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“Vivendo no paraíso”: processos de urbanização e condomínios de luxo na terra do agronegócio

“Living in paradise”: urbanization processes and luxury condominiums in the land of agribusiness
Ezequias Freire Milan e Guilherme Passamani

Resumos

O trabalho reflete sobre algumas transformações urbanas na cidade de Dourados, no estado de Mato Grosso do Sul. Iniciada há mais ou menos uma década, tem sido considerável a expansão de condomínios fechados de alto padrão. O fenômeno não é exclusividade da cidade, mas tem algumas particularidades. Neste artigo, focamos no mais recente e luxuoso dentre eles, bem como nos aspectos moderno e cosmopolita que recobrem o empreendimento. Os dados foram produzidos a partir de um trabalho de campo junto às redes sociais do condomínio, por meio dos mecanismos publicitários a ele associados. Nosso objetivo é analisar as relações entre as novas formas de ocupação urbana de Dourados e as raízes colonizadoras e fundiárias que forjaram o mito do colono da terra no imaginário douradense.

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1Versão original recebida em / Original version 21/01/2021

2Aceito em / Accepted 20/10/2022

Introdução

3Ao longo desse artigo discutiremos alguns desdobramentos dos recentes processos de urbanização de uma cidade no interior do estado de Mato Grosso do Sul à luz da Antropologia Urbana. Trata-se da cidade de Dourados, atualmente, o segundo maior município do estado de Mato Grosso do Sul em termos populacionais, contando com aproximadamente 225 mil habitantes (IBGE, 2017). Para tanto, analisaremos tais questões a partir das redes sociais de um condomínio fechado de alto padrão.

4Deslocar o olhar para cidades não consideradas grandes centros urbanos, fora das áreas metropolitanas, é um desafio para o pensamento antropológico. A ideia é problematizar realidades não autorreferentes que passam a experimentar processos que não eram comuns ali ou próprios de lugares, como os condomínios fechados de alto padrão. Assim, parece-nos relevante perceber as idiossincrasias desses movimentos quando se trata de uma localidade fora de um suposto eixo mais comum de análise.

5Mais especificamente, atentaremos aos processos sociais e simbólicos que, historicamente, permanecem através da vinda e da intervenção do Colono. Este personagem simboliza aqueles que chegaram a Dourados, principalmente vindo da região sul do país, para ocupar as terras que formariam a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND). Este movimento migratório foi fruto de um projeto nacional conhecido como “Estado Novo” (Naglis, 2014), parte de sua função era desenvolver a região centro-oeste e, basicamente, expandir as fronteiras agrícolas. Dourados experimentou uma intensificação desse tipo de colonização, branca e sulista, a partir dos anos 1940, em detrimento das populações autóctones. Desta forma, esclarecemos que, ao longo do texto, quando falarmos em colônia no contexto de Dourados, estaremos nos referindo à Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), que foi criada em 28 de outubro de 1943 em terras que pertenciam à União.

6Neste ponto, vamos ao encontro das perspectivas de Alcir Lenharo (1986a, 1986b), historiador dos processos políticos e econômicos que fizeram parte das (más) distribuições de terras no Sul do atual Mato Grosso do Sul. Onde com a especulação e transformação da terra, certos grupos econômicos “deitaram e rolaram” (1986a, p. 2) numa “orgia de transações imobiliárias” (Idem, p. 8). Os que povoaram estes lotes de terra, vindos da região sul com intuito agricultor ou pecuarista, foram chamados de colonos no contexto local. Neste ponto, ampliamos a visão de Alcir Lenharo estendendo a perspectiva que ele aplicou “nordestinos”, também aos povos indígenas que já estavam na região. Analisaremos aquilo que estamos chamando de “a segregação douradense”, agora atualizadas da especulação de terras agrícolas da Colônia Nacional, para a especulação de terras urbanas nos condomínios fechados.

7Nossa reflexão segue a concepção de que isso não é fruto de um acaso histórico, mas parte de um projeto consciente produzido pelo estilo de “desenvolvimento” trazido à região, principalmente pelos colonos vindos da região sul do Brasil. Assim, os condomínios fechados, a partir da leitura que propomos, muito menos que uma invenção, tratam-se de uma nova roupagem de um processo de segregação espacial iniciado no mundo rural a partir dos sujeitos oriundos do sul do Brasil e de espírito agrário, que ganha os centros urbanos e acaba por acentuar desigualdades. Como nos trabalhos de Ana Paula Gomes Mancini e Paula Nudimila Oliveira Silva (2008), a vinda “dos gaúchos e sua lavoura mecanizada” (Mancini; Silva, 2008 p.7) para Dourados, “marcam a fisionomia cultural da cidade” (Idem, p.7).

8Construímos pontes com a temática proposta no trabalho de Willian Luiz da Conceição a respeito da branquitude no/do dilema racial brasileiro. Para pensarmos nosso campo e nossa pesquisa, levamos em consideração que, na história do pensamento social brasileiro, “quando os brancos destrincharam, ao longo dos seus estudos, negros e indígenas, como elementos radicalmente exóticos e estranhos, transformavam as ciências humanas como parte da sua governamentalidade” (Conceição, 2020, p. 23). Conforme Conceição, o resultado deste movimento é que “a falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades [...] [são] uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado, problematizado” (Idem, p. 23). Tendo em vista, então, que o branco (e sua brancura) também “é uma categoria racial que foi pacientemente construída” (Ibidem, p. 23), o trabalho pretende demonstrar, através da dissecação social de um dado imaginário que transpassa a vida da elite douradense (mas não apenas), “um lugar estrutural de vantagem e de privilégios ‘raciais’ baseados em práticas e identidades culturais, não necessariamente marcadas ou fixas, mas nas quais a brancura é estabelecida como valor simbólico e material” (Ibidem, p. 23). Ainda nas palavras do autor, procuramos demonstrar partes das “diversas e complexas dimensões sociais da branquitude na vida social em que tal fenômeno age de maneira objetiva e subjetiva reforçando privilégios, construindo padrões de inteligência, beleza, hierarquias entre as diversas modulações de cor e competências em todas as instâncias da sociedade brasileira” (Ibidem, p. 69). Diferentemente de pensarmos sobre “o negro tema e o negro objeto” (Ramos, 1995, p. 53), o indígena tema e o indígena objeto, ou o pobre tema e o pobre objeto, pensaremos os brancos e ricos como tema e objeto.

9Seguindo uma toada próxima a dos etnógrafos de Chicago, cidade que entre os séculos XIX e XX foi palco e atriz de uma explosão populacional que a transformou em uma grande metrópole, e que justamente por isso se tornou um terreno fértil para o estudo daquilo que ficou conhecido como “sociedade complexa”, discutiremos questões que também vão ao encontro dos recentes processos migratórios e imigratórios que influenciaram o aumento e a modificação populacional, territorial, sociopsicológica e estética da região da Grande Dourados a partir da década de 1940.

10De forma similar aos chicagoenses, que viam sua cidade sendo transformada por grupos que chegavam para pegar um pedaço do sonho e da riqueza prometida pelas indústrias que por ali brotavam, compreendemos como é também possível notar, em Dourados, movimentos humanos advindos de muitos lugares do Brasil e do mundo após a primeira metade do século XX, sobretudo da região sul do Brasil. Em sua grande maioria, partindo de um objetivo bem específico: a conquista de terras. Neste movimento, compreendemos a cidade como um imã de pessoas de tipos diversos e que têm a capacidade de fazer com que estilos diferentes em classe, raça/etnia ou gênero transitem sob o mesmo espaço, ainda que com fronteiras claras e visíveis entre elas, como demonstraremos.

11Do ponto de vista metodológico, o trabalho de campo foi realizado a partir da interlocução com a rede social do condomínio, no Instagram. Em sua relação com seus seguidores, outros atores e discursos também surgiam ao serem expostos pela própria página. Havia muitas interações com arquitetos, engenheiros, futuros moradores, fornecedores de material de construção, funcionários que trabalharão para os compradores dos terrenos, funcionários da empresa de loteamento e pessoas desejosas em adquirir um lote. Estas interações eram expostas, diariamente, no stories e no feed do perfil. Para além destas interações, também foram observadas todas as postagens no feed do perfil. As observações iniciaram em agosto de 2018 e seguiram até dezembro de 2019.

12Concomitantemente, seguimos os discursos publicitários que forjam o condomínio. Para isso, estabelecemos interlocução com as propagandas publicitárias produzidas por uma empresa de comunicação especializada contratada pela incorporadora que projetou o local. A empresa era quem gerenciava o perfil público do condomínio no Instagram, nosso campo de pesquisa, onde produzimos os dados ora analisados. Um dos sócios proprietários da empresa construtora do condomínio também administrava a página do empreendimento na plataforma. Ele interagia diariamente com seus seguidores, sendo quem dava voz, rosto e pessoalidade às interações da página com seus seguidores.

13Metodologicamente falando, há diferentes formas de trabalhar com as plataformas digitais na Antropologia. Há perspectivas que as nomeiam como “etnografia online”, “netnografia” ou “etnografia virtual”. Todas diferentes entre si, mas focadas em uma metodologia adaptativa que se molda às novas formas de relações sociais entre humanos e não humanos (Kozinetz, 2014). Essa ferramenta “nasce em função da necessidade da academia de abordar um ‘novo’ espaço, o virtual, o online” (Noveli, 2010, p. 109). Desta forma, uma metodologia adaptada às particularidades atuais das sociabilidades mediadas por computadores em rede (Kozinetz, 2014).

14Há certas distinções entre netnografia e etnografia virtual. O Marketing e a Administração se utilizam do termo netnografia, já a Antropologia e as Ciências Sociais, em geral, têm usado o termo etnografia virtual com mais frequência (Amaral et al., 2008, p. 34). Assim como para Gibran Braga, compreendemos que “a internet não forma um espaço autônomo, que existe em paralelo aos espaços físicos; a distinção online/offline é circunstancial e precária, pois “real” e “virtual” estão constantemente articulados. A rede é parte do mundo, e não um “mundo à parte” (Braga, 2015, p. 228). Partimos do pressuposto de que não existem duas dimensões distintas: real e virtual. Mas sim que há uma continuidade entre as duas, demarcada pelas noções de online e offline. Portanto, um termo corrente entre pesquisadores das Ciências Sociais (especialmente brasileira), seria “etnografia online”.

15Conforme Carmen Rial destacamos a ideia de “etnografia de tela”, que, segundo a autora, “é uma metodologia que transporta para o estudo do texto da mídia procedimentos próprios da pesquisa antropológica, como a longa imersão do pesquisador no campo (no caso, em frente à televisão), a observação sistemática e o seu registro metódico em caderno de campo etc.” (Rial, 2004, p. 30-31). Todos esses recursos nos permitiram, mais que observar despretensiosamente, olhar antropologicamente para os elementos presentes na página oficial do Condomínio e produzir dados etnográficos.

16O presente artigo está dividido em quatro partes. Em um primeiro momento, demonstraremos algumas origens históricas de um dado espírito agro-urbano que atravessa a elite douradense em suas relações com o referido bairro murado. Logo depois, apresentamos o fenômeno dos bairros cercados por muros, em Dourados, como reflexo das políticas estatais desiguais de colonização e de distribuição agrário-econômica produzidas pelo Estado em parceria com o setor privado desde a década de 1940. Na terceira parte, exploraremos, de forma mais aprofundada, os discursos advindos da propaganda a respeito do condomínio fechado. Por fim, na quarta parte, mostramos como se articula o movimento orientado por dinâmicas étnico-raciais e de classe, no qual permeiam a construção de imaginários e projetos individuais e familiares que refletem a elite douradense, reprodutora de desigualdade social. Assim, percebe-se que o condomínio pode ser, mais um (quem sabe o mais significativo até então) projeto racionalizado e especializado de zoneamento segregacional urbano.

O processo de “desenvolvimento” de Dourados

17Na cidade de Dourados encontram-se as polissemias que abarcam os conceitos de colono e colônia. Conforme Aníbal Quijano (2005), o término do colonialismo econômico e político da América Latina, na segunda metade do século XIX não trouxe o fim da colonialidade das relações sociais, mantendo-se como base da formação social latino-americana. Este processo constitui a colonização da memória e do imaginário, pautado em um projeto civilizatório em prol da modernidade, pela colonialidade do ser e da natureza. Nas palavras do autor, “em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas – entre seus descobrimentos culturais – aqueles que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo” (Quijano, 2005, p. 237). Posteriormente, força-se os colonizados:

a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da religiosidade judaico-cristã. Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura (Idem, p. 111).

18Desta forma, o processo de colonização institui uma espécie de apagamento da representação e da autorrepresentação de sistemas simbólicos de subjetivação pela introdução de outro, transformando a memória e a experiência, como uma herança cultural. Uma monocultura do tempo linear, que nas palavras de Boaventura de Sousa Santos (2006), forjou a história como se ela tivesse um único sentido, organizando o espaço e o tempo na grande narrativa da perspectiva do colonizador. Essa forma de conceber o tempo, o espaço e as diferenças na fronteira com o colonizado, para Valter Carmo Cruz (2017, p. 20), é também “uma forma de imaginação geográfica, uma leitura do mundo que opera através de uma transformação, uma reorganização da geografia (uma simultaneidade espacial de diferenças) em uma única fila histórica (uma sucessão de etapas e períodos).A ideologia e o discurso coloniais cimentam as relações sociais estabelecidas entre diferentes grupos humanos, de alguma forma, postos em contato.

19Na cidade de Dourados, os processos instaurados através do reservamento dos povos indígenas, da invenção da CAND, e posteriormente nos loteamentos de luxo, incidem e dialogam com o colonialismo e suas derivações através do impulsionamento de uma colonização não indígena. Notamos aí um imaginário colonial que permanece mesmo depois do colonialismo ter sucumbido enquanto sistema. Dessa forma, muitas relações, ainda que em outros contextos, podem ser estabelecidas a partir destas influências advindas da colonialidade e seus desdobramentos.

  • 1 Colocamos o termo entre aspas pois estes movimentos não levaram em consideração, por exemplo, as po (...)
  • 2 Para muitos, a cidade de Dourados carrega o apelido de “terra vermelha”. Tal nome se dá pelo fato d (...)

20É nesse sentido que, historicamente falando, a cidade de Dourados é afetada, desde suas raízes, pela colonização e suas permanências, na forma de colonialidade gerada pelos loteamentos em massa de territórios compreendidos erroneamente como “vazios”1. Não à toa, conforme Alcir Lenharo, a população (não indígena) de Dourados aumentou em 611% somente na década de 1950 (Lenharo, 1986a). Para esta terra vermelha2, atraiam-se todos aqueles que sonhavam com uma vida melhor, com mais acesso, mais poder econômico e mais qualidade de vida, algo que as terras da parte sul do atual Mato Grosso do Sul prometiam dar com abundância. Segundo Ana Paula Menezes (2011), na primeira edição do clássico jornal douradense O Progresso, um dos principais meios de comunicação da Grande Dourados até os dias de hoje, já era apresentado e enaltecido o mito fundamental da região: a terra. Em 21 de abril de 1951 se leu em suas primeiras páginas que havia poucos anos desde “o descobrimento econômico de Dourados, a que se prendem diversos fatores que, enfim, podem ser reduzidos num único: o esplendor e a magnitude da terra dadivosa e fecunda que possui” (Menezes, 2011, p. 5).

21Este sonho imaginado e projetado, baseado na expansão nacional e territorial em prol do desenvolvimento econômico brasileiro, no qual a terra foi um dos imãs necessários para a atração de pessoas na formação de uma Colônia Agrícola, acabou por transformar a região em um mercado de especulação com a terra desde o início de sua implantação. Na década 1950, de forma similar aos dias de hoje, mas com o detalhe da substituição da notícia impressa pelas redes sociais, “nos jornais cariocas e paulistas os técnicos de publicidade são convocados, havendo anúncios que rememoram, a título de ofertar glebas mato-grossenses, o título de uma fita de cinema: ‘terra é sempre terra’” (Lenharo, 1986, p. 57). Enquanto isso, em terras douradenses, especuladores compravam lotes por 5 ou 10 cruzeiros e os revendiam por até 300 cruzeiros, transformando-a em uma potente mercadoria, tanto de troca quanto de status. Atualmente, na terra vermelha de Dourados, a continuidade deste processo ainda ocorre e produz consigo a valorização de certos espaços através dos mecanismos técnicos da publicidade especializada, como bem faz a empresa que projetou e incorporou à cidade o condomínio de moradia analisado, categorizado como Park & Resort. Como expõe em sua rede social, a especulação com a terra, agora não mais apenas sob a forma de propriedades rurais, mas ainda na mão de pequenos grupos, sobretudo com grande poder econômico e político, se mantém “transformando a terra em metros quadrados de valor” e produzindo lugares de “padrão superior”, nas palavras da incorporadora.

22Como Silvio Almeida (2019), compreendemos que projetos nacionais como a CAND, no qual advém a cidade de Dourados, não existem apenas para funções econômicas ou jurídicas, mas “são, sobretudo, projetos políticos que se voltam à constituição de um novo imaginário social, de uma identidade cultural mobilizada em torno das exigências sociopolíticas da industrialização, formação de mercado interno e defesa nacional” (Almeida, 2019, p. 129). Ou seja, para que o desenvolvimento capitalista aconteça, a colonização promovida por aqueles que são tomados como “superiores” e/ou “desenvolvidos”, tem grande relevância para a produção do racismo e da branquitude através da formação de um Estado de coisas que é jurídico, econômico, psicológico e estético, sendo induzido por um processo de “modernização” e industrialização. No caso do sul do atual Mato Grosso do Sul, também de espírito agropecuário.

23Indo ao encontro desse argumento, tem-se o fato de que, no início da expansão não indígena na cidade de Dourados, através das políticas que instituíram a CAND, surgiu “o controle disciplinar, diz uma fonte oficial, inspirando-se em Pedras do Coronel Delmiro Gouveia, na qual o pé descalço, a camisa fora da calça, o cachimbo de barro, o aguardentismo, o jogo, foram coisas banidas” (Lenharo, 1986, p. 50). Sendo possível, inclusive, ser desempossado do lote o colono que “por sua má conduta tornar-se elemento de perturbação para a colônia”, conforme o Decreto-lei 3059 de 14 de fevereiro de 1941. Ao se proibir os pés descalços e as camisas para fora, a colonização do colono não foi apenas a dos espaços. Tocava-se também os corpos, a fim de instaurar os “bons modos” do colono, no local de espírito rural e indígena.

24Em Dourados, a terra também é uma mercadoria de troca, de status, de desenvolvimento e até mesmo de cultura do espírito do um estado Sul-mato-grossense, passaram a agenciar diversos atores sociais que, com o suceder dos anos, transformam-se juntamente com as contingências. Assim, aquilo que a partir de 1943 “o Estado Novo lançara com intenções de um projeto estatista, as companhias privadas reformularam-no, voltando-se particularmente para a especulação febril da terra” (Lenharo, 1986, p. 51) permanece até os dias de hoje produzindo desigualdades sociais e raciais, explícitas e sutis.

25Os movimentos que antes implantaram a CAND, bem como suas relações com a noção de “desenvolvimento” que veio em prol do incremento de uma defesa nacional, de um aparato jurídico e de uma economia agrária, através do enlace do Estado e setor privado, atualmente demonstram-se em continuidade numa união entre o estado e empresários do setor imobiliário.

A segregação douradense

  • 3 A fala do reverendo diz respeito ao caso da cidade de Búfalo, em Nova Iorque, no ano de 1978. Uma p (...)

26Partindo dos movimentos por justiça ambiental nos Estados Unidos da América, ao final de 1970, incorporamos o conceito de racismo ambiental. Conforme Lays Helena Paes e Silva (2012), “o reverendo Benjamin Chavis, na ocasião diretor da Comissão responsável pela realização da pesquisa, foi quem cunhou a partir da experiência em Warren County o termo ‘racismo ambiental’ para designar ‘a imposição desproporcional – intencional ou não – de rejeitos perigosos às comunidades de cor’ (Silva, 2012, p. 5)3. As discussões abertas após a notoriedade do caso trouxeram evidências que a forma com que ocorre a organização desigual dos espaços e dos sujeitos, nos ambientes urbanos, diz respeito ao poder político, econômico e simbólico que estes grupos detêm, no momento da histórico de um dado espaço.

27A partir desta compreensão e levando em consideração que estas formas de reprodução tendem a ser ainda mais contundentes em contextos já marcados por uma desigualdade histórica, aproximamos o estado do Mato Grosso do Sul e a cidade de Dourados àquilo que Henri Acselrad (2010) apontou como um grande conjunto de movimentos e ações que marcaram a história do Brasil em sua relação com a injustiça ambiental com povos indígenas, populações periféricas e quilombolas. Desse mesmo modo, o condomínio que analisamos por meio de suas redes sociais, bem como a maioria dos atuais empreendimentos imobiliários cercados por muros e de alto padrão que, recentemente, têm sido construídos, situam-se principalmente no extremo norte da cidade, em uma das partes de maior altitude do solo douradense.

28Se pensarmos como Tânia Pacheco (2016), notaremos que formas racializadas de relações sociais devem ser entendidas como questões que transcendem a cor e transpassam também populações economicamente vulnerabilizadas e socialmente marginalizadas. Conforme a autora, e citando apenas um exemplo, no momento em que a cidade de Nova Orleans nos Estados Unidos foi atingida pelo furacão Katrina em 2005, a raça e a classe social de alguns cidadãos foram fatores totalmente determinantes na capacidade de sobreviver fugindo, procurando abrigo ou encontrando asilo em outras cidades.

29Concomitantemente, se levarmos em consideração que a capacidade de sobrevivência às adversidades, sejam elas de qual natureza forem, acabam por atingir, de forma mais contundente, grupos mais vulneráveis da sociedade, teríamos em mente uma outra forma de racismo estrutural e institucional que “desvela para nós como se aplica a intrincada relação entre classes sociais e preconceito, entre poder econômico e racismo” (Pacheco, 2016, p. 1). Não é por acaso que, no condomínio discutido, não apenas há mais de 16.000 metros de tubos para a drenagem de águas pluviais, como o mesmo se localiza na parte mais alta de Dourados. Afinal, a água do lugar mais elevado da cidade precisa escoar para algum outro lugar, que com certeza não será lá. Ela descerá, do lugar mais alto e rico, para o lugar mais baixo e pobre.

30Da forma similar funciona a rede de fornecimento elétrico do local. O condomínio não apenas é a primeira rede subterrânea de energia elétrica do estado, que conforme trabalho de campo visa “eliminar a poluição visual” que os cabos e postes trazem, mas também tem a benesse de receber energia de dois pontos diferentes, transmitidos pela empresa privada responsável pela eletricidade no estado de Mato Grosso do Sul, a ENERGISA. Ou seja, se em lugares da cidade é possível ficar sem energia por motivos técnicos que podem ser de fornecimento ou transmissão, nesta “nova dimensão” douradense esta possibilidade se torna mais remota. Como foi mencionado na rede social do condomínio, “caso ocorra o interrompimento de energia de um lado, o outro continuará a fornecer energia elétrica”.

31A partir de tais exemplos, o que nos parece é que “as desigualdades sociorraciais não são tragédias, ou simples acasos, elas integram a gestão pública e também privada da vida e da morte” (Conceição, 2020, p. 20), mas sim funções e resultados de toda a engrenagem de um sistema que se sustenta sob os pilares do discurso econômico, jurídico, estético e epistemológico advindo da produção de um dado Estado-Nação, pensado e projetado na/pela terra após a década de 1940, onde a “raça e até mesmo a concepção de cultura se tornam fundamentais ao advento e à constituição do estado nacional” (Idem, p. 26) construindo a arquitetura das desigualdades, dos espaços das relações. No caso de Dourados, amparado “desenvolvimento” e o “progresso” da terra.

32 Em diálogo com Clovis Moura, em Dialética Radical do Brasil Negro (1994), Silvio Almeida nos mostra como “raça e classe são elementos socialmente sobredeterminados” (Almeida, 2019, p. 125), assim como racismo e desenvolvimento também podem ser. Neste sentido, se levarmos em consideração que “projetos nacionais de desenvolvimento são, sobretudo, projetos políticos que se voltam à constituição de um novo imaginário social, de uma identidade cultural mobilizada em torno das exigências sociopolíticas” (Idem, p.129), talvez nos seja interessante notar a perspectiva de desenvolvimento e progresso repetidos historicamente como principais mitos fundadores da cidade de Dourados, juntamente com o chamado colono.

33 Tomamos a experiência da expansão das fronteiras Americanas de Neil Smith (2007). Em Dourados, a compreendemos como um processo de expansão espacial, através da dominação do mundo físico, que se tornou peça central na definição da “identidade douradense”, assim como Smith menciona sobre e identidade americana. Neste interim, como já dito, tem-se o “colono” visto como o principal mito fundador da cidade de Dourados. Ele é compreendido como o responsável pelo desenvolvimento da cidade e está eternizado em um monumento de um homem com machado na praça central. Abaixo de seu corpo está transcrito que ele fora “o herói anônimo que escreveu, ao som do surdo machado, a epopeia do desbravamento das nossas matas virgens, abrindo clareiras e plantando a semente do desenvolvimento de Dourados” (grifo nosso). Se o colono abriu as matas na intenção de instaurar o desenvolvimento, igualmente se vende e se mostra a empresa que ergueu o condomínio. Como se percebe em suas redes sociais, sua função seria instaurar, em Dourados, “uma nova perspectiva de urbanismo” e uma “nova era para a cidade”. Nas palavras de Neil Smith “o termo pioneiro urbano é tão arrogante quanto a noção de pioneiro, visto que ele transmite a ideia de uma cidade que ainda não é socialmente habitada” (Smith, 2007, p. 16). “Espera-se que que os novos pioneiros façam pelo espírito nacional o mesmo que os antigos fizeram: conduzir-nos a um novo mundo no qual os problemas do mundo velho são deixados para trás” (Idem, p.16). Como o colono e o revolucionário urbano, “o apelo à imagem de fronteira é exato: pioneiros urbanos proprietários urbanos e caubóis urbanos são os novos heróis folclóricos da fronteira urbana” (Ibidem, p. 16).

34 Colonizar e modernizar os espaços, construir formas privilegiadas e desenvolvidas de morar e viver. Em Dourados, “enquanto a diferença é observada no corpo, a desigualdade se estabelece na alma, na natureza não só do indivíduo, mas no grupo do qual ele faz parte. Essas concepções passam a conduzir e orientar as ações de gestão política com o objetivo da manutenção da ordenança racial estabelecida” (Conceição, 2020, p. 29). Dentro do pensamento social douradense, existem fortes elementos que aderem à imagem identitária de uma nação municipal que tem como modus operandi as fundações epistemológicas do colono e sua heroica relação com a produção advinda da terra.

35 Neste movimento de pensarmos a produção de uma estética que plantou a cidade em torno do desenvolvimento do espírito rural, do colono advindo da lavoura mecanizada do sul, pensamos a cidade de Dourados de forma similar a Sara R. Fernandes Queiroz de Medeiros (2018) e compreendemos que

O conceito de segregação começou a ser utilizado nos anos 1920, pela denominada Escola de Chicago, cujos princípios viam a cidade como um organismo vivo, uma ecologia humana, similar aos outros seres vivos, dentro de uma visão organicista. A ideia defendida era que: “gostos e conveniências pessoais, interesses, vocacionais e econômicos tendem infalivelmente a segregar e, assim, classificar as populações das grandes cidades (Medeiros apud Park, p. 71).

36 Neste organismo vivo que é a cidade, corroborando com os fatos apresentados anteriormente a respeito de que “a classe dominante controla as ações do Estado na produção do espaço” (Medeiros, 2018, p. 74), fica clara a reorganização da vida social e seu papel na formação de uma nação que tenciona para a invenção e a manutenção de um espírito de unidade que tenta unir o povo em torno de propósitos e temáticas especificas, e que tocam da CAND aos condomínios de luxo. Assim como propôs o autor, “a questão aqui, portanto, é também estabelecer, na trilha que estamos construindo até o momento, uma relação estrutural e histórica, e não meramente funcional ou lógica, entre política (Estado), economia e racismo” (Almeida, 2019, p. 67).

37 Em Dourados, a respeito deste novo fenômeno dos condomínios fechados focados nas elites e nas classes médias e, mais especificamente, a este que até agora tem sido não só o maior e mais arrojado projeto, mas o primeiro que promete reproduzir uma espécie de espírito da cultura douradense, o que se nota é a importância da delimitação territorial e simbólica na reprodução da uma dada “nacionalidade” municipal que normaliza as divisões e as desigualdades sociais. Elas são mantidas e “praticadas diretamente pelo Estado, ou por determinados grupos sociais que agem com beneplácito estatal” (Idem, p. 129).

38O processo segregacional observado em Dourados pode ser compreendido à luz do conceito de gentrificação. Estas ações técnicas de intervenção no espaço são constituídas por processos conscientes de expulsão de populações, de melhoramento urbano e de limpeza social que se apresentam em movimentos de alteração do espaço físico e dos padrões culturais arquitetônicos refletindo uma espécie de “aburguesamento” da cidade e/ou do local. Estas, em Dourados, podem ser notadas num processo de médio e longo prazo que vai do início do século. XX, com a criação das Reservas Indígenas e o deslocamento espacial dos povos indígenas para seus interiores, até a vinda da CAND com seus colonos, nas décadas de 1940 e 1950, se desdobrando nos condomínios de luxo atuais, erguidos sob as antigas terras e plantações que ficaram livres para o investimento privado.

  • 4 A avenida, recém-construída, leva o nome do falecido bispo da Diocese de Dourados.

39Inspirando-nos em Ruth Glass (1963), que usou o termo para apontar o processo de expulsão de populações dos antigos bairros de Londres em prol da reocupação e elitização destes bairros, acompanhamos, em Dourados, a ocupação das antigas terras indígenas em prol do plantio. Posteriormente, em nossos dias, vemos parte dessas terras sendo transformadas em elegantes pontos de consumo das classes médias e altas. Tanto pela fundação dos condomínios como por seu embelezamento externo. A exemplo, tem-se a Av. Dom Redovino Rizzardo4, onde se localizam todas as vias que dão acesso aos condomínios de luxo douradenses. Suas ruas sempre limpas, suas palmeiras imperiais e seus condomínios fechados, de fachadas monumentais com cascatas de água e obras de arte. Não à toa, o local se tornou frequentado por milhares de pessoas semanalmente. Elas consomem seus arredores sem poder ultrapassar para o interior dos muros dos condomínios. O lugar passou a ser escolhido como ponto de encontro, prática de exercícios físicos ou rodas de violão embaladas ao tereré, bebida típica da região e de origem indígena.

40Em Dourados, evidenciam-se as palavras de Rogério Leite (2015), a respeito do espaço e do poder:

Em meio à inacabada discussão acerca das características e do próprio conceito de gentrification, esse aspecto parece consensual entre os estudiosos do assunto: espaços enobrecidos resultam quase sempre de alterações substanciais de usos e usuários, e implicam invariavelmente em demarcações socioespaciais excludentes. Essas fronteiras modernas, muitas vezes alicerçadas em padrões de consumo, têm forte ressonância política: em geral implicam a criação de nichos espaciais de novos modos de vida urbano, muitas vezes fundamentados em postulados de excessiva segurança pública, acompanhados de uma nem sempre discreta discriminação socioeconômica. Essa é a dimensão mais evidente da relação entre espaço e poder nos sítios enobrecidos: o poder se especializa na forma mais explicita de segregação do espaço (Leite, 2015, p. 34).

  • 5 Deixamos claro que a desapropriação dos povos indígenas não começou na década de 1940. Neste moment (...)

41No que se refere à expulsão, poderíamos mencionar novamente o fato de que o município é fundado sobre terras que outrora foram de povos indígenas. Os mesmos que acabaram sendo expulsos, ludibriados ou forçados pela necessidade a deixar suas terras em prol da formação de colônias agrícolas que futuramente deram luz à cidade e aos condomínios fechados5. O local onde se situam os terrenos de maior valor, bem como o condomínio observado, também fazem fronteira com a Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa, mais conhecida como “aldeia”. A reserva é uma dentre as oito Reservas Indígenas criadas entre 1915 e 1928 no sul do atual Mato Grosso do Sul, sendo a maior reserva indígena em contexto urbano do Brasil. Foi fundada em 1917 e mede aproximadamente 3600 hectares. Em números oficiais, sua população é de 16.000 pessoas. Seus espaços foram projetados para abrigar as populações indígenas no início do século XX, a fim de esvaziar suas terras tradicionais, colonizá-las e transformá-las em propriedade para os colonos com a vinda da Colônia Agrícola Nacional.

42Das fazendas do século XX às moradias de luxo do século XXI., Dourados é atravessada pela especulação dos espaços da terra, intensificada no aumento populacional e na urbanização ocorridos após a década de 1940, proporcionada pela fundação da CAND. Talvez não seja à toa o que o jornalista douradense Valfrido Silva menciona em seu livro Sonhos e Pesadelos: Mato Grosso do Sul 30 anos (2007). Segundo ele, em conversa com um empresário da construção civil da cidade, e se referindo à Reserva Indígena que se localiza ao lado do referido condomínio de luxo, o empreendedor disse que estava com intenção de “propor à FUNAI uma permuta desta área por outra mais distante” (Silva, 2007, p. 127). Seus interesses em tais trocas não são mencionados.

43Abaixo, demonstramos um mapa da cidade de Dourados, em sua relação com o condomínio de luxo estudado. No círculo preto maior, o local de maior concentração dos condomínios fechados de alto padrão de Dourados. No círculo interno menor, o condomínio que tratamos neste trabalho. Ao lado, em vermelho, a Reserva Indígena de Dourados, fundada em 1917.

Fonte: terrasindígnas.org

44 Dourados é marcada visceralmente pela especulação com a terra e pelo processo de branqueamento intensificado com o colono e seu “desenvolvimento” agrário. A cidade, tanto física quanto simbolicamente, é palco e atriz de décadas de urbanização e gentrificação, principalmente a partir do início de 1940. Sob a ação de colonos interessados nas terras que inicialmente foram disponibilizadas pelo poder público, se intensificaram também as segregações sociais e espaciais que produzem o acesso desigual. Seja do espaço, da energia elétrica, do escoamento de água, da educação ou do acesso ao asfalto.

45Exemplos disso são os milhares de famílias que, a menos de 700 metros do condomínio/resort de luxo, na Reserva Indígena já mencionada, além de não terem sido privilegiadas com o tal “desenvolvimento” da urbanização, vivem em terra de chão batido. São milhares de famílias que ainda não têm acesso nem mesmo a saneamento básico e sofrem com o racismo e o preconceito estrutural. Aos chamados, pejorativamente, de “bugres”, que fazem parte destes que não produzem da mesma forma que o colono, frequentemente não sobra nada. Já a estes outros – outrora forasteiros – com o aval do poder público, tornam-se alguns dos principais agentes produtores de desigualdade ao se estabelecerem no topo do solo e dos privilégios simbólicos e sociais douradenses.

Projetando novas dimensões sociais

  • 6 Esta troca ocorreu através de uma resposta de um comprador em um storie no perfil do condomínio na (...)

46Imagine-se, leitor, podendo “viver uma experiência única todos os dias, pertencer a um grupo seleto de pessoas e conhecer o lado bom da vida na sua forma mais expoente”. Na cidade de Dourados, esta realidade está sendo projetada onde antes eram plantações de soja e milho, a antiga Fazenda Bom Fruto. Unindo-se em quase um milhão de metros quadrados dentro da área que passou a ser compreendida como “urbana” pelo poder municipal desde 2011, o condomínio que, repetidamente, em suas redes sociais, é mencionado como algo que “já nasceu douradense desde o início de seu projeto”, se apresenta como sendo um lugar de “padrão superior” e que “parece Dubai, mas é Dourados”, conforme literalmente dizem suas propagandas publicitárias. Não à toa, também nas palavras da rede social do local, seu espaço é projetado até para que aqueles que passem em sua frente prontamente percebam “que se trata de um lugar diferente dos outros”. Para um dos compradores, conforme exposto pela rede social do condomínio6, até seus muros são um presente para a cidade e para a vizinhança, já que esteticamente belos.

47Paul Rabinow (2013), por meio do conceito de technocosmopolitanism, mostra como se busca controlar a história, a sociedade e a cultura através de instituições e espaços existentes. A estratégia do technocosmopolitanism operaria sobre países, culturas e costumes específicos. No caso analisado pelo autor, nas cidades do Marrocos, estas técnicas de planejamento urbano buscavam edificar cidades integradas, artisticamente fortalecidas e apresentando especificidades sociais no seu território. O caso do condomínio fechado que estamos analisando guarda semelhança com este exemplo, com a particularidade de que tudo isso acontece entre muros, em um espaço bem delimitado dentro da cidade. O objetivo é construir um objeto de desejo, possível para poucos, mas invejado por muitos. Ainda que houvesse uma alusão à tradição, ao “genuinamente douradense”, na arte do planejamento urbano e do urbanismo ali presente, tal como no Marrocos analisado por Rabinow, a tradição é regulada em função de uma estética e de um bem-estar acessível a um seleto grupo. A tradição, que é o mundo rural, pode estar no nome de algumas casas e das ruas, mas todo o resto precisa ter ares cosmopolitas e modernos, para conectar esse sujeito local aos fluxos globais do consumo, do lazer e do entretenimento, cujas necessidades parecem ser bem únicas e específicas. Durante a época do trabalho de campo, as redes sociais do condomínio passaram a publicizar a organização de uma festa para os moradores e seus convidados, a “festa da colheita”. Por conta da falta de chuva da região, a colheita foi adiada e a festa não ocorreu.

  • 7 Marcelino Pires é o nome de um dos primeiros “colonos” de Dourados. Seu nome foi dado à via central (...)

48Localizado no ambiente escolhido apenas por aqueles que têm condições de pagar o alto preço do metro quadrado que atualmente mais se valoriza em Dourados, ao final da Avenida Dom Redovino Rizzardo, a cidade de muros que se vende e suas redes como “tudo aquilo que você desejava em fantasia” não é apenas uma espécie de continuidade histórica das especulações e das distribuições desiguais com a terra, que ocorreram no oeste brasileiro a partir dos anos 1940. Ela funciona também como um desdobramento de classificações que existem na cidade de Dourados desde o início do século XX. Se a Avenida Marcelino Pires7 é conhecida por ser um marcador que tem a capacidade de acionar a cidade e seus habitantes de formas diferentes, ela não funciona apenas como um referencial geográfico. Tampouco é só um símbolo linguístico entre os trabalhadores/vendedores de casas e/ou apartamentos para poderem saber de antemão o que, provavelmente, poderiam esperar do entorno do imóvel e, consequentemente, de seu valor. A divisão entre norte e sul, produzida por esta linha central, funciona também como parte de imaginários que, conforme Gilberto Velho, “articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria identidade” (Velho, 1994, p. 101). Boa parte dos moradores da cidade de Dourados a divide em duas: para cima da Avenida Marcelino Pires e para baixo dela. As casas da parte de cima (norte) possuem mais valor, enquanto a parte de baixo (sul) possuem menos. Conforme Gilberto Velho:

desde pelo menos Durkheim e Mauss, os Antropólogos têm-se preocupado com sistemas de classificação. Como os indivíduos em sociedades ou grupos sociais específicos ordenam e sistematizam seu mundo social e natural. Trata-se de verificar que categorias são utilizadas, como se relacionam e hierarquizam, e os princípios que presidem esta organização. Para chegar a isto estar-se-á trabalhando com representações do universo pesquisado” (Velho, 1978, p. 65).

  • 8 A esse respeito, ver Nuno Domingos e Elsa Peralta (2013), que discutem tais questões no contexto de (...)

49Um movimento de classificação e produção de identidade que se mescla com ruas e bairros. Neste sentido, torna-se interessante notar que o urbanismo da cidade não diz respeito apenas às questões físico-geográficas, senão à criação de imaginários, fronteiras simbólicas, mas também zonas cinzentas de contato.8 Em Dourados, por exemplo, ao olhar para a avenida central da cidade, ou para o condomínio analisado, há uma nítida separação em relação ao seu entorno e aos seus “outros” da cidade, o que pode perfazer um apagamento identitário em relação à cidade da terra vermelha, ao mesmo tempo que busca instituir uma identidade cosmopolita a partir de uma idealização muito seletiva do que seria esse passado da terra vermelha a partir do trabalho daquele primeiro imigrante sulista, ali chamado de colono.

50Os sistemas de reconhecimento estabelecidos a partir da Marcelino Pires e dos condomínios também criam um imaginário que funciona como um tensor de desejos e abraça, de certa forma, o consumo que está disponível apenas a alguns, mas talvez fosse vontade de todos. É bom lembrar que ainda que haja uma série de investimentos no afastamento dos diferentes grupos, eles precisam interagir. Afinal, toda a infraestrutura do condomínio e da cidade, é movimentada pela mão-de-obra daqueles que estão do lado sul da Avenida, e só entram no “paraíso” pela entrada de serviço, local onde também passeiam os animais e onde se deposita o lixo do local. Tal ponto de interação também se expressou em uma dúvida manifestada por uma futura moradora nas redes sociais do empreendimento: “vai passar transporte público? Minha funcionária quer saber”.

  • 9 Há, entre todos estes, um único lote que mede 3.622m² de área, localizado na área central em frente (...)
  • 10 Os valores não são fixos e sofrem atualizações constantemente. Enquanto este trabalho estava sendo (...)
  • 11 O lugar é uma espécie de parque de diversões feito para os animais de estimação. Será todo gramado (...)
  • 12 O sistema surgido na Dinamarca é apresentado pela incorporadora como algo que “facilita a mobilidad (...)
  • 13 Pedras de origem vulcânica, de cores que variam do cinza ao preto, utilizadas tanto em ambientes ex (...)
  • 14 Segundo a rede social do condomínio, este tipo de concreto foi escolhido por ser “um revestimento m (...)

51Conforme apuramos no trabalho de campo, para a elaboração do projeto deste lugar de alto padrão, foram produzidas pesquisas extensas que consistiram em ouvir os douradenses que se encaixavam no “público-alvo” do empreendimento. A intenção era descobrir o que desejavam para um condomínio fechado ideal, aqueles que já residiam ou poderiam vir a residir em bairros de alto padrão cercados por muros. Assim, inspirados em seus desejos, suas capacidades socioeconômicas e suas autoimagens frente ao mundo, 90 hectares foram divididos em 493 lotes que variam de 900m² a 1900m²9 para serem vendidos a preços de R$ 750,00/m² a R$ 1.000,00/m²10. Dentre os equipamentos desejados, projetados e oferecidos para seus futuros habitantes, divididos em mais de 110.000m² de área de lazer, estão sendo construídos quadras de vôlei, 1 campo de futebol, 3 quadras de squash, 4 espaços gourmet, 1 salão de festa principal, petplace11, espaço ecumênico, bike sharing12, playgrounds, salas de jogos adultos e infantis, SPA, píer, piscina externa com mais de 1.000m² de lâmina de água revestida com pedras Hijau13, piscina interna aquecida, lago artificial de 4.000 m² com ecossistema vivo contendo animais aquáticos da região e até uma pista de caminhada linear toda arborizada, iluminada, feita de concreto vassourado14 e contendo 7,5km, que cruzará todo o empreendimento. Esta última, passará por um orquidário onde os moradores terão uma área pública dedicada ao cultivo de plantas ornamentais. O projeto se propõe, em sua rede social, como um lugar para viver as coisas “de forma natural”, “especial” e “simples”, na tentativa de “abrasileirar ao máximo o lugar”.

52Desta forma, chamamos a atenção para o fato de que as sociedades humanas parecem se estabelecer sobre relações englobadas que ocorrem através de sistemas que operam como formas de linhagem e clã, onde uma espécie de unidade se fixa através de mitos e narrativas estético-existenciais que (re)produzem o pertencimento dos indivíduos. É assim que uma espécie de projeto associado à memória se articula e dá significado às ações dos indivíduos e à sua própria identidade. Seja naquilo que chamamos de “sociedades complexas” ou não, é também desta forma que funcionam as condutas, no movimento de atingir finalidades específicas a partir da perspectiva do sujeito agente. Compreendemos, então, que:

o projeto existe no mundo da intersubjetividade. Por mais velado ou secreto que possa ser, ele é expresso em conceitos, palavras, categorias que pressupõem a existência do Outro. Mas, sobretudo, o projeto é o instrumento básico de negociação da realidade com outros atores, indivíduos ou coletivos. Assim ele existe, fundamentalmente, como meio de comunicação, como maneira de expressar, articular interesses, objetivos, sentimentos e aspirações para o mundo (Velho, 1994, p. 103).

53Pensando a respeito da cidade de Dourados, que após a década 1940 é afetada por um projeto urbano-agrário que, como visto, tem a terra vermelha como um dos principais motores da migração, Gilberto Velho nos adverte que o aparecimento das cidades modernas anda de mãos dadas com o surgimento de fronteiras. Estas, não apenas espaciais, com muros vigiados por câmeras ou arames farpados, mas também culturais, de classe, de gênero e de raça/etnia. Conforme Velho, é na memória e em perspectivas mais ou menos organizadas em forma de história, que os indivíduos constituem sua identidade. Ou, em suas palavras, onde podemos acompanhar “o sentimento e a necessidade sociologicamente identificáveis em vastos segmentos da sociedade moderna em dar um sentido às experiências individuais” (Velho, 1994, p.102). É nesta memória simbólica e vivida como imagem antecipada de si mesmo que se produzem projetos que dão sentidos, estabelecem (des)continuidades, levantam muros, separam portões ou proíbem-se pés descalços e camisas para fora das calças.

O espírito das elites rurais e seus projetos de vida

54Portanto, a cidade se constitui por meio da circulação de símbolos culturais e isso acaba por influenciar na sua própria estrutura geográfica, física, urbanística, como temos insistido. Desde alguns clássicos estudos da Escola de Manchester, percebemos como a noção de diferença associada à raça e origem étnica é crucial na vida social das cidades, assim como para compreender sua relação com as estruturas sociais do seu entorno. No caso dos estudos de Manchester, devedores da colonização inglesa. Um bom exemplo disso é a Dança Kalela, estudada por J. Clyde Mitchell (2010). Ele realiza este estudo em 1951 em Copperbelt, na Rodésia do Norte, atual Zâmbia. A dança era uma forma, ao mesmo tempo, dos Bisa manter as tradições rurais no meio urbano e de resistir, por meio da crítica social, ao colonialismo inglês. A estrutura da diferença, ali instituída como desigualdade, estava dada, mas havia uma brecha para rir dos colonizadores. Por outro lado, as diferenças tribais bem estabelecidas no mundo rural, eram confundidas ou nubladas no meio urbano, onde impunha-se um outro “outro” muito mais estabelecido do ponto de vista racial que relativizava as diferenças étnicas intra-raciais.

55No caso de Dourados, esta espécie de holismo social que atravessa questões como parentesco, vizinhança, pertencimento, bairro e identidade, é possível encontrar as importantes relações entre os desejos dos possíveis futuros moradores (aqui, como num jogo de espelhos, “nossos Bisa” seriam os brancos e ricos, que buscam isolar-se) e o projeto urbano desenvolvido pela incorporadora para este empreendimento.

56A utopia urbana de 90 hectares que se expõe como “um projeto urbanístico que privilegia a exclusividade, o conforto, a natureza” e que tem a terra como temática, será erguida de modo que os portões de entrada para os funcionários não façam parte da entrada principal do condomínio, diferentemente dos outros bairros murados já existentes. Esta entrada diferenciada, como antecipamos, se localiza ao lado do lugar projetado para que os moradores levem seus animais de estimação para passear, bem como ao lado do local onde se deposita o lixo do condomínio.

57Conforme nos aponta Gilberto Velho, uma das principais características que define as chamadas sociedades complexas é justamente a coexistência simultânea de estilos e mundos diferentes. No caso de Dourados, que teve este aumento populacional após as décadas de 1940 e 1950, tendo a terra como imã, podemos dizer que observar as teias de significados que se apresentam na decisão de como e onde produzir fronteiras e portões de entrada para determinados sujeitos em seu lar, podem demonstrar as ligações existentes entre os modos como os sujeitos reconhecem uns aos outros e a si mesmos. Neste sentido, tem-se algumas pistas sobre como, na cidade de Dourados, alguns de seus citadinos se veem frente ao encontro das múltiplas vozes urbanas, ampliadas com as ocupações colonizadoras do século XX, advindas sobretudo da CAND.

58Conforme discussões propostas por Teresa Caldeira (2000), “através das mais diferentes culturas e classes sociais, o lar cristaliza importantes sistemas simbólicos e molda sensibilidades individuais” (Caldeira, 2000, p. 264). Dialogando com autores como Pierre Bourdieu (1999) em suas análises sobre a casa no povo Kabyle e Gaston Bachelard (1993) a respeito das relações entre casa e memória, a autora propõe que “a moradia e o status social são obviamente associados, e em várias sociedades a residência é uma forma de as pessoas se afirmarem publicamente” (Caldeira, 2000, p.264), funcionando como uma espécie de extensão do corpo e da identidade.

59O lugar se vende como aquele que vai “inaugurar uma nova era” na cidade de Dourados. Lá são atribuídos nomes às casas, bem como uma ordem de quando começaram a ser construídas. Nessa espécie de construção de mitos fundadores em forma de história e alvenaria de luxo, “o alto valor ligado a “personalidade” da casa, compartilhado por todas as classes sociais provavelmente explica por que as casas padronizadas não são comuns entre as elites” (Ibidem, p. 264). O processo de distinguir-se, neste momento, deixa de ocorrer apenas em alteridade com o ambiente urbano e suas diversas áreas, mas passa também a ser construído de forma individualizada entre os próprios moradores do local.

60Hectares, Referência, JL, Americana, Planície, Cave, Malbec. Estes são alguns dos nomes anunciados, através da rede social do condomínio, das dez residências que já iniciaram seus projetos ou construções. Algumas delas têm inspirações que refletem o gosto e a identidade imaginada e sentida por seus moradores. Conforme consta na rede social do arquiteto responsável por uma das casas, o comprador de um dos lotes é amante de vinho e sua casa será inspirada nesta paixão, tendo uma adega subterrânea, acessada por elevador. Neste mundo de pequenas fazendas dentro da cidade, que para arquitetos e engenheiros funciona como um mercado lucrativo em forma de vitrine para expor seus trabalhos, também há a função de produzir marcadores simbólicos de identidade, individualidade e status social. A casa, dentro desse ambiente murado, se torna “uma experiência única de moradia”, conforme menciona a rede social do condomínio ao mostrar um dos projetos já em construção. O desenho conta com um jardim privativo de aproximadamente 100m² dentro do dormitório imaginado para um casal e outro de 70m² pensado para dois filhos. Conforme interlocução com a rede social, “isso gera uma experiência de vida muito diferente do que ter o seu quarto para um corredor pequeno, ou com uma janela que dá pra fora da casa”. A intenção é “preparar o espaço para uma vida diferente da que é vivida hoje em dia” e viver “onde todos os dias a natureza te convida para um passeio”.

61Na mesma toada deste espírito estético e arquitetônico que reflete a vida das elites modernas do espírito agrário douradense, agem também os outdoors espalhados nas proximidades do condomínio. Esses mecanismos produtores de desejos e de imaginários não apenas deixam claras as diferenças sociorraciais de acesso, ao mencionar o condomínio como algo para poder “se dar ao luxo de viver uma nova dimensão”, como também demonstram que “seu filho merece o melhor”, quando se refere a uma das escolas mais caras de Dourados, que agora se mudará para o lado do referido condomínio, garantindo acesso ao que é considerado o melhor, para aqueles que estruturalmente partilham as benesses que o dinheiro pode comprar desde a década de 1940 na cidade. Seja a terra, a qualidade de vida ou mesmo a educação.

62Ao observarmos toda a subjetividade envolvida na ação de projetar um espaço de forma técnica, baseando-se numa identidade de agentes culturais e desejos que se materializam em nomes de rua e estéticas específicas compreendidas como de “padrão superior”, parece-nos interessante mencionar que todas as alamedas do empreendimento carregam nomes que se relacionam à história agrária douradense. Diferentemente da cidade que o abriga, que em sua grande maioria tem ruas com nomes de colonos responsáveis por sua colonização, desenvolvimento e progresso, o enclave fortificado de luxo mais caro do município é composto por nomes diferentes: Alameda do Cultivo, Alameda da Colheita, Alameda dos Grãos, Alameda da Gleba, Alameda da Fazenda, Alameda da Lavoura, Alameda do Solo, Alameda da Lagoa, Alameda da Safra, Alameda do Bom Futuro, Alameda do Vilarejo etc. Segundo sua rede social, os nomes refletem o fato de que o local “não foi trazido de fora pra cá, mas nasceu de Dourados”. A intenção é “trazer familiaridade e resgatar as raízes douradenses, que têm tanta relação com o rural e com o próprio agro”, conforme destaca a rede social da incorporadora responsável pelo projeto.

  • 15 Durante sua construção, o condomínio foi pista do maior circuito de corridas do estado de Mato Gros (...)

63As famílias compradoras dos lotes, que frequentemente são mencionadas com muito afago e são chamados de “vizinhos” pela rede social do condomínio, são presenteadas com diversos produtos que vão de vinhos, champagnes, panetones importados ou medalhas de classificação de corrida canina15. Nos imaginários criados pela racionalidade do marketing imobiliário dos publicitários responsáveis pelo feed do perfil, seus moradores surgem através do discurso de um determinado estilo de vida em que se agregam os prazeres da vida e a possiblidade de experimentações únicas e exclusivas. Estas, além de poderem ser encontradas pelo mundo, agora são prometidas de serem vividas dentro de casa.

64Vinícolas argentinas, restaurantes submersos em Ibiza, hotéis de luxo em Munique, lojas de grifes francesas, alta gastronomia com carnes bovinas de raças especiais japonesas, pontos turísticos famosos mundialmente e algumas residências de arquitetura de luxo. A rede social mencionada carrega consigo dezenas de imagens de lugares e experiências diferentes pelo mundo e poucas pelo Brasil. Tais motes são tomados como inspiração para a construção psicológica e social do local. Uma delas é o Central Park, na cidade New York. Conforme mencionado em uma de suas primeiras postagens da página, no dia 9 de janeiro de 2019, a intenção é “poder trazer um pedacinho dele para nosso lar”. Não à toa, a pista de caminhada do condomínio – que diz ter raízes douradenses – se inspira no cartão postal norte-americano e tem seu SPA, composto de cabines de massagem individuais, banheira de hidromassagem e piscinas quentes e geladas que fazem parte de uma “terapia japonesa milenar” de autocuidado, baseada na troca de temperatura do corpo.

  • 16 Muitos destes itens, que não sabemos se serão os mesmos disponibilizados no “empório”, são apresent (...)

65Observamos durante o trabalho de campo que, para reproduzir a experiência de uma “vida natural”, “milhares de árvores serão plantadas”. Dentre elas: Ipê Branco, Ipê Amarelo, Jacarandá Mimoso, Ipê Rosa, Ipê Roxo de Bola, Pau de Ferro, Flamboyant, Palmeiras, outras árvores frutíferas e 35 oliveiras de 250 anos de idade cada uma. O local diz ter sido “projetado para ser um verdadeiro bosque” e para “traduzir impacto na vida dos moradores”. Seu muro, de blocos de concreto, além de ter os pilares de sustentação invisíveis, exposto na rede social como “feitos por uma equipe de engenharia estrutural bem capacitada para ficar naturalmente mais bonito” que os outros lugares da cidade, terá sua cor cinza tampada por dentro e por fora, por uma espécie de planta trepadeira que se chama Era de Inverno. Sua publicidade diz que os moradores não notarão diretamente o muro, já que no verão a folhagem “tem cores verdes, bonitas e que tiram essa sensação cinza”. No outono ficam de cor avermelhada, e segundo a rede social “o bacana é que no inverno, essa folhagem cai e ficam as ramas para poder arejar o muro”. Desta forma, com a racionalidade que a rede social chama de “inteligência da equipe de paisagismo”, “não ficam fungos e bactérias se proliferando porque no inverno essas folhas caem e o muro fica arejado”, permitindo a possibilidade de alterar a insalubridade do local. O lugar não só intencionalmente se mostra como ideal para criar os filhos e ter uma família em um ambiente “agradável”, “grandioso” e “diferente de tudo o que tem em Dourados”, como também promete trazer qualidade de vida, saúde e bem-estar para aqueles que podem pagar por eles. Para o projeto, há até mesmo a promessa de que exista um “empório” onde os moradores poderão comprar “itens básicos” como cervejas, carnes importadas, queijos, vinhos e pães gourmet16. Seus valores serão adicionados e pagos juntamente com a taxa mensal do condomínio, que será de 90% do salário mínimo vigente.

66Urbana e historicamente equivalente, talvez tenham sido as elites do café no Brasil do século XIX. Assim como suas famílias residiam em grandes mansões na atual Avenida Paulista, na parte mais alta da cidade de São Paulo na época, na Dourados atual é também o baronato, sobretudo da soja, mas não apenas, que habita a parte mais alta da cidade. Ao menos é assim que a própria construtora, através da empresa especializada em marketing imobiliário, compreende parte dos futuros moradores do local. Tal ponto é possível de se ver e ouvir em três propagandas publicitárias em forma de narrativas autobiográficas que carregam em seus títulos as palavras Médico, Produtor Rural e Empresária, descrevendo quem está a falar – sob uma voz sem rosto. O condomínio parece ser feito na intenção de convidar determinados sujeitos para ocupar tal território. As três propagandas, ao final, passam a mensagem de que o condomínio é um local que vem para abrigar e cuidar de um bem maior: a família.

67 A importância dada para as famílias que no futuro viverão nas casas-grandes em forma de resort, bem como a continuidade do poder pátrio-familiar que produziu o Brasil e ainda reproduz um estado de coisas no ambiente de Dourados, pôde ser vista no movimento de publicizar o nascimento de um bebê em uma das famílias. Durante a construção de um dos casarões, o “novo vizinho”, como fora chamado o bebê recém-nascido, foi anunciado como futuro morador de uma das casas, seguido pelo sobrenome da família dona da futura casa.

68Conforme mencionado na rede social, as intenções destes pais, ao criarem suas crianças dentro do condomínio e estender a eles seus projetos individuais de desenvolvimento, ensejam que elas cresçam morando de frente para a Praça das Orquídeas, um dos locais compreendidos como mais belos do condomínio. Na rede social do empreendimento, as imagens do “filho” e da “família” são recorrentemente lembradas como uma espécie de dádiva sacralizada. A menção à educação das crianças e o símbolo do “filho” chegam a ser mencionados como um dos principais motivos pelo quais o condomínio foi pensado e construído. Quando o sócio-proprietário era perguntado, por algum de seus seguidores, a respeito dos porquês da invenção do local, suas respostas sempre tocavam a importância do cuidado, do amor e de segurança com o futuro de sua família, bem como com o futuro de sua filha. Por vezes, a resposta a esta frequente pergunta era respondida com vídeos dela, ainda bebê, gatinhando e desbravando espaços. Segundo aquele que dá rosto ao condomínio na rede social, “no fundo, é para eles que criamos” o condomínio.

Considerações Finais

69A cidade e o urbano continuam sendo fenômenos que carecem, cada vez mais, de análise e reflexão. Durante muito tempo, a Antropologia Urbana refletiu, de maneira mais aprofundada, sobre os grandes centros urbanos. Além de enormes contingentes populacionais, se compreendia que ali estava apresentada a complexidade mais evidente da vida social, comportando grande parte de suas diferenças.

70No entanto, deslocamentos analíticos foram fundamentais para compreender as dinâmicas citadinas para além de metrópoles e capitais. É como uma parte desse movimento, há tempos empreendido, que se aloca, de alguma maneira, a nossa reflexão aqui exposta. Trata-se de um olhar sobre uma cidade com pouco mais de 200 mil habitantes no interior de Mato Grosso do Sul, Dourados, que teve o aumento populacional não indígena ligado ao agronegócio.

71Nossa pesquisa faz uma leitura de como um fenômeno que não é douradense – os condomínios fechados de alto padrão – ganha contornos e se adapta à realidade local. Ou seja, como esse fenômeno externo é lido, compreendido e consumido em uma cidade do interior do centro-oeste do Brasil. A análise, aqui empreendida, mostrou, a partir das idiossincrasias douradenses, um olhar possível para explicar a recorrência e o sucesso desses empreendimentos na região.

72Em um primeiro momento, do ponto de vista histórico, mostramos que é impossível descolar a cidade atual de um passado que remonta o mito de sua fundação. Dourados ergue-se pela expulsão de indígenas e pequenos proprietários rurais, a partir de uma parceria entre o Estado e o latifúndio na instituição da desigualdade, bem como na apropriação de grandes frações de terra a preços irrisórios pelos colonos.

73A lógica da violência, portanto, é parte da constituição da cidade. Violência física, exemplificada na relação belicosa com os primeiros donos da terra, mas também simbólica. Não é exagero pensar que, em uma cidade como Dourados, tais condomínios sejam uma expressão de violência diante de tantas carências, ausências e desigualdades não resolvidas pelo Estado e acentuadas ao longo dos anos por ações que confundem os limites entre os interesses públicos e privados.

74Por último, apresentamos como essa desigualdade instituída pelas grandes fazendas foi sendo transladada, paulatinamente, para o centro urbano. Nele, a urbe, sendo produtora e produto de diferenciações que refletem lugares de raça/etnia, classe e gênero muito específicos e que acabam por interferir na geografia política do lugar. O exemplo mais atual disso são os condomínios fechados, objeto último de nossa reflexão. Como demonstrado, interessa-nos menos dizer que o condomínio é bom ou ruim, não sendo de nossa intenção fazer juízo de valor acerca do empreendimento, mas refletimos como, por meio dele, é possível ler uma situação, suas transformações e o contexto no qual se insere hoje a partir das interlocuções com o “lugar superior” de Dourados.

75Ao longo do texto, mostramos como a cidade e o urbano não são elementos isolados, que existem no vazio. Nossa ideia foi mostrar como a cidade e o urbano são reflexos dos processos dos sujeitos que ali estão e que neles interferem. Assim, quando dizemos que há um racismo ambiental/estrutural na configuração da cidade e, sobretudo, em seus empreendimentos fechados e de alto padrão, é porque eles carregam uma série de marcadores sociais da diferença que conferem um lugar de privilégio a certo “tipo social” forjado pela elite colonizadora, principalmente de origem sulista. Neste sentido, desnaturalizar os lugares desses sujeitos nas cidades, pode ser uma chave para começar a complexificar os usos do urbano na tentativa de construir cidades onde caibam, com o mínimo de dignidade, os contingentes de citadinos ali existentes.

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Notas

1 Colocamos o termo entre aspas pois estes movimentos não levaram em consideração, por exemplo, as populações indígenas que já viviam nas terras que se tornaram propriedade de homens brancos com o aval do Estado.

2 Para muitos, a cidade de Dourados carrega o apelido de “terra vermelha”. Tal nome se dá pelo fato de que a cidade se situa em uma região onde a terra detém uma cor marrom avermelhada. Sua cor e sua composição orgânica a tornou famosa internacionalmente, sendo compreendida como a terra ideal para o plantio.

3 A fala do reverendo diz respeito ao caso da cidade de Búfalo, em Nova Iorque, no ano de 1978. Uma população de operários descobriu que estava residindo em um canal que teria sido utilizado para despejo de resíduos tóxicos. Em consequência das chuvas, tais resíduos começaram a aflorar ao redor dos moradores, vinte anos após a abertura do canal.

4 A avenida, recém-construída, leva o nome do falecido bispo da Diocese de Dourados.

5 Deixamos claro que a desapropriação dos povos indígenas não começou na década de 1940. Neste momento, o Brasil já passava por mais de 300 anos de desapropriação de território, vide a reserva indígena instalada em 1917 ao lado do terreno que hoje comporta o condomínio. O que demonstramos aqui é a intensificação e a transformação da continuidade desse processo após 1940, com a urbanização e a fenômeno dos condomínios de luxo.

6 Esta troca ocorreu através de uma resposta de um comprador em um storie no perfil do condomínio na rede social Instagram. Esta opinião a respeito do condomínio foi exposta sem mostrar o rosto e o nome de quem a emitiu.

7 Marcelino Pires é o nome de um dos primeiros “colonos” de Dourados. Seu nome foi dado à via central e principal da cidade pelo fato de que, para muitos, ele foi o doador de parte de suas terras para a formação do patrimônio de Dourados. Segundo o historiador Carlos Magno Mieres Amarilha, em entrevista ao site de notícias Dourados News, nunca foram encontrados documentos que comprovem tal doação. Tal fato pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: https://www.campograndenews.com.br/dourados-80-anos/marcelino-pires-como-fundador-e-questionado-por-historiadores. Acesso em: 10 out. 2020.

8 A esse respeito, ver Nuno Domingos e Elsa Peralta (2013), que discutem tais questões no contexto de cidades africanas em ex-colônias portuguesas, sobretudo em Moçambique e Angola. Os autores destacam a dupla função das “cidades modernas” de aproximar e afastar os trabalhadores/pobres dos demais cidadãos.

9 Há, entre todos estes, um único lote que mede 3.622m² de área, localizado na área central em frente à área de lazer do loteamento. Sua propriedade não está à venda.

10 Os valores não são fixos e sofrem atualizações constantemente. Enquanto este trabalho estava sendo escrito os preços mencionados aumentaram uma vez, contabilizando R$50,00 a mais por metro quadrado.

11 O lugar é uma espécie de parque de diversões feito para os animais de estimação. Será todo gramado e composto por brinquedos.

12 O sistema surgido na Dinamarca é apresentado pela incorporadora como algo que “facilita a mobilidade urbana” e que é “tendência nas principais cidades do mundo”. Consiste em um conjunto de bicicletas que podem ser compartilhadas pelos moradores do condomínio. O acesso a cada uma é prometido através de identificação biométrica.

13 Pedras de origem vulcânica, de cores que variam do cinza ao preto, utilizadas tanto em ambientes externos como internos.

14 Segundo a rede social do condomínio, este tipo de concreto foi escolhido por ser “um revestimento mais democrático: permite pedestre, bike, patins, carrinhos de bebê, entre outros”. Conforme interlocução a rede social, “é o que o urbanismo chama de walkability, a capacidade que um espaço tem de ser utilizado com conforto por diferentes tipos de pessoas e usos”.

15 Durante sua construção, o condomínio foi pista do maior circuito de corridas do estado de Mato Grosso do Sul, realizada pela rede TVMS, afiliada à Record TV. Neste circuito, além de seres humanos, um cachorro também fez o percurso ao lado de sua dona e acabou sendo presenteado pela incorporadora com uma medalha em formato de osso.

16 Muitos destes itens, que não sabemos se serão os mesmos disponibilizados no “empório”, são apresentados na página da rede social, todos advindos de diferentes lugares do mundo.

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Índice das ilustrações

Créditos Fonte: terrasindígnas.org
URL http://journals.openedition.org/pontourbe/docannexe/image/14428/img-1.png
Ficheiro image/png, 576k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Ezequias Freire Milan e Guilherme Passamani, «“Vivendo no paraíso”: processos de urbanização e condomínios de luxo na terra do agronegócio»Ponto Urbe [Online], 31 | 2023, posto online no dia 25 julho 2023, consultado o 02 dezembro 2023. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/14428; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.14428

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Autores

Ezequias Freire Milan

Mestre em Antropologia Sociocultural pela Universidade Federal da Grande Dourados

E-mail: ezeqfm@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4545-6007

Guilherme Passamani

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas

Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

E-mail: grpassamani@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5019-0832

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