas, o local de maior utilização e encontro entre os moradores, o que propiciou captar narrativas sobre a chegada e o estabelecimento no Timbó, mas também situações de exercício da sociabilidade – cumprimentos entre conhecidos, troca de informações sobre um assunto ou acontecimento e conversas breves fomentada pelo encontro ao transitar na rua. O recorte para refletir a formação da comunidade é o que prevalece aqui, sendo esse elemento da narrativa o analisado na elaboração da discussão. A reflexão se debruça, portanto, sobre como a Comunidade do Timbó surgiu e se desenvolveu no cenário de expansão e modernização da cidade de João Pessoa e das estratégias dos moradores para a constituição desta comunidade. Cabe pensar como esta conjuntura em atividade se relacionou com a ocupação do Vale do Rio Timbó e propiciou a constituição dela em uma comunidade?

A expansão e a periferização da cidade: o papel das políticas governamentais

10A Comunidade do Timbó surge junto com a entrega e ocupação do bairro dos Bancários, no ano de 1978, onde ambos integram o processo de construção da zona sul da cidade de João Pessoa. A zona sul foi um espaço criado pelo planejamento urbano para contemplar a população mais pobre da cidade, buscando atender a demanda por habitação (Lavieri; Lavieri, 1992) que se tornava cada vez mais presente com a intensificação da chegada de levas de migrantes na cidade durante os anos de 1970 (Koury, 2018).

11O bairro dos Bancários, bem como a comunidade do Timbó, é constituído durante a remodelação da malha urbana da cidade, produzida a partir de duas frentes de expansão: o eixo de ligação do centro à orla marítima, que conforma a ocupação da zona leste, e o eixo de expansão para a zona sul através da implementação do Campus Universitário da UFPB – Universidade Federal da Paraíba. A zona leste desponta como uma área nobre, ocupada pela população de maior poder aquisitivo, possuindo um melhor padrão nas construções e com uma boa infraestrutura. A zona sul, por outro lado, é destinada a população de baixo poder aquisitivo, com construções mais modestas e uma infraestrutura precária (Maia, 1994, 2000; Silva, 2015; Dieb; Martins, 2017).

12Remodelação impulsionada por uma lógica de modernização que se desenvolve no âmbito local e nacional, realizada através da construção de conjuntos habitacionais que compõem a política de habitação e ordenamento da cidade. A análise da evolução urbana da cidade de João Pessoa, durante os anos de 1960 a 1986, realizada por João Lavieri e Maria Beatriz Lavieri (1992) aponta a política de implementação dos conjuntos como o vetor do direcionamento dos rumos de expansão da cidade, principalmente em relação ao crescimento em direção à zona sul. Processo de expansão que resulta das diretrizes de políticas governamentais preocupadas com o aumento da demanda por moradia e saneamento básico, impulsionada pelo crescimento populacional.

13O problema habitacional se torna cada vez mais crescente na cidade, principalmente devido às levas de migrantes oriundos do interior da Paraíba e de estados circunvizinhos que desembarcavam na cidade à procura de trabalho e melhores condições de vida. Com o déficit habitacional, Negrão et al (2016), ao discutir sobre a produção da cidade de João Pessoa a partir do setor sudeste (que contempla a zona sul), afirma que restava aos migrantes se estabelecerem momentaneamente em vilas, pagando aluguel, ou se assentarem em espaços ermos na cidade, deixados de lado pelo planejamento urbano, tais como vales de rios, mangues, regiões de topografia acidentada, áreas de preservação e zonas de risco.

14As políticas governamentais desempenharam ações fundamentais para direcionar o crescimento da cidade, com um planejamento do espaço urbano guiado pela lógica capitalista da especulação imobiliária. Essas políticas atuaram a partir do Banco Nacional de Habitação - BNH, incorporado ao Sistema Financeiro de Habitação - SFH e ao Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais - INOCOOP, órgãos coordenados pelo Governo Federal, e da Companhia Estadual de Habitação - CEHAP, coordenada pelo Governo Estadual. Lavieri e Lavieri (1992) apontam a importância do BNH no empreendimento de intervenções nos espaços urbanos, principalmente por meio da construção de conjuntos habitacionais periféricos, cujo objetivo era fomentar a construção civil e promover a edificação e aquisição da casa própria em todo o território nacional.

15A construção dos conjuntos contribuiu para acelerar o processo de modernização que possibilitou uma espécie de seletividade do uso do espaço urbano, além de funcionar como um indicador do direcionamento do crescimento da cidade, que se expande para além do Centro Histórico. Este ideal de modernização objetivou organizar o espaço urbano social e moralmente hierarquizado, em busca de beneficiar a população economicamente privilegiada e politicamente empoderada, desenvolvendo o controle sobre a ocupação do solo urbano ao reafirmar o objetivo moral de manter um projeto de cidade moderna e ordenada (Barbosa, 2019, p. 47). Centra-se no ordenamento e disciplinamento da pobreza urbana, vista como perigosa e danosa para o projeto modernizador da cidade. Assim, processou-se o clamor por um controle eficaz da pobreza, mantendo-a disciplinada e concentrada em áreas determinadas que se enquadram nos códigos de urbanismo e da ordem moral (Pontes, 2021, p. 76).

16A construção de conjuntos distantes do Centro tinha o propósito de atender as necessidades habitacionais da população de baixa renda, sendo o processo pelo qual a zona sul da cidade de João Pessoa surge e se desenvolve. A consolidação dos conjuntos na zona sul configura um novo tipo de ocupação do espaço urbano, uma área projetada como periférica por estar geograficamente longe do Centro, resultando em grandes deslocamentos. A dificuldade de acesso deste espaço às áreas centrais da cidade colaborou para um baixo valor imobiliário, sendo destinado às camadas menos abastadas da capital.

17A expansão da cidade para a zona sul, assim, é realizada sob o incentivo do setor público. A instalação do Campus Universitário da UFPB é definida como o principal empreendimento responsável por abrir o caminho para o início da ocupação da área e possibilitar o seu rápido desenvolvimento. Inaugurado no final dos anos de 1970, o Campus está localizado no bairro do Castelo Branco, concentra as atividades universitárias que antes estavam descentralizadas em espaços do Centro. Após a sua instalação na zona sul se inicia a construção de conjuntos habitacionais que fortalece o crescimento da cidade para este eixo de expansão.

18Quanto mais ao sul os conjuntos se localizassem, mais periférico se tornava o espaço em construção. Nesta direção, Lavieri e Lavieri (1992, 1999) discutem os processos tendências de segregação espacial que criam os bairros nobres, os conjuntos habitacionais periféricos e fomentam a ocupação irregular, chamando atenção para o fato de que a população mais pobre encontrava a possibilidade de ocupar os espaços vazios dos bairros próximos, no Centro da cidade ou nas novas regiões situadas após o anel viário, onde o valor do solo se mostrava acessível.

19Entre essas novas regiões está a zona sul, com um valor habitacional inferior à área central da cidade e aos bairros que se formavam na orla marítima da zona leste. Nesse contexto ocorre a edificação do conjunto habitacional dos trabalhadores do serviço bancário da Caixa Econômica Federal e dos servidores da UFPB. Empreendimento conhecido como Conjunto dos Bancários e dos Professores, cuja construção é realizada através de uma cooperativa que tem as duas categorias de trabalhadores como associados, sendo o principal público-alvo da obra, mas não se restringindo somente a estes trabalhadores.

20Cristiane Soares (2009) aponta que a construção do conjunto habitacional dos Bancários e dos Professores foi financiada pelo BNH, com a participação do INOCOOP, mas devido a problemas administrativos e financeiros desses órgãos as obras foram paralisadas. É quando o banco Bradesco entra como agente financeiro e as obras são retomadas e concluídas, sendo responsável pela reconfiguração inicial do projeto, fornecendo linhas de créditos aos que se encaixavam no quadro socioeconômico exigido ao financiamento, proporcionando que a entrega do conjunto terminasse não sendo apenas direcionada aos bancários e aos professores.

  • 2 No ano de 1998, mediante a implantação do projeto de Lei nº 1574, os conjuntos habitacionais da cid (...)

21O bairro dos Bancários, constituído pelo conjunto dos bancários e dos professores2, surge no ano de 1978, com a primeira etapa inaugurada em 1980. É o primeiro empreendimento construído após o Campus Universitário, contando, inicialmente, com 1.500 unidades habitacionais. O bairro se estabelece como uma área exclusivamente residencial e, ainda hoje, mantém sua característica predominantemente residencial, contando também com estabelecimento comerciais, equipamentos e serviços públicos, entre outras comercializações localizadas em seu entorno.

22Como os demais bairros da zona sul que surgiram no final dos anos de 1970, o bairro dos Bancários sofreu com os problemas de infraestrutura das ruas, a falta de água e de gás, a dificuldade de transporte coletivo para a locomoção dentro da cidade e os poucos serviços disponíveis nos arredores. Os moradores do bairro dos Bancários precisavam competir com os espaços nobres da cidade pelo investimento público para sanar os problemas relacionados à infraestrutura e transporte. Além das queixas dos moradores para a resolução do problema da falta de água nas casas, segundo notícia do jornal A União do dia 23 de abril de 1980, a Cagepa ainda se encontrava “estudando a possibilidade de ser feito um bombeamento para as casas que não tem água suficiente para atender suas necessidades”. Medida que seria complementada pela distribuição de caminhões-pipas para as casas que continuam com problema de abastecimento de água (A União, dia 23 de abril de 1980).

  • 3 A pesquisa documental de jornais impressos em circulação na cidade entre os anos de 1970 e 1980, re (...)

23A matéria do Jornal A União, publicada no dia 1º de julho de 1980, informa as queixas dos moradores do bairro dos Bancários em relação aos problemas na infraestrutura local (A União, dia 01 de julho de 1980). Chama atenção, ainda, para as reivindicações desses moradores por melhorias no conjunto habitacional, recém entregue à população. Ao pesquisar por assuntos relacionados ao bairro dos Bancários e a Comunidade do Timbó nos jornais impressos da cidade, a partir dos anos de 1970, encontra-se com frequência denúncias que evidenciaram a precariedade da infraestrutura do conjunto habitacional recentemente entregue a população3. Os maiores investimentos de asfaltamento de ruas e ampliação de avenidas estavam sendo realizados nos espaços de maior valorização imobiliária, onde residia a população mais abastada da cidade, valorizando esses espaços e as áreas ao seu entorno.

24O padrão de construção, a infraestrutura, o comércio e os serviços disponibilizados nos espaços urbanos acabavam por ser provocados pela especulação imobiliária, fomentando uma segregação socioeconômica. As habitações populares construídas na zona sul, como foi o caso do bairro dos Bancários, culminavam em um menor investimento com relação às zonas mais nobres da cidade. É nesta configuração de precariedade e problemas na infraestrutura, com poucas linhas de transporte coletivo e a falta de água, que o bairro dos Bancários é construído, ocupado e se desenvolve. Precariedade esta que se apresenta de forma ainda mais intensa na ocupação irregular que surge junto com o bairro, a Comunidade do Timbó.

25A produção de espaços periféricos na cidade se processa no projeto de planejamento urbano, com a construção de áreas e bairros para as camadas pobres ou menos abastadas. Os espaços ermos à margem do planejamento urbano são apreendidos pela pobreza sem casa e surgem, assim, as ocupações ditas irregulares por construir de forma desordenada, sem loteamento e, comumente, em áreas de risco ambiental, sendo uma alternativa para se estabelecer na cidade e/ou conseguir uma casa própria. Estas ocupações são formadas e consolidadas enquanto comunidades principalmente a partir da implementação da política de conjuntos habitacionais do BNH.

26Para Lavieri e Lavieri um dos efeitos desse processo de novas ocupações na cidade por meio dos conjuntos habitacionais foi o da aceleração da expulsão de moradores das áreas mais valorizadas e o surgimento das nucleações de ocupações irregulares. Nas palavras dos autores, essas

nucleações de favelas na cidade [...] começaram a ganhar significativa expressão ao final da década de 70, proliferando-se ainda mais a partir de 80 nas faixas de domínio da rodovia [...] ou em outras áreas impróprias à exploração imobiliária, como vales de Rio, os mangues, regiões de topografia acidentada e linhas de transmissão de energia elétrica (Lavieri; Lavieri, 1992, p. 32).

  • 4 Um tipo de areia grossa, de cor avermelhada ou amarela escura, comumente usada na produção de argam (...)

27É nessas circunstâncias que se se processa o surgimento e a consolidação da Comunidade do Timbó, ocupando um espaço vazio no bairro dos Bancários, que fora deixado de lado pelo planejamento urbano da cidade. Espaço vazio de papel importante para a construção dos conjuntos habitacionais da zona sul, por servir como local que fornecia o saibro4, um dos materiais para a edificação do conjunto dos Bancários e dos Professores.

O caso da Comunidade do Timbó: Ocupações, ações de remoção e estratégias de resistência

28A Comunidade do Timbó surge no período de intensificação da construção e ocupação da zona sul, constituindo-se e desenvolvendo-se em paralelo com o bairro dos Bancários. A área que hoje conforma o Timbó teve um papel significativo na construção deste bairro e na expansão da zona sul, integrando posteriormente a luta popular pela moradia no processo de produção espacial da cidade. A comunidade vai se edificando em uma área que compõe um pedaço do Vale do Rio Timbó, em que ocorria a extração de saibro para os conjuntos e onde os trabalhadores da construção civil, empregados nestas obras, foram alocados em barracas de apoio durante o período de trabalho, proporcionando o processo de origem do Timbó enquanto comunidade.

29A escavação conformou o aspecto geográfico do terreno da Comunidade do Timbó, colaborando para a determinação dos problemas ambientais que ganharam ênfase com a ocupação desse espaço, como indica a Figura 2 abaixo.

Escavação da jazida de saibro, em 1978, no vale do Rio Timbó para a construção do conjunto habitacional dos Bancários e dos Professores

Fonte: Ortofotocarta 89/90, 1978, Cruzeiro do Sul S. A, em Maria Auxiliadora Dantas (2003), modificado por Williane Pontes em 2019.

30As encostas deixadas pela extração de saibro conformaram áreas de risco ambiental na medida em que construções de casas foram realizadas em suas proximidades, seja acima ou abaixo das encostas, ocorrendo o risco de desmoronamento ou soterramento nos períodos de fortes chuvas na cidade. O terreno às margens do Rio Timbó também se configurou enquanto áreas de risco ambiental devido ao alagamento das casas situadas nos arredores, ocasionando situações de retirada das famílias em situação de risco para abrigos como as escolas, os salões de igrejas ou de associação comunitária, de modo a precaver esses moradores.

31As ações mais efetivas da Prefeitura Municipal para amenizar os riscos ambientais e de integridade física dos moradores só foram realizadas a partir do ano de 2013, quando os moradores se organizaram em busca da urbanização da comunidade e resolução dos problemas ocasionados pelas áreas de risco ambiental. Com a conclusão das obras, em 2015, os moradores dessas áreas de risco foram deslocados para conjuntos habitacionais construídos na comunidade para abrigar essas famílias, impedindo novas construções de residências nas áreas de onde foram removidos (Araújo, 2014; Pontes, 2021).

32As primeiras ocupações, como as barracas de apoio aos trabalhadores civis, foram levantadas ao redor da cratera, sendo uma alternativa da empresa civil devido à dificuldade de locomoção cotidiana ou pelo fato de os trabalhadores não possuírem uma residência fixa na cidade. Junto com a barraca e a extração diária de saibro do Vale do Timbó, este espaço começou, aos poucos, a receber outros personagens, indivíduos pobres recém-chegados na cidade e que buscavam um lugar para morar.

33O Relatório censitário da Associação Comunitária dos Moradores do Vale do Timbó – ACMVT (2016) informa que as primeiras ocupações na área aconteceram no ano de 1977, período em que o conjunto habitacional do atual bairro dos Bancários estava sendo construído. A ocupação do vale do Timbó se dá, portanto, em paralelo à utilização do vale para os interesses do planejamento urbano, que impulsionou a conformação geográfica e os primeiros traçados urbanos da comunidade, delineados nas primeiras ocupações e durante o desenvolvimento do Timbó.

  • 5 Método de construção que consiste no uso de madeira e barro para criar moradias, também conhecida c (...)

34As barracas de apoio não eram as únicas formas de ocupação do local, contando com a chegada de indivíduos e famílias que começam a residir nos espaços próximos à área de extração de saibro. Estes indivíduos e suas famílias, moradores ou recém-chegados à cidade, se acostaram individualmente ou em grupo junto às áreas traçadas para os trabalhadores da construção civil, delimitavam um pedaço do terreno e dele se apropriaram, levantando um barraco ou casas de taipa5 para residir, ou chegavam à ocupação mediante o intermédio de terceiros, geralmente parentes ou amigos, que auxiliavam na demarcação ou na compra do terreno.

35Ao se instituírem no espaço ermo como local de moradia, os sujeitos tinham como pretensão fixar residência na Comunidade do Timbó de forma a se estabelecer na cidade e, inclusive, quem sabe, conseguir um emprego na construção civil ou servirem com suas famílias na venda de produtos para os trabalhadores, com barracas de comida e de material básico de limpeza, higiene pessoal e outros, ganhando um meio de vida e um lugar para viver. Isso porque a maioria dos então moradores da ocupação se constituía de migrantes, desempregados ou dependentes de bicos, que buscavam na cidade uma oportunidade de trabalho e melhores condições de vida.

36O Timbó surge a partir da ocupação da área e da transformação do espaço em um lugar de moradia para sujeitos pobres em busca de sobrevivência e em luta pela permanência na cidade. Neste lugar de moradia e vivência desenvolvem formas de sociabilidade, uma cultura emotiva (Koury, 2018) cristalizada em códigos morais, onde pensam a si mesmos como seres relacionais e buscam adentrar na cidade mais ampla em seu entorno, procurando esferas de inclusão social e a partir de onde se integram à capital ao configurar a imagem do lugar com base na ordem social e moral da cidade, com o intuito de serem vistos como moradores de um lugar formado por trabalhadores que ganham a vida dignamente. Neste sentido, se ressentem de serem vistos como pessoas perigosas e à margem do social (Pontes, 2021).

37O processo de ocupação e desenvolvimento da Comunidade do Timbó é acompanhado pela construção de um imaginário social negativo do bairro dos Bancários e da cidade sobre o lugar. Imaginário amparado na apreensão do Timbó como lugar de pobreza, vulnerabilidade ambiental, perigo e violência, amparado pelo modo como a comunidade é retratada na mídia local, gerando um estigma (Goffman, 2011) sobre o lugar e os seus moradores (Pontes, 2020; 2021). Neste contexto urbano se produz um estigma territorial (Wacquant, 2017) que resulta em um descrédito tanto do local quanto dos seus moradores, que passam por um processo de depreciação que resulta em efeitos de exclusão dupla, uma vez que os moradores interiorizam as consequências da marginalidade avançada.

38Esta marginalidade discutida por Loïc Wacquant é significativa para pensar o caso do Timbó na cidade, uma vez se apoia na tendência em configurar certas áreas urbanas em espaços identificados como de pobreza, violência, perigo e imoralidade. São espaços de percepções negativas, onde circulam suspeitos em potencial, os resíduos que habitam territórios de descréditos embasados nos discursos midiáticos e nas interações cotidianas no e do local. A precariedade material fomenta a depreciação do lugar e dos moradores, gerando uma forma de precariedade que é, sobretudo, simbólica e relacional, com esses sujeitos vivenciando a tensa ambivalência de morar em um local estigmatizado a partir de onde compreende a si mesmo e aos outros na cidade, buscando estimular a pertença e os laços sociais.

39Para alcançar a consolidação da comunidade e o seu desenvolvimento, por exemplo, os primeiros moradores incorporaram disputas cotidianas com a Administração Pública da cidade em busca da permanência no lugar de moradia, luta que incorporou estratégias de resistências importantes para a manutenção do Timbó. Lutas que se reformulam com o decorrer dos anos, seja na procura por melhores condições locais, para a implementação de serviços públicos com água encanada, luz elétrica, saúde e educação, ou na lida cotidiana por transformar o imaginário negativo sobre o lugar, fomentando o sentimento de pertencimento, da comunidade habitada por sujeitos trabalhadores e honestos, e o empenho em integrar a cidade para além das margens.

Disputas cotidianas e luta pela permanência no Timbó enquanto lugar de moradia

40Para discorrer sobre as disputas cotidianas é preciso entender os processos de ocupação do Vale do Rio Timbó, que apontam para diferentes formas de concepção do uso do espaço e da sua transformação em lugar de moradia. Como supracitado, a primeira ocupação ocorreu em acordo com os objetivos do projeto de planejamento urbano, servindo na extração de matéria prima para a construção dos conjuntos habitacionais e como local de apoio e dormitório aos trabalhadores empregados na construção, de modo a diminuir o tempo de deslocamento na cidade e como forma de empregar indivíduos recém-chegados na capital e que não possuíam uma residência fixa.

41A utilização do espaço para a retirada de material para a construção civil ocasionou a abertura da cratera que conformou o terreno em uma parte alta, situada acima da encosta, e uma parte baixa, situada abaixo da encosta; ver a Figura 3 a seguir.

Morfologia da Comunidade do Timbó

Fonte: Mateus Araújo (2014), modificado por Williane Pontes em 2019.

42A parte alta possui um terreno plano com o bairro dos Bancários e o bairro Jardim Cidade Universitária, sendo composta por duas ruas: uma delas, a Rua Abelardo Pereira dos Santos, a principal do Timbó e corredor viário que proporciona o acesso rápido entre a zona sul e leste, interligando o acesso a UFPB e a orla marítima do bairro de Cabo Branco, uma área pequena e com densidade populacional menor em comparação a extensão e população da parte baixa da comunidade. Esta parte baixa, por sua vez, localiza-se no terreno acidentado da antiga cratera, com a presença de encostas e fazendo fronteira com as margens do Rio Timbó, abrangendo áreas de risco ambiental. Foi nessa parte que se sucedeu a extração de matéria prima e a feitura de barracas de apoio aos trabalhadores.

43O segundo momento de ocupação ocorre em paralelo ao primeiro, com a chegada de novos indivíduos e famílias que se fixam no espaço superior da encosta, onde atualmente estão localizadas as Ruas Margarida Maria Alves e Abelardo Pereira dos Santos. Os espaços vazios nas proximidades dos dormitórios dos trabalhadores vão sendo ocupados aos poucos, fomentando a criação das primeiras ruas do que veio a se consolidar como a Comunidade do Timbó, ocupando o terreno plano do Vale do Rio Timbó, enquanto os dormitórios e a cratera estavam situados no terreno acidentado, abaixo da encosta formada.

44Com a finalização das obras a empresa de construção civil demoliu os dormitórios com a pretensão de desocupar o espaço, no entanto, as informações da ACMVT indicam que alguns trabalhadores permaneceram na área e, junto com aqueles que já residiam na parte superior da encosta e aos novos moradores que chegavam gradualmente, fixaram residência e iniciaram o terceiro momento da ocupação. Esta situação marcou o desenvolvimento durante o início dos anos de 1980 o que, aos olhos da Prefeitura Municipal de João Pessoa - PMJP e o Governo do Estado, foi considerado uma ocupação irregular do espaço urbano, levando a iniciativas de remoção dos moradores.

45A ausência de moradia para os indivíduos e/ou famílias pobres que chegavam à cidade, principalmente a partir do final da década de 1970, contribuiu para a dinâmica de produção das ocupações irregulares, como são consideradas pelo discurso do setor público e privado e pela modernização que influencia o projeto de planejamento urbano da capital. O não suprimento da demanda por moradia fez com que os indivíduos e/ou famílias pobres tivessem acesso à moradia através da autoconstrução, seguindo para os espaços ermos na cidade, para os bairros populares e para as fronteiras dos bairros nobres e de classe média, se estabelecendo à margem (Agier, 2015), tanto no que se refere ao aspecto geográfico, ocupando os limites do bairro, e sobretudo ao aspecto político, nas bordas do direito à cidade, vivenciando-a de maneira precária e vulnerável.

46Nesta direção ocorre a aproximação com Michel Agier (2011) ao pensar a cidade a partir das margens, dos bairros populares e das invasões, espaços precários e periféricos, mas considerando-as para além da ausência e da exclusão como elemento chave ao pautar os sentidos e as relações produzidas por esses sujeitos na construção de uma cidade através de um estado supostamente caótico. Nessa conformidade, o Timbó se constitui na e como uma margem urbana, onde os sujeitos que ocupam e desenvolvem a comunidade, gestam relações e sentidos no processo das dinâmicas socioespaciais em desdobramentos, fabricando a cidade e, consequentemente, modos de ser e estar no urbano em questão. Processo que colocou em tensão esses sujeitos que se tornaram moradores do Timbó com os empreendedores morais (Becker, 2008) que buscavam manter a lógica moderna e ordenada da cidade.

47Howard Becker compreende os empreendedores morais como agentes sociais que desempenham uma ação pública para intervir em dadas situações com o objetivo de realizar uma transformação social, atuam enquanto articuladores de agendas sociais de intervenção pública, criadores de regras morais ou, ainda, figuras de um dado contexto interacional e societal que são influentes na definição de situações e de problemas sociais (Barbosa, 2019, p. 36). Em diálogo com Becker, a PMJP, o Governo estadual e a mídia são considerados empreendedores morais da cidade em processo de expansão e modernização, percebendo as ocupações em emergência nos espaços ermos como irregulares e efetuando um plano de contingenciamento para interromper ou frear esse tipo de apropriação que foge ao planejamento urbano em vigência.

48Os governos municipais e estaduais atuavam na realização de ações policiais e administrativas para a retirada dos sujeitos das ocupações em andamento e das comunidades já estabelecidas, com a derrubada de barracas e casas por retroescavadeiras operadas por funcionários da administração pública, com escolta policial, e a mídia agenciou na publicação de matérias em jornais enfatizando o caráter irregular das ocupações e apoiando as ações conjuntas dos governos para reverter o quadro. Atuaram como empreendedores morais por elaborar justificativas e condenações sobre as situações das ocupações e as ações dos sujeitos em tentarem se estabelecer nos espaços ermos, nos limítrofes da cidade ordenada, planejando e realizando empreendimentos de intervenção e transformação social que contribuíram para o processo de cristalização dos valores dominantes, pois suas ações buscavam fomentar o controle dos espaços e dos sujeitos pobres que recorreram a eles para estar na cidade.

49A ocupação do Vale do Rio Timbó, assim, preocupa o projeto de planejamento urbano, com os empreendedores morais realizando ações sobre a ocupação, mas não de forma diária ou com uma remoção definitiva para além da derrubada das construções no local, como relembra os moradores antigos acompanhados. As ações de remoções foram destinadas às ocupações e nucleamentos maiores que se desenvolviam naquele período, aflorando uma preocupação maior para a administração pública, destinando à ocupação do Timbó intervenções para frear a apropriação do terreno com a demolição das barracas levantadas para demarcar a moradia no local, mas sem a retirada dos então moradores.

50Lavieri e Lavieri (1992) apontam que no ano de 1976, durante a gestão do Governo de Ivan Bichara, foi criado um código de urbanização da cidade de João Pessoa. Este código de urbanização tomou forma de um planejamento urbano que tinha o objetivo de disciplinar o uso e a ocupação dos espaços resultando, entre outros efeitos, na pavimentação asfáltica e no redimensionamento de vias, bem como no norteamento das intervenções nos bairros em construção na cidade de então. Consequentemente, o que surge fora deste planejamento urbano se constituiria em algo que se desviava potencialmente do projeto de cidade.

51A intensificação dos conflitos em relação à produção, apropriação e gestão urbana ocorreu nos primeiros anos da década de 1980, sendo proporcionado pela crise de legitimidade política do Estado. O Governo da Paraíba, nos primeiros anos da respectiva década, foi gerido por Tarcísio Burity e caracterizou-se por se manter impermeável e não ceder as negociações diante das pressões e reivindicações das organizações populares, executando, com o apoio do aparato militar, uma série de ações de reintegração de posse e remoções sumárias das populações faveladas na capital paraibana, mas também no estado como um todo (Lavieri; Lavieri, 1999, p. 49).

52Neste sentido, as ações dos empreendedores morais buscavam administrar a pobreza urbana, mantendo-a disciplinada e concentrada em uma área determinada e que se enquadra nos códigos de urbanismo da cidade. A comunidade do Timbó é um exemplo da ocupação pela pobreza sem casa, pelos sujeitos e famílias pobres que não possuíam condições econômicas de financiar uma unidade nos conjuntos habitacionais em construção na zona sul ou mesmo em outras áreas e bairros populares. Esses sujeitos, recém-chegados do interior da Paraíba ou já residentes na cidade, começam a se fixar nos espaços vazios como o Vale do Rio Timbó, enfrentam as ações dos empreendedores morais da administração pública para desocupação, pois se apresenta como uma ocupação desordenada da pobreza que gera uma falência no projeto de cidade moderna e ordenada.

53As ações desses empreendedores morais para a desocupação dos espaços de moradia irregular se desenvolveram em toda a cidade de João Pessoa (Lavieri; Lavieri, 1992), com o objetivo de ordenar a pobreza urbana distribuída pela cidade e que extrapola o planejamento urbano. É possível compreender estas ações como ofensivas civilizadoras (Regt, 2017) que buscam controlar a paisagem da cidade e, sobretudo, administrar a pobreza através de ações planejadas e realizadas pelos empreendedores morais para intervir pública e politicamente no controle de ocupações irregulares.

54Os sujeitos da ocupação do Vale do Timbó travaram uma luta pela permanência no lugar frente às ações dos empreendedores morais, com a consolidação da ocupação como comunidade sendo fruto do agenciamento dos moradores que se configuram as e nas margens da cidade A margem é constantemente alvo de intervenções, invisibilizadas e deslegitimadas, mas também produtivas nas práticas corriqueiras de luta por reconfiguração urbana (Agier, 2015; Rosa, 2018). Ao conversar com a líder da ACMVT, gestão 2015-2018, sobre o processo de ocupação e desenvolvimento da área, ela informou que no início da ocupação as casas eram improvisadas em barracos para proteger da chuva e a luta pela permanência era constante, principalmente, frente à atuação do setor público para a desocupação do lugar. Informação complementada pelos moradores mais antigos, permitindo entender as estratégias de resistência para a consolidação da Comunidade do Timbó como lugar de moradia.

55Os interlocutores são, em sua maioria, moradores do Timbó há mais de 20 anos, aqui considera-se principalmente os que chegaram à comunidade no final dos anos de 1970, quando o espaço era utilizado para a retirada de saibro, e aqueles que se estabeleceram quando o espaço, agora lugar (Tuan, 1993; Koury, 2003), já havia sido considerada uma ocupação irregular, no início dos anos de 1980. De acordo com estes interlocutores, a população levantava os barracos em um dia e, no outro, os tratores da PMJP passavam derrubando, e sem chegar a uma negociação com os agentes públicos, os moradores se organizavam internamente no auxílio aos que tiveram suas barracas derrubadas para a reconstrução. Estratégia que contribuiu nas ações de resistência dos moradores, que criaram laços comunitários em torno do lugar, sendo, a princípio, uma luta por moradia na cidade, mas que com o desenvolvimento de vínculos estreitos de amizade e vizinhança, gestando uma forma de sociabilidade, torna-se lugar de moradia e pertencimento a partir de onde o morador reconhece a si mesmo e aos outros, bem como vivencia a cidade.

56A luta para fixar residência no lugar também aparece no trabalho de Mateus Araújo (2014) sobre a Comunidade do Timbó, quando aborda a precariedade das habitações e relata os casos em que os indivíduos ou famílias dormiam em redes, entre as árvores, para garantir o seu espaço no lugar em formação. A resistência continuada dos moradores, nos primeiros anos de ocupação da área para a construção de moradias, culminou em uma tensão latente com a administração pública. Araújo (2014, p. 46) informa a relação contínua e tensa na “disputa entre os moradores e a prefeitura, que atuava no controle da expansão da favela derrubando os barracos recém-construídos, de tal modo que o embate se prolongava por anos”.

57As disputas caracterizadas nas ações para a tentativa de retirada dos sujeitos do Vale do Rio Timbó e nas resistências desses sujeitos com a reconstrução dos barracos derrubados e a união comunitária em busca da permanência, não se processam de maneira uniforme em toda a área do Vale, de modo que é possível identificar diferentes formas e experiências de chegada e moradia na então ocupação. As ações dos agentes públicos, os empreendedores morais, se concentraram na tentativa de retirada dos indivíduos e das famílias que se fixaram na parte baixa do terreno, abaixo da cratera, onde se situavam os barracos de apoio aos trabalhadores da construção civil.

58É na parte baixa, principalmente nas proximidades ao Rio Timbó – que possuiu um papel importante ao servir de auxílio à população fornecendo água para o consumo doméstico, para a plantação e criação de animais –, que a ocupação se desenvolveu de forma intensa, sendo alvo das ações para frear o processo de fixação no espaço. Os moradores que construíram seus barracos ou casas no terreno acima da cratera, na parte alta, não tiveram que lidar diretamente com as ações de tentativa de remoção, suas casas não foram derrubadas como as daqueles situados abaixo da encosta, na cratera, mas temiam que essas ações chegassem até eles (Pontes, 2021).

59Dona Cláudia, que comprou dois terrenos na parte de cima, afirma não ter passado por nenhum confronto com os empreendedores morais. Em um de nossas conversas na calçada de sua casa, informou que quando chegou ao local, em 1979, até a sua consolidação enquanto comunidade, nenhuma ação para desencorajar a ocupação foi realizada no local em que ela residia, mas que frequentemente acontecia na área baixa. Esta interlocutora afirma não se envolver nas disputas em torno da permanência no lugar por se manter ocupada e afastada de casa durante o dia, em seu trabalho como empregada doméstica para uma família da cidade, sendo o filho mais velho – na época menor de idade – o responsável por permanecer em casa e cuidar dos irmãos em sua ausência. Bem como pelo medo da “confusão” chegar até ela caso se envolvesse, preferindo acompanhar a situação na espreita.

60A luta pela permanência travada pelos moradores da parte baixa foi acompanhada de longe por Dona Maria e outras famílias da parte alta, cujas narrativas e experiências se assemelham. Precisavam deixar os filhos e/ou as esposas em casa enquanto trabalhavam e como as ações de tentativa de remoção não os atingiam diretamente, optaram por adotar a estratégia de se manter afastados dos conflitos na parte baixa. Assim, as disputas que se desenrolaram com os empreendedores morais foi diretamente travada em relação aos sujeitos que ocupavam a parte baixa do terreno, onde se processou o adensamento populacional e, consequentemente, a expansão da ocupação.

61Uma dessas famílias é a de Dona Ivete, a mais antiga moradora da parte baixa entre o conjunto de interlocutores, que chegou ao Timbó no ano de 1981, acompanhada pelo falecido marido e suas duas filhas, com o intuito de se reestruturar após a falência de sua loja no centro da cidade. Esta família se fixou no terreno ao lado da casa de uma prima, na parte acidentada da cratera, e compartilhava a ocupação com uma vizinhança ainda fisicamente afastada, com a construção dos barracos e casas com relativa distância uma das outras. Dona Ivete conta que “era sofrido demais”, tanto pela falta de infraestrutura e serviços básicos de água encanada, esgoto e energia elétrica, além do risco ambiental de desmoronamento da encosta e alagamento ocasionado pelo rio nos períodos de chuva, como pela também pelas disputas com os empreendedores morais em torno da permanência.

62As estratégias de resistência se baseiam em ações comunitárias, com os moradores da parte baixa se organizando coletivamente para driblar as investidas em busca de frear a ocupação. Dona Ivete conta que “foi com a ajuda de todos que conseguimos ficar”, ressaltando o agenciamento dos moradores, com as ações centradas, principalmente, na reconstrução das barracas e casas derrubadas. Assim como os relatos dos demais interlocutores que experienciaram as disputas, Dona Ivete recorda que a presença dos agentes públicos não era diária, mas periodicamente apareciam no local para efetuar ações de derrubada das poucas casas erguidas na época. Nestas ações alguns moradores enfrentavam os agentes e se opunham às demolições, enquanto outros saíam de suas casas com o receio de que a situação se agravasse e “terminasse ruim”, seja com a remoção definitiva, com prisões ou mortes.

63Após a derrubada e a saída dos agentes públicos do local, os moradores se organizaram para coletar material de construção e refazer os barracos, que posteriormente foram se tornando apenas casas de taipa. O auxílio na (re)construção compõe a luta pela permanência no espaço, que se transforma em lugar de moradia e vizinhança, sendo uma das estratégias adotadas na defesa do Timbó como lugar de viver e morar (Vargas, 2016), onde se estabeleceram para ser e estar na cidade (Pontes, 2021, p. 75). As ações dos empreendedores morais na ocupação do Vale do Rio Timbó ocorreram periodicamente, buscando desencorajar os moradores a permanecerem e novos indivíduos e famílias a se fixarem naquele espaço, dinâmica que não surtiu efeito quando as práticas corriqueiras dos sujeitos, que se tornaram moradores.

64A Comunidade do Timbó, portanto, acabava por integrar a luta pela moradia no processo de expansão da capital paraibana, desenvolvendo estratégias de resistência e permanência no lugar. Isso porque, apesar da zona sul ter sido projetada para atender uma população pobre e menos abastada através da construção de conjunto com habitações populares, essas ações geridas pelo poder público não foram suficientes para contemplar a demanda habitacional, principalmente da parcela mais pobre da população, que ocupava os espaços vazios como a área do vale do Rio Timbó.

65As estratégias de resistência desenvolvidas pelos moradores fortaleceram a luta e colaboraram para a constituição da Comunidade do Timbó que, em seu primeiro momento de implantação, se estabeleceu como um lugar precário e de risco ambiental. Foi devido ao agenciamento dos moradores em torno da reivindicação pela urbanização da comunidade e resolução dos problemas sanitários e ambientais que a comunidade alcança a configuração urbana que possui atualmente, mas isto é uma discussão para outro artigo. Cabe aqui enfatizar a organização dos moradores em torno de agenciamentos para a melhoria do lugar de pertencimento, buscando o direito de moradia digna e com acesso a serviços urbanos, indicando como os sujeitos agenciam nas e a partir das margens por uma cidade que os integrem.

  • 6 A descoberta dessa área para a valorização imobiliária se inicia, principalmente, através da parcer (...)

66É neste contexto que a Comunidade do Timbó se constitui, sendo ocupada por indivíduos ou famílias pobres que não tinham onde residir na cidade. Durante seu desenvolvimento, a comunidade passa por diversas transformações urbanas até chegar a sua configuração atual, constituindo-se em uma área que a princípio foi planejada como parte da periferização da cidade, ao apreender a população pobre e menos abastada, mas que passa por um processo de valorização imobiliária que se inicia no final dos anos de 1990 e se intensifica durante as duas primeiras décadas dos anos 2000 (Pontes, 2020). Atualmente o Timbó integra uma área de crescente valorização imobiliária6 e ainda é apreendida como uma comunidade periférica pelos bairros circunvizinhos, mas essa também é uma discussão para outra ocasião.

Considerações Finais

67A necessidade de moradia motiva os indivíduos ou famílias pobres, advindos principalmente do interior do estado da Paraíba, a ocuparem os espaços ermos na cidade. Com a ocupação desses espaços se deparam com terrenos não considerados ou abandonados pela especulação imobiliária, e lá construíram habitações. No processo de ocupação, esses sujeitos pobres urbanos lidam com situações cotidianas de falta de infraestrutura, de acessos difíceis para locomoção, com riscos ambientais, e, ainda, com as situações de conflito com os governos municipais e estaduais, além do aparecimento de possíveis proprietários da terra, sejam eles privados ou estatais.

68A possibilidade de ocupar um terreno ou o baixo valor de compra na ocupação contribuiu para o estabelecimento de sujeitos pobres no Vale do Rio Timbó, seja no processo de formação e consolidação enquanto Comunidade do Timbó, bem como no seu desenvolvimento. As narrativas e trajetórias dos interlocutores se assemelham ao revelar que aproveitaram a desvalorização da zona sul e, principalmente, da ocupação do Timbó para conseguir ou adquirir um terreno e construir a casa própria para iniciar a vida familiar, sair da casa dos pais, fixar-se na cidade, sair do aluguel, ou reestruturar a vida sem precisar deixar a capital. O espaço do Vale do Rio Timbó, assim, não integrou os interesses do projeto de planejamento urbano da cidade, sendo deixado de lado por uns e apropriado por outros que veem na ocupação um modo de viver na cidade.

69A luta pela moradia funda a Comunidade do Timbó, surgindo em um período que caracteriza a expansão da malha urbana a partir da aplicação de um ímpeto de modernização, fabricando a periferização da cidade. A periferia no sentido físico se ajusta à periferia no sentido social na medida em que é ocupada e representada pelos pobres urbanos e menos abastados (Koury, 2018). A população pobre da cidade, e que chega à cidade, entre os anos de 1970 a 1980 se deslocam para a zona sul, seja pelas desapropriações dos bairros da via centro-leste ou pela falta de moradia, dando origem a ocupações e novos loteamentos que formam bairros e comunidades na zona sul, projetada como área periférica.

70Este processo de expansão e modernização urbana da capital foi pensado, aqui, a partir da Comunidade do Timbó, de modo a refletir sobre a periferização e as estratégias de resistência que perpassam as experiências e a configuração urbana e moral-emotiva deste período. A periferização, no entanto, ganha novos contornos com o desenvolvimento da cidade de João Pessoa, em que a zona sul passa por uma crescente valorização que se intensifica a partir dos anos 2000, com a especulação imobiliária dos bairros desta área, principalmente aqueles circunvizinhos das universidades locais: UFPB, UNIPÊ e UEPB. Estes bairros despontam como moradia para a classe média, com renda variável a depender do bairro, e para estudantes universitários, possuindo, também, enclaves de pobreza e comunidades.

71Nesse processo de valorização da zona sul, o bairro dos Bancários é um dos mais beneficiados na especulação imobiliária. A Comunidade do Timbó, que se situa neste bairro e tem com ele um histórico de relação tensa de segregação socioespacial (Soares, 2009; Pita, 2012; Araújo, 2014; Pontes, 2021), integra a nova periferização, sendo apreendida como uma comunidade periférica circunscrita em uma área de valorização imobiliária, fazendo fronteira com bairros de classes médias, médias altas e altas. A valorização se apresenta enquanto ambivalente para os moradores do Timbó que, ao mesmo tempo que se beneficia com melhorias urbanas e aumento do valor do terreno, as formas de se beneficiarem não são equivalentes entre os moradores da parte alta e da parte baixa da comunidade, com os primeiros saindo em vantagem quanto ao valor de suas casas e do aluguel.

72A valorização, por outro lado, evoca o receio de alguns moradores da parte alta, como foi possível perceber entre os interlocutores, do possível momento de precisarem vender suas casas ou serem retiradas delas. Esta foi uma narrativa presente nos moradores mais antigos, que vivenciaram, direta ou indiretamente, as disputas em torno da ocupação com os empreendedores morais da cidade. E mesmo com a valorização crescente dos arredores do Timbó, a comunidade, e consequentemente seus moradores, não estão livres das relações díspares, configuradas por estigmas e segregação socioespacial e econômica. É neste sentido que integra o novo processo de periferização na cidade, compondo um cenário de jogo comunicacional intenso entre a comunidade e o bairro, com moradores diferenciados principalmente pelo lugar de moradia e pertencimento, com a reafirmação de um estigma territorial em relação à comunidade e aos sujeitos que a compõem e a luta desses sujeitos por remodelar o imaginário negativo sobre o lugar, buscando representá-lo a partir de dentro.

73A cidade de João Pessoa, em suma, se desenvolveu de forma acelerada, principalmente a partir dos anos de 1970, com base em um projeto de planejamento urbano de ímpeto modernizador que configurou os modos de expansão da cidade. É um desenvolvimento urbano assimétrico pautado na lógica societária da economia de mercado e da exploração dos sujeitos pobres (Barbosa, 2019). A cidade se desenha entre áreas nobres e periféricas, com disputas e conflitos em torno das formas de ocupação do solo urbano, gestando diferentes modos de configuração urbana e emotiva. É na composição de uma compreensão desse processo de expansão da cidade pensado a partir de uma comunidade que esta discussão se situa, contribuindo para entender como a construção de um lugar está relacionado com a dinâmica socioespacial em desenvolvimento, produzindo formas de urbanidades pensadas através das margens, da disputa e tensão permanente com os modos hegemônicos de fazer e pensar a cidade, refletindo sobre os processos em jogo nas dinâmicas urbanas contemporâneas.

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Notas

1 A pesquisa Emoções e Sociabilidade Urbana: Uma etnografia sobre a Comunidade do Timbó, João Pessoa-PB apreendeu a Comunidade do Timbó como universo de análise e buscou compreender a sociabilidade e o viver local a partir da cultura emotiva (Koury, 2017) e dos códigos de moralidades que conformam o lugar Timbó (Pontes, 2020). Com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

2 No ano de 1998, mediante a implantação do projeto de Lei nº 1574, os conjuntos habitacionais da cidade de João Pessoa passaram a categoria de bairros.

3 A pesquisa documental de jornais impressos em circulação na cidade entre os anos de 1970 e 1980, recorte utilizado para pensar o processo de formação da zona sul, dos bairros dos Bancários e, principalmente, da Comunidade do Timbó através das matérias midiáticas locais, foi realizada junto ao acervo do Espaço Cultural José Lins do Rego. Um equipamento localizado na cidade de João Pessoa administrado pela Fundação Espaço Cultural – FUNESC, que promove a produção e circulação artística, cultural e educacional na Paraíba.

4 Um tipo de areia grossa, de cor avermelhada ou amarela escura, comumente usada na produção de argamassa, sendo eficaz para a construção de instalações.

5 Método de construção que consiste no uso de madeira e barro para criar moradias, também conhecida como pau a pique, conta com a construção de vãos a partir do entrelaçamento de madeiras, preenchidas com barro.

6 A descoberta dessa área para a valorização imobiliária se inicia, principalmente, através da parceria entre agentes do setor público e do setor privado para incrementar o espaço urbano da zona sul. É a atuação dos agentes privados que contribui demasiadamente para a requalificação desse espaço. Essa requalificação ocorre devido à potencialidade da UFPB em atrair a população, os serviços e os equipamentos para os bairros ao seu entorno (Negrão et al, 2016).

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Índice das ilustrações

Créditos A configuração urbana atual da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba
URL http://journals.openedition.org/pontourbe/docannexe/image/14292/img-1.png
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Créditos Escavação da jazida de saibro, em 1978, no vale do Rio Timbó para a construção do conjunto habitacional dos Bancários e dos Professores
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Créditos Morfologia da Comunidade do Timbó
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Williane Juvêncio Pontes, «Periferização e estratégias de resistência: A formação de uma comunidade a partir do processo de crescimento urbano de João Pessoa-PB»Ponto Urbe [Online], 31 | 2023, posto online no dia 25 julho 2023, consultado o 01 dezembro 2023. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/14292; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.14292

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Autor

Williane Juvêncio Pontes

 

 

Doutoranda e Mestra em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba.

 

E-mail: williane_pontes@hotmail.com.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0427-1487.

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