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Formação da antropologia urbana brasileira: diálogos com a Escola de Chicago e linhagens iniciais1

The structuring of Brazilian urban anthropology: relations with the Chicago School and initial academic trajectories
Heitor Frúgoli Jr.

Resumos

A formação do campo da antropologia urbana no Brasil assinalou-se, como outras áreas da antropologia, por diálogos com referências europeias e norte-americanas. Pretende-se abordar a gênese da antropologia urbana brasileira, através da reconstituição da trajetória de antropólogas/os referenciais no Brasil – Ruth Cardoso (1930-2008), Eunice Durham (1932-2022), Gilberto Velho (1945-2012), José Guilherme Magnani (1944-), Antonio Arantes (1943-) e Ruben Oliven (1945-). São enfocados âmbitos de formação acadêmica, influências teóricas, principais pesquisas e inserções institucionais, a partir das quais se definiram linhagens acadêmicas, parcialmente reconstituídas – valendo-me principalmente dos dados disponíveis no projeto Memória das Ciências Sociais no Brasil (CPDOC), bem como de abordagens da história da antropologia brasileira ou das/os próprias/os autoras/es abordadas/os.

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Notas da redacção

Versão original recebida em / Original version 25/03/2023

Aceito em / Accepted 05/05/2023

Texto integral

Breve introdução

  • 1 Artigo derivado de paper apresentado no Painel “O desafio do urbano: interseções, resistências, uto (...)

1A formação do campo da antropologia urbana no Brasil foi assinalada, como em outras áreas da antropologia, por um diálogo dinâmico com referências sobretudo europeias, além de consideráveis influências norte-americanas (principalmente da Escola de Chicago). Pretende-se, nesse sentido, abordar a gênese da antropologia urbana brasileira, através da reconstituição da trajetória de antropólogas/os referenciais nesse campo no Brasil – como Ruth Cardoso (1930-2008), Eunice Durham (1932-2022), Gilberto Velho (1945-2012), José Guilherme Magnani (1944-), Antonio Arantes (1943-) e Ruben Oliven (1945-) – sem abarcar diretamente outros nomes representativos, e, dado o escopo pretendido, sem analisar aquelas/es que deram continuidade a certas linhagens acadêmicas.

2Será dada especial atenção a âmbitos de formação universitária, influências teóricas, principais pesquisas realizadas e inserções institucionais, a partir das quais se definiram determinadas linhagens, que serão parcialmente reconstituídas – valendo-me principalmente das entrevistas disponíveis no projeto Memória das Ciências Sociais no Brasil (do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, CPDOC), bem como de abordagens genealógicas já consolidadas, como as de Mariza Corrêa (2013 [1995]), Cornelia Eckert (2010) e José Guilherme Magnani (2012a).

  • 2 Tema central do já referido painel de antropologia urbana da APA em 2022 (ver nota anterior).
  • 3 Para um panorama a respeito das relações da antropologia urbana com a Escola de Chicago, bem como c (...)

3Como já dito, uma das perguntas que norteia esses escritos guarda relação com o diálogo de tais autoras/es com a Escola de Chicago,2 que num plano internacional influenciou, ainda que não exclusivamente,3 a criação de campos de antropologia urbana em diversos contextos nacionais.

Relações da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo com a Universidade de Chicago

  • 4 Ambas, ELSP e USP, representaram dois contrapontos da elite paulistana à Revolução de 1930, liderad (...)

4Em linhas iniciais, pode-se dizer que foi a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP) – privada e sem fins lucrativos, criada em 1933 pela elite paulistana, com apoio de empresários industriais (um pouco antes da criação da Universidade de S. Paulo, pública, em 1934)4 – a primeira instituição acadêmica brasileira a abrigar um docente e pesquisador oriundo da Universidade de Chicago, Donald Pierson (1900-1995). Antes disso, Pierson havia realizado uma pesquisa de doutorado sobre relações raciais em Salvador, sob a orientação de Robert Park (1864-1944) (Pierson, 2013 [1987]; Park, 2018 [1942]).

  • 5 Quando então se tornou docente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Vanderbilt.

5Na ELSP, Donald Pierson dedicou-se, entre 1939 e 1952,5 à docência de sociologia e antropologia, trouxe recursos de organismos estrangeiros como a Smithsonian Institution, organizou projetos coletivos de pesquisa e protagonizou a formação do primeiro curso de pós-graduação em Ciências Sociais no país, com ênfase nos estudos de comunidade (Pierson, 2013 [1987]; Limongi, 2001; Mendoza, 2005; Eckert, 2010; Magnani, 2012a; Silva, 2012).

  • 6 Como mostra Cavalcanti (2012, p. 182-251), uma decorrência desse tipo de intercâmbio com a Universi (...)

6Predominaram na época, com a influência de Pierson e sob a referência teórica de Robert Redfield (1897-1958), os chamados estudos de comunidade, embora também tenham sido feitas, entre 1938 e 1949, oito etnografias urbanas, sob referencial sociológico – por parte do próprio Pierson, Oracy Nogueira (1917-1996)6 e Emilio Willems (1905-1997) (Mendoza, 2005, p. 448-458; Mendoza, 2000; Magnani, 2012a; Cavalcanti, 2012; Torres, 2016) – sem que houvesse uma continuidade significativa de tais investigações nos estudos urbanos em São Paulo.

  • 7 Florestan Fernandes (1920-1995) exemplifica tal trânsito e processo, numa trajetória do funcionalis (...)

7Segundo Simões e Peixoto (2003) e Magnani (2012a, p. 17-39), tais estudos de comunidade vieram a sofrer críticas por parte de sociólogos crescentemente identificados com o marxismo (afastando-se do funcionalismo ao qual vários foram ligados7), bem como de antropólogos insatisfeitos com as insuficiências do referencial da aculturação. Isso demarcava outro tipo de ruptura entre aqueles ligados à ELSP e à USP – assinaladas, como já dito, por certo trânsito mútuo de pesquisadores e de ideias. O golpe militar de 1964 veio atingir ambas as instituições, sendo que a ELSP passou a sofrer novas crises que levaram a seu declínio permanente na formação de quadros intelectuais. A USP, por sua vez, sofreu efeitos deletérios principalmente a partir do AI-5, quando perdeu, em abril de 1969, sessenta e seis docentes, aposentados precocemente (Associação dos Docentes da USP, 2004 [1978], p. 44-50), porém posteriormente tornou-se hegemônica, a partir das mudanças acadêmicas havidas durante a década de 1970 (Corrêa, 2013 [1995]; Eckert, 2010; Magnani, 2012a).

8Portanto, antes da própria institucionalização da antropologia no cenário brasileiro, ocorrida a partir dos anos 1970, houve uma influência da Escola de Chicago sobretudo através da formação dada na ELSP, sob ênfase nos estudos de comunidade, com investigações urbanas que não firmaram propriamente uma tradição de pesquisa. Os desdobramentos havidos na USP a partir da década de 1970 marcam certa ruptura com dinâmicas havidas anteriormente na ELSP, dada a predominância, a partir da sociologia, das teorias marxistas.

A antropologia urbana no âmbito da USP: Ruth Cardoso e Eunice Durham

  • 8 Falecida em julho do ano passado.

9Ruth Cardoso (1930-2008) e Eunice Durham (1932-20228) foram as responsáveis pela gênese de um campo de antropologia urbana na USP, com filiações a correntes teóricas afastadas das referências da Escola de Chicago, na defesa da tradição de pesquisas etnográficas em contextos urbanos em diálogo com o marxismo, com o estruturalismo de Lévi-Strauss e com correntes da ciência política, além de um olhar atento à questão da mudança cultural (Corrêa, 2013 [1995]; Eckert, 2010; Magnani, 2012a). Havia um contexto político marcado, a partir dos anos 1970, pela luta a favor da redemocratização e foco especial nos agentes dos movimentos sociais que surgiam na difícil arena pública de então (Frúgoli Jr., 2005). No plano acadêmico, ambas valorizavam significativamente o trabalho em sala de aula e as orientações de pesquisa.

10Segundo Corrêa (2013 [1995], p. 137-140), a antropologia surgiu na USP em 1935, através do sistema de cátedras, e durou até 1970, quando a reforma universitária as extinguiu e criou os departamentos (novas unidades didático-administrativas). As cátedras configuravam um sistema bastante hierárquico e patriarcal (Corrêa et al., 2013 [1990]), com divisão recorrente entre homens (catedráticos) e mulheres (assistentes). Egon Schaden (1913-1991) coordenou a cadeira de antropologia entre 1949 e 1967, e Gioconda Mussolini (1913-1969), primeira antropóloga brasileira de profissão (formada na USP em 1937), catedrática assistente de Schaden, não pôde sucedê-lo, porque não concluíra o doutorado. R. Cardoso e E. Durham, que eram muito ligadas a G. Mussolini, e que desenvolviam seus doutorados sob orientação (numa difícil perspectiva culturalista) de Schaden – numa época em que o próprio orientador definia os temas de pesquisa (imigrantes japoneses e italianos, respectivamente) – tentaram, sem sucesso, mantê-la na linha de sucessão. Ela faleceu em 1969, padecendo a posteriori de maior reconhecimento (Ciacchi, 2007).

  • 9 Nesse texto, as autoras explicitam os limites das abordagens dos fundadores da Escola de Chicago. P (...)

11Em 1973, ambas deixaram a área de antropologia do Departamento de Ciências Sociais da USP (Caldeira, 2011, p. 18; Durham, 2011, p. 46; Torres, 2009) e se transferiram, por razões teóricas e institucionais, para a Ciência Política, mas foram responsáveis, principalmente na pós-graduação, pela consolidação do campo da antropologia urbana (Cardoso; Durham, 1973),9 numa interlocução significativa com a sociologia e com referenciais de mudanças e conflitos sociais. Isso demarca uma experimentação inovadora com diálogo interdisciplinar, porém sob uma institucionalidade instável.

  • 10 Também chamado de “Seminário do Capital”, durou entre 1958 e 1964, cujo grupo inicial foi composto (...)
  • 11 O que se desdobrou em publicação sobre o autor, decorrente de sua livre-docência (Durham, 1978).

12R. Cardoso defendeu o mestrado sob orientação de Florestan Fernandes, participou de um grupo de estudos sobre “O capital” (Marx),10 foi aluna de Lévi-Strauss em Paris, e passou a se interessar, nos anos 1970, pelos movimentos sociais urbanos (Cardoso, 1983), pelo feminismo (Cardoso, 1987) e pela juventude (Cardoso; Sampaio, 1994). E. Durham atentou à obra de Malinowski já no ensino médio,11 doutorou-se em 1966 (com E. Schaden), pesquisou a fundo o tema da migração nordestina (Durham, 1973), da família (Durham, 1980) e, mais tarde, abordou questões ligadas à educação superior (Durham, 1984 e 2005). As periferias urbanas e o tema da pobreza, opressão e marginalidade constituíram o principal lócus de pesquisa de diversas/os orientandas/os de ambas (El Far et al., 1998; Fry, 2004; Magnani, 2012a, p. 43-81). Uma coletânea relevante no campo da antropologia urbana, organizada por R. Cardoso, intitulou-se “A aventura antropológica” (Cardoso, 1986), com artigo referenciais de E. Durham (1986) – crítico de muitas pesquisas etnográficas travestidas de militância (sob o termo dos “deslizes semânticos”) – e dela própria (Cardoso, 1986a) – sobre armadilhas do método durante trabalhos de campo.

13A partir delas, em síntese, criou-se uma antropologia com foco em populações urbanas e nas classes populares, numa posição marginal da antropologia com relação às outras ciências sociais; uma atenção etnográfica significativa era dada ao cotidiano, à casa, à vizinhança, ao pátio da fábrica, às festas, sob um background cultural dos agentes articulado ao tema da mudança, transformação e conflito, com novos paradigmas a se construir, num clima de experimentação, à busca de novas etnografias de nós mesmos (Magnani, 2012a, p. 41-81).

As trajetórias de José Guilherme Magnani (USP), Gilberto Velho (Museu Nacional, UFRJ), Antonio Arantes (Unicamp) e Ruben Oliven (UFRGS)

  • 12 Cabe ressaltar que, a partir daqui, por razões metodológicas, baseio-me principalmente nas entrevis (...)

14José Guilherme Magnani, por sua vez, deu continuidade (e evidentemente abriu novas áreas de investigação) às linhagens de R. Cardoso e E. Durham na USP, além de maior consistência etnográfica. Segundo entrevista ao CPDOC (Castro, 2018 [2017]),12 formou-se em Ciências Sociais na UFPR em 1969, e por conta da militância estudantil, sofreu um processo da ditadura em 1970, tendo se exilado na Argentina e depois no Chile (sob o socialismo democrático de Salvador Allende, 1970-1973). Ali desenvolveu um mestrado sobre contos camponeses como produtos ideológicos, defendido em 1972 (na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, FLACSO), mas após o golpe militar de 1973, regressou à Argentina, onde a situação política também se tensionou. Retornou, em 1977, ao Brasil, cuja pena do já referido processo estava prescrita, embora ainda não houvesse uma anistia, ficando, assim, numa espécie de semiclandestinidade. Entre 1978 e 1982 desenvolveu seu doutorado, sobre circo-teatro e outras formas de lazer, sob a orientação de R. Cardoso (que outrora também havia se exilado no Chile), que veio a se tornar o livro Festa no pedaço (Magnani, 1984). Moradoras/es da periferia ganharam nova visibilidade através de tal pesquisa, sob o foco do lazer, o que depois se ampliou para temas como o candomblé, cultura popular, patrimônio cultural, práticas esotéricas, comunidades de surdos e índios na cidade.

  • 13 Quando foi colega de Antonio Arantes, Alba Zaluar e Peter Fry (Castro, 2018 [2017], p. 27-28).
  • 14 J. G. Magnani criou também a coleção Antropologia Hoje, inicialmente ligada à Ed. Terceiro Nome.
  • 15 Seu livro Tristes trópicos (Lévi-Strauss, 1996 [1955]), com um capítulo dedicado a suas observações (...)

15Magnani lecionou por alguns anos na Unicamp,13 antes de se tornar docente da USP a partir de 1983 (Castro, 2018 [2017], p. 27-28), tendo criado, em 1988, o Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) e, em 2007, a Revista Ponto Urbe.14 Mesmo que aborde formas de sociabilidade, sua linha teórica aproxima-se mais das etnografias de Malinowski (2018 [1922]) e do estruturalismo de Lévi-Strauss,15 através da proposta da criação de uma família de categorias – pedaços, manchas, trajetos, circuitos, pórticos (Magnani, 2002).

  • 16 Isaac Joseph (Valladares e Lima, 2000, p. 3-4) inclui Becker e Goffman no que seria a “Segunda Esco (...)
  • 17 Becker (1996, p. 188), por sinal, já afirmou pertencer à linhagem Simmel-Park-Hughes-ele próprio.

16Dada a intenção de rastrear diálogos da antropologia urbana brasileira com a Escola de Chicago, é importante mostrar como a trajetória de Gilberto Velho estabeleceu uma outra direção no quadro até aqui delineado. Se vimos, até o momento, vinculações diretas de pesquisadores paulistas com Park, Pierson ou Hughes, G. Velho, por sua vez, estabeleceu pontes com as obras de Erving Goffman (1922-82) e Howard S. Becker (1928-), que fariam parte de uma espécie de terceira geração da Escola de Chicago (Becker, 1996: 185),16 sob forte influência do interacionismo simbólico.17 Isso também remete a um significativo interesse de G. Velho em Georg Simmel (1858-1918), que foi adotado (e relido) pela Escola de Chicago, sobretudo através de Park (Frúgoli Jr., 2007, p. 8-22).

  • 18 Em 1972, R. C. de Oliveira deixou a instituição para também ajudar a criar, no mesmo ano, a pós-gra (...)
  • 19 DaMatta veio a enfocar âmbitos urbanos (sobretudo do Rio de Janeiro), mas não numa perspectiva etno (...)

17G. Velho formou-se em Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia (UFRJ) em 1968; no ano seguinte foi convidado para ministrar aulas no IFCS (UFRJ) e, depois, no programa de pós-graduação do Museu Nacional (UFRJ), onde defendeu, em 1970, a dissertação de mestrado intitulada “Utopia urbana” (a terceira a ser então concluída), a seguir publicada (Velho, 1973). Tal obra foi decorrente de sua pesquisa etnográfica num edifício de Copacabana, no Rio de Janeiro, dado o interesse, que depois se consolidou e ampliou, pelas camadas médias urbanas (Castro; Ferreira; Oliveira, 2001, p. 186-190). O Museu Nacional foi o primeiro programa de pós-graduação de antropologia do país, criado em 1968, graças ao papel inicial de Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006), em parceria com David Maybury-Lewis (1929-2007) e consideráveis contribuições de Roberto DaMatta (1936-), Moacir Palmeira (1942-), Lygia Sigaud (1945-2009) e Otávio Velho (1941-) (Corrêa, 2013 [1995], p. 119-131).18 Além de abranger pesquisas com indígenas e camponeses, o Museu Nacional veio a contar com DaMatta, inicialmente etnólogo, que depois passou a abordar temáticas de sociedade nacional,19 Gilberto Velho, em questões urbanas e, um pouco mais tarde, Eduardo Viveiros de Castro (1951-), na etnologia (Corrêa, 2013 [1995], p. 129-130).

  • 20 Para uma síntese de suas pesquisas no Rio de Janeiro, ver Leeds, A. e Leeds, E. (2015 [1978]).
  • 21 Cujo trabalho de fim de curso, escrito em parceria com Yvonne Maggie, então sua esposa, abordou uma (...)
  • 22 Intitulado (em português) “Etnografia de hospitais psiquiátricos e prisões”.
  • 23 “Um dos aspectos mais fascinantes da investigação foi comparar as diferenças, sobretudo, geracionai (...)

18Segundo Castro; Ferreira; Oliveira (2001. p. 190-196), por conta de convênio do Museu Nacional com a Fundação Ford, G. Velho foi aluno de Anthony Leeds (U. do Texas, Austin),20 num curso chamado “Antropologia Urbana”,21 de Richard Adam (U. do Texas, Austin), “Antropologia das Sociedades Complexas”, e de Shelton Davis (Castro; Ferreira; Oliveira, 2001, p. 190-191). Entre 1971 e 1972, esteve como visiting scholar na U. do Texas (Austin) e, num curso com Ira Buchler,22 fez leituras aprofundadas de E. Goffman e H. Becker. Nas férias de verão, foi a Cambridge (Estados Unidos), quando então realizou uma pesquisa com portugueses (açorianos) que residiam em Boston.23 De volta ao Brasil, o doutorado pretendido no Museu Nacional não pôde ser realizado porque ainda não estava regularizado, e através de R. C. de Oliveira, concluiu-o na USP, sob a orientação de Ruth Cardoso, intitulado “Nobres e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia” (1975).

  • 24 Bem como a definição de diversas publicações antropológicas referenciais junto à Zahar.
  • 25 Isso é frisado por Mariza Peirano (1999, p. 241), o que Paula Montero (2004, p. 124) acaba por ress (...)

19Após contatos pessoais com H. S. Becker, esteve em 1976 na Northwestern University, onde realizou um amplo estudo dos autores da Escola de Chicago, com aferição da importância de Simmel (Castro; Ferreira; Oliveira, 2001, p. 200). G. Velho não se considerava um integrante da Escola de Chicago (Castro; Ferreira; Oliveira, 2001, p. 200) – já que ressaltava a importância, em seus estudos, da escola francesa, britânica, do marxismo e da fenomenologia, além de interfaces com história, filosofia e literatura. Todavia, suas pesquisas sobre diversos temas, como projetos de ascensão social, individualismos, uso de drogas, cultura psicanalítica, sociabilidade urbana, violência urbana, estigmas (Velho, 1981), além de diversas orientações,24 ajudaram efetivamente a consolidar a influência de Simmel e de autores da Escola de Chicago na antropologia urbana brasileira.25

  • 26 “Já houve quem dissesse que Gilberto [Velho] cumpria exemplarmente o papel de ‘fazedor de rede de a (...)

20Se pensarmos pontualmente na antropologia urbana em língua portuguesa, Bomeny et al. (2009) ressaltam tal influência ampliada, a partir dos múltiplos vínculos de G. Velho com acadêmicos portugueses, como Joaquim Pais de Brito (1945-), Antonio Firmino da Costa (1950-) e Graça Cordeiro (1960-); havia naquele contexto um interesse mútuo por autores da Escola de Chicago e pelo interacionismo, e o antropólogo chegou a ser conhecido como o “interacionista brasileiro”. Nesse sentido, G. Velho aprofundava tais diálogos, buscando colaborar de forma não ortodoxa, o que culminou na coletânea Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal (Velho, 1999), por ele organizada. Trata-se, portanto, de autor com forte difusão de sua obra tanto no Brasil quanto em Portugal, como atestam duas coletâneas produzidas após seu falecimento (Patriota de Moura; Coradini, 2016; Castro e Cordeiro, 2015).26

21Passemos, de forma concisa, a outro autor referencial na antropologia urbana brasileira, Antonio Arantes. Segundo entrevista ao CPDOC (Castro, 2018 [2014], p. 1-24), formou-se em Ciências Sociais na USP (FFLC) entre 1962 e 1966, tendo sido aluno de diversos acadêmicos até aqui citados – como E. Durham, R. Cardoso, G. Mussolini e F. Fernandes – e participado de uma forte efervescência política, apesar do golpe de 1964. Foi convidado a dar aulas como assistente em 1967, tendo participado de pesquisas de campo sobre pescadores no litoral paulista (com G. Mussolini) e messianismo religioso na Bahia (com E. Durham), o que o incentivou depois a realizar uma investigação, também no sertão baiano, com posseiros e criadores de gado, que veio a embasar seu mestrado, defendido em 1970 na USP, sob a orientação de E. Durham. Isso depois se desdobrou em diversos trabalhos e interesses sobre cultura popular.

  • 27 Ver, a respeito, o depoimento de A. Arantes (2018 [1988]), que esteve no prédio entre o fim da manh (...)
  • 28 O prédio da Maria Antônia ficava na área central, na fronteira entre Higienópolis e a Consolação, e (...)
  • 29 Autor que articulava a tradição empirista inglesa com o estruturalismo francês então emergente.

22Em 1968, ele presenciou a invasão do prédio da USP na R. Maria Antônia, a partir de conflitos com estudantes anticomunistas do Mackenzie, situado na mesma rua,27 o que culminou na transferência das ciências humanas para a Cidade Universitária,28 agravada pela já citada aposentadoria forçada de diversos docentes após o AI-5. Tal abalo havido na USP ensejou a criação da Unicamp (Corrêa, 2013 [1995], p. 153), e Arantes foi o primeiro docente contratado em antropologia, sob a incumbência de ampliar o quadro docente e fornecer as bases para o funcionamento dos referidos cursos (graduação e, logo depois, pós-graduação) (Castro, 2018 [2014], p. 12-16). Fez o doutorado na Universidade de Cambridge, sob a orientação de Edmund Leach,29 sobre a literatura de cordel nordestina (defendida em 1978), ao mesmo tempo que trouxe para a Unicamp Peter Fry (1941-, africanista) e Verena Stolcke (1938-, estudiosa de gênero, família e relações raciais) (Corrêa, 2013 [1995], p. 155). Em síntese, A. Arantes buscava articular os temas da cultura popular, da cultura nacional e do quadro político brasileiro, também à busca de uma reflexão mais matizada que o marxismo (Castro, 2018 [2014], p. 23-24).

  • 30 P. Fry (Fry et al., 2006, p. 221) relatou que R. Cardoso e E. Durham foram as amigas mais antigas q (...)
  • 31 Para um balanço mais recente da formação desse campo antropológico, ver Gonçalves (2018).

23Segundo Corrêa (2013 [1995], p. 148), configuraram-se, na década de 1970, determinadas confluências entre a antropologia urbana da USP (R. Cardoso e E. Durham), da Unicamp (P. Fry) e do Museu Nacional (G. Velho), o que é corroborado por A. Arantes (Castro, 2018 [2014]: 27-28), que afirmava participar desse campo, que se desdobrou em alianças em encontros da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).30 Sobre esse período, Melatti (1990 [1984], p. 168) afirmou haver um “crescente número de pesquisadores com formação em Etnologia que se ocupam dos fenômenos sociais que se dão no ambiente urbano”. Com olhar voltado tanto às camadas populares quanto a estratos médios, havia “uma preocupação em considerar também a maneira como os agentes que são objeto da investigação pensam a respeito de seus próprios problemas e como ordenam seus conhecimentos e experiências referentes ao setor do mundo urbano em que vivem” (Melatti, 1990 [1984], p. 169).31

  • 32 A. Arantes também presidiu a ABA.
  • 33 Sobretudo com Carlos Fortuna, da U. de Coimbra.
  • 34 Para um panorama de tais interlocuções, ver Arantes (2000b).
  • 35 Sobre tal livro, Magnani (2001, p. 171) aponta suas diversas qualidades, mas critica certa profusão (...)

24Posteriormente, A. Arantes envolveu-se com questões ligadas ao patrimônio cultural (Arantes, 1984), tendo presidido o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), com empenho posterior na consolidação da proteção do patrimônio imaterial (segundo entrevista a Torres, 2008, s. p.).32 Durante a década de 1990, todavia, ele se voltou a temas de cultura e poder em megacidades contemporâneas, com ênfase na construção do espaço público, nas interfaces com o mercado de bens culturais e políticas de patrimônio, em parcerias com acadêmicos estrangeiros (em Portugal,33 nos Estados Unidos e no México).34 Isso culminou num livro referencial (Paisagens paulistanas, Arantes, 2000a), com aprofundamentos acerca do conceito de lugar (Castro, 2018 [2014], p. 10), à busca de facetas da complexa realidade a que denominamos “cidade” (Torres, 2008), o que se desdobrou na orientação de uma série de mestrados e doutorados.35 Em síntese, trata-se de um autor com fortes marcas na antropologia urbana sobretudo durante a década de 1990, sem diálogo com a Escola de Chicago, tendo se dedicado significativamente à gestão do patrimônio cultural (Arantes, 2009) e que prefere se situar dentro e ao mesmo tempo fora dos tipos consagrados pelas taxonomias utilizadas pelos pesquisadores acadêmicos – “urbano”, “rural”, “indígena”, “afro-brasileiro” etc. (Torres, 2008).

  • 36 Cujos avós maternos morreram em campo de concentração.
  • 37 Coletânea que, dentre outros autores, continha artigos de Simmel, Park e Wirth.
  • 38 Na Inglaterra, já havia feito cursos com Ernest Gellner, Marc Bloch, Pitt Rivers e Mary Douglas (Ca (...)

25Finalizemos essa parte com a trajetória de Ruben George Oliven (Castro, 2017 [2016], p. 1-14), ligado à formação do campo de antropologia urbana na UFRGS – cuja pós-graduação se consolidou de forma tardia em comparação a outras até aqui abordadas, mas que veio a constituir uma área referencial no país. Filho de judeus alemães que vieram para o Brasil em 1939,36 formou-se concomitantemente em Ciências Sociais e em Economia (ambos na UFRGS) em 1968, quando foi decretado o já citado AI-5, tendo antes passado um ano (1965) em Israel. Nas Ciências Sociais, R. Oliven passou a se interessar pelo tema da cultura e pela questão urbana. Depois de formado, trabalhou inicialmente em empresas nacionais e estrangeiras, mas foi convidado para docência de antropologia no Depto. de Ciências Sociais da UFRGS – um dos cursos ministrados, aliás, se intitulava “Fenômeno urbano”, inspirado em coletânea organizada por Otávio Velho (1967).37 O antropólogo fez então mestrado em Planejamento Urbano (UFRGS), cuja dissertação abarcou moradores da Vila Farrapos, a partir de uma pesquisa de campo. Em 1974, seguiu para a Universidade de Londres, para realizar o doutorado sob a orientação de Ian Roxborough, estudioso da América Latina. A tese, defendida em 1977, se tornou um livro, Urbanização e mudança social no Brasil (Oliven, 1980a), em diálogo com o marxismo e com a Escola de Chicago, ao articular literaturas sobre marginalidade, política e cultura, com foco em Porto Alegre. Ainda passou pela École des hautes études en sciences sociales (EHESS, Paris), antes do retorno ao Brasil, quando frequentou seminários de Jacques Lacan, Michel Foucault e Lévi-Strauss.38

  • 39 Sobre tal livro, ver Eckert (2010, p. 165-166).
  • 40 Cornelia Eckert fez o mestrado sob sua orientação (1982-1985), com base numa pesquisa sobre mineiro (...)
  • 41 Sem esgotar os temas mencionados, ler Oliven (2002).

26A seguir (Castro, 2017 [2016], p. 14-44), R. Oliven publicou um artigo numa coletânea organizada por G. Velho, O desafio da cidade (Oliven, 1980b), em diálogo com a Escola de Chicago e a antropologia urbana e paulista. Um ano antes (1979), fora criado o mestrado em antropologia social na UFRGS, num campo de tensões com a sociologia e a ciência política, que levaram à autonomização da antropologia em 1985 – ano em que o autor publicou A antropologia de grupos urbanos (Oliven, 1985).39 A partir de 1979, Oliven passou a orientar dissertações, e depois teses, várias das quais direcionadas à antropologia urbana.40 Pode-se dizer, sinteticamente, que seus interesses acadêmicos posteriores se concentraram nos temas da cultura brasileira, das identidades regionais, da música popular (brasileira e norte-americana), do consumo e do significado simbólico do dinheiro,41 tendo ainda presidido a ABA e a ANPOCS, além de ter sido professor visitante de diversas universidades norte-americanas e europeias.

27

Conclusões

28 Vimos que houve uma primeira influência da Escola de Chicago no Brasil no contexto acadêmico de São Paulo, por meio de um convênio que acarretou a vinda de Donald Pierson para a ELSP – que tinha permanecido anteriormente em Salvador para sua pesquisa de doutorado. Isso, entretanto, não se desdobrou numa realização regular de pesquisas urbanas, tanto por conta das fragilidades da própria ELSP, quanto pelos embates teóricos configurados a seguir, com críticas sobretudo marxistas ao culturalismo e ao funcionalismo dos chamados estudos de comunidade.

29 O golpe militar de 1964 afetou a ELSP, que já passava por crises, bem como a USP, lembrando que a FFCL, que funcionava no centro da cidade (próxima à ELSP), foi atingida pela batalha estudantil em outubro de 1968 – que se desdobrou em sua transferência para o campus do Butantã – e pelo AI-5 de dezembro do mesmo ano, que aposentou precocemente, no ano seguinte, dezenas de docentes. O golpe e seus desdobramentos impactaram, de distintas formas, diversos aspectos das trajetórias das/os autoras/es enfocados nesse texto, quanto a exílios, escolhas acadêmicas ou temas pesquisados.

30De toda forma, do final da década de 1960 em diante, a reforma universitária ocasionou a constituição de um novo quadro acadêmico, com a articulação, no caso da antropologia, de um sistema de pós-graduação no Rio de Janeiro (Museu Nacional, UFRJ), Brasília (UnB), São Paulo (USP) e Campinas (Unicamp), que alavancou a disciplina, embora a antropologia urbana partilhasse uma posição com outros campos mais consolidados ou hegemônicos.

  • 42 Stocking Jr. (2004) mapeou tal processo na própria Universidade de Chicago, ao reconstituir a traje (...)
  • 43 Enfoquei tanto o diálogo entre antropologia e sociologia no interior da Escola de Chicago, quanto n (...)

31 As pesquisas ligadas à Escola de Chicago na ELSP eram nitidamente sociológicas, embora dialogassem com questões etnográficas oriundas crescentemente da antropologia.42 A partir da década de 1970, configurou-se gradativamente um campo de antropologia urbana em universidades brasileiras, que, ao mesmo que buscava obter legitimidade no interior da antropologia, enfrentava um diálogo complexo com a sociologia, e em certos casos, com a ciência política. Já abordei tal tema em duas ocasiões (Frúgoli Jr., 2005, 2009), ressaltando como a prática etnográfica representaria um importante espaço de expansão da antropologia urbana,43 embora novos desafios tenham posteriormente surgido, seja quanto ao surgimento ou autonomização de novos campos de pesquisa antropológica que de alguma forma abrangem o urbano, seja pela adoção crescente da etnografia por parte de abordagens sociológicas.

  • 44 Dentre outras referências, ver Castro (2018 [2017], p. 35-37).

32 Voltemos à influência da Escola de Chicago no Brasil, e atenhamo-nos ao período enfocado – dado que um mapeamento mais abrangente extrapola os limites do presente texto: vimos como, no contexto da USP, tal escola não reverberou significativamente, se pensarmos nas linhagens estabelecidas por R. Cardoso e E. Durham, com continuidade em J. G. Magnani. Isso se deu, inclusive, num quadro de instabilidade acadêmica, já que as docentes saíram da área da antropologia (e só E. Durham retornou), enquanto Magnani de alguma forma consolidou, no âmbito da USP, certas trilhas abertas por ambas, mantendo até hoje um forte interesse no tema da cidade.44 A Escola de Chicago tampouco preponderou no caso da antropologia da Unicamp, quanto à linhagem estabelecida por A. Arantes (antecedida, de certo modo, por G. Mussolini e E. Durham), que priorizou os estudos urbanos num período mais tópico de sua trajetória, embora sua referência se prolongue significativamente – lembrando que ele foi o primeiro docente de antropologia de toda a Unicamp, responsável pela criação e consolidação de tal campo.

33 Mas tal quadro se altera quando enfocamos a trajetória de G. Velho (Museu Nacional), que em sua formação estabeleceu um diálogo sobretudo com Simmel (que inspirou a Escola de Chicago, embora sob um approach empiricista) e com Goffman e Becker, ainda que Velho tenha acionado um campo mais amplo de referências teóricas, principalmente europeias – isso em condições acadêmicas que lhe propiciaram experiências sólidas de docência, formação e de intercâmbios internacionais, sem prejuízo de seu engajamento também político. Sua obra ajudou a difundir certos autores da Escola de Chicago não apenas no Brasil, em que goza de grande reconhecimento, mas também, como vimos, em Portugal.

34 Isso esteve presente, inclusive, nas relações havidas entre ele e R. Oliven, responsável pela consolidação inicial da antropologia urbana na UFRGS, sobretudo na primeira metade da década de 1980, cujos trabalhos dialogavam tanto com a Escola de Chicago quanto com outras correntes teóricas urbanas da época, numa linhagem que teve sequência nas abordagens referenciais de sua ex-orientanda C. Eckert.

35 Sem esgotar as distintas concepções do urbano na antropologia brasileira ao longo da presente abordagem, pode-se destacar algumas delas, cujas adoções por parte de autoras/es enfocadas/os adquiriram temporalidades variadas: âmbito academicamente complementar aos contextos indígena e rural – algo que embora tenha demarcado uma área a ser aprofundada, perde a força analítica se mantido indefinidamente; esfera de concentração de práticas e representações culturais de agentes em luta por direitos durante a redemocratização, no âmbito das classes populares; domínio de uma diversidade de projetos e de comportamentos desviantes, com ênfase nas camadas médias, existentes nas sociedades moderno-contemporâneas; espaços marcados por articulações entre patrimônio, cultura e poder, atravessados por processos de mundialização que desafiam, conceitual e contextualmente, as próprias pesquisas.

36Para fechar, em diálogo com autoras/es enfocados até aqui, e como já dito, sem buscar abranger o vasto campo da antropologia formado nas últimas décadas, gostaria de retomar, de forma tópica, ponderações já realizadas sobre rumos da antropologia urbana brasileira (Frúgoli Jr., 2019). Uma delas está presente na proposta de J. G. Magnani, que se mantém explicitamente no campo da antropologia urbana, da busca de uma “forma-cidade” (Magnani, 2012b, p. 309-327). Tratar-se-ia de uma espécie de tipo ideal decorrente da articulação de estudos antropológicos sobre diversos temas – como gênero, direito, esportes, saúde e doença, trabalho, política ou religião – oriundos de pesquisas na e da cidade, que permitiria conectar formas espaciais (como pontos mais estáveis da paisagem urbana e não meros cenários) com padrões de relações sociais (que envolveriam tanto intercâmbios não mediados necessariamente pelo parentesco, quanto relações específicas com estranhos). Isso assinalaria, segundo o autor, um modo de avançar no fortalecimento da antropologia urbana, evitando que a mesma se torne uma espécie de “guarda-chuva” de abordagens que tendem a se autonomizar, mantendo-se também uma especificidade disciplinar antropológica.

  • 45 Em fev./2023, tive a oportunidade de participar de uma mesa no CPDOC voltada à abertura do acervo d (...)

37G. Velho, por sua vez, também fortemente ligado ao campo da antropologia urbana ao longo da toda a trajetória acadêmica, entendia que as pesquisas em tal campo vieram a abordar temas de proximidade como “camadas médias, gênero, geração, vida artística e intelectual, família e parentesco, religião, política etc.” (Velho, 2003, p. 15) que estavam ligados, em suas origens (ainda que não exclusivamente), a um movimento de ampliação da produção antropológica para responder a desafios trazidos pelo golpe militar de 1964. De toda forma, ele defendia que a antropologia urbana não deveria ser pensada como uma subárea, mas como um ponto de encontro de projetos e análises, em que o universo simbólico e o plano de representações seriam incorporados em políticas públicas e estudos (Velho, 2011, p. 177), ao englobar ou inter-relacionar temas variados – presentes no modo como o autor dialogou com diversas áreas do saber.45

38 Sem abranger, evidentemente, outras possibilidades analíticas, temos aqui dois caminhos que não se excluem, quanto aos imensos desafios teóricos, acadêmicos e etnográficos da renovação de uma antropologia centrada nas tramas da cidade. Um exame mais detido sobre a viabilidade de tais rumos transcende o escopo desse artigo, já que um mapeamento do vasto trabalho de antropólogas/os posteriores ou ligados às linhagens aqui abordadas exigiria uma outra escala de abordagem. O mesmo pode ser dito quanto aos principais contextos socioculturais pesquisados, que aqui foram apenas aludidos.

  • 46 Como feminismo, negritude e branquitude, corporalidades, marcadores sociais da diferença, violência (...)

39 Ademais, encontramo-nos, no Brasil, num cenário assinalado tanto pela expansão exponencial de lutas pelo “direito à cidade”, quanto pelo aumento de ações políticas que extrapolam o âmbito urbano e se voltam ao enfrentamento de crises planetárias mais abrangentes. Simultaneamente, práticas políticas autoritárias se aprofundam e nos assombram pelo forte caráter de destruição e barbárie. A antropologia urbana brasileira, como vimos, foi criada em meio a um contexto político ditatorial, firmou-se num campo acadêmico nem sempre propício às suas especificidades, buscou pesquisar diversos movimentos sociais e dar visibilidade à multiplicidade de agentes citadinos, criou um campo significativo de produção teórica e etnográfica, ao mesmo tempo que passou pela autonomização de várias temáticas,46 expandiu-se ao mesmo tempo que, de certo modo, se fragmentou. Trata-se, enfim, de uma área crescentemente liminar dentro da antropologia, mas, a meu ver, com forte capacidade de articular tanto temas quanto áreas disciplinares.

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Notas

1 Artigo derivado de paper apresentado no Painel “O desafio do urbano: interseções, resistências, utopias”, no VIII Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (Évora, set./2022). Agradeço pelos comentários de Graça Cordeiro e de outros presentes no referido painel. Sou grato também pela leitura prévia de integrantes do GEAC-USP: Bárbara Côrtes, Douglas Delgado, Eduardo Rumenig, Gabriela Leal, Julio Talhari, Luís Michel Françoso, Luiz Paulo Santiago, Mariana Mandelli e Nicolau Musa. Tópicos abordados nesse texto foram apresentados na conferência “Sentidos de alteridade na antropologia urbana brasileira”, proferida no II Encontro do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Cidades e Imagens (UFMA-Imperatriz, nov./2021).

2 Tema central do já referido painel de antropologia urbana da APA em 2022 (ver nota anterior).

3 Para um panorama a respeito das relações da antropologia urbana com a Escola de Chicago, bem como com a Escola de Manchester, ver Hannerz (2015 [1980]) e Agier (2011).

4 Ambas, ELSP e USP, representaram dois contrapontos da elite paulistana à Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, que restringiu o poder político do estado de São Paulo no plano nacional. Claude Lévi-Strauss foi docente da USP quando esteve no Brasil entre 1935 e 1939 (Lévi-Strauss; Eribon, 2005 [1988], p. 32-42).

5 Quando então se tornou docente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Vanderbilt.

6 Como mostra Cavalcanti (2012, p. 182-251), uma decorrência desse tipo de intercâmbio com a Universidade de Chicago fica visível na trajetória de Oracy Nogueira, que fez bacharelado e mestrado na ELSP, tendo inclusive sido aluno de Radcliffe-Brown (professor visitante entre 1943 e 1946, cuja estada foi analisada por Pina Cabral e Thomaz, 2011); em 1945, por meio de convênio da ELSP, seguiu para a Universidade de Chicago para iniciar o doutorado sob a orientação de Everett Hughes, quando foi aluno de R. Redfield e de Louis Wirth; sua tese, todavia, não foi defendida porque em 1952 teve visto de entrada negado pelos Estados Unidos sob o macarthismo, por ser filiado ao Partido Comunista. Após a saída de D. Pierson da ELSP, Nogueira ingressou na USP e gradativamente deixou a ELSP.

7 Florestan Fernandes (1920-1995) exemplifica tal trânsito e processo, numa trajetória do funcionalismo ao marxismo, ou, de certo modo, da antropologia à sociologia: formou-se na USP em 1943, defendeu o mestrado na ELSP (1946) e o doutorado na USP (1951), ambos sobre os tupinambás; posteriormente veio a estudar relações raciais no Brasil e os desafios da sociedade nacional sob o capitalismo. Ele foi um dos aposentados pelo Ato Institucional n. 5 (1968). Sobre os embates entre Florestan Fernandes e Emilio Willems quanto a atribuições teóricas e institucionais da sociologia e da antropologia, ver Corrêa (2013 [1995], p. 140-147).

8 Falecida em julho do ano passado.

9 Nesse texto, as autoras explicitam os limites das abordagens dos fundadores da Escola de Chicago. Por sinal, ambas, em parceria com Lúcio Kowarick, fundaram também a linha de pesquisas do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) sobre a cidade (Gregori; Hamburger, 2009, p. 286).

10 Também chamado de “Seminário do Capital”, durou entre 1958 e 1964, cujo grupo inicial foi composto por José Arthur Gianotti, Octávio Ianni, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Bento Prado e Fernando Novais (Cardoso, 2009, p. 23-24).

11 O que se desdobrou em publicação sobre o autor, decorrente de sua livre-docência (Durham, 1978).

12 Cabe ressaltar que, a partir daqui, por razões metodológicas, baseio-me principalmente nas entrevistas concedidas pelos autores (enfocados no artigo) ao Projeto Memória das Ciências Sociais do CPDOC, embora em outras circunstâncias tenham abordado suas trajetórias acadêmicas e de vida. Para leitoras/es interessados, vale a pena também consultar suas entrevistas (incluindo R. Cardoso e E. Durham) ao projeto Narradores Urbanos (ver Eckert; Rocha, 2006, 2007, 2008, 2009a, 2009b, 2013a). Para uma compreensão mais clara desse último projeto – de caráter imagético, que em diversos casos inclui caminhadas dos entrevistados pela cidade, em torno de memórias vividas, cujo escopo extrapola os objetivos do presente artigo – ver Eckert; Rocha (2013b).

13 Quando foi colega de Antonio Arantes, Alba Zaluar e Peter Fry (Castro, 2018 [2017], p. 27-28).

14 J. G. Magnani criou também a coleção Antropologia Hoje, inicialmente ligada à Ed. Terceiro Nome.

15 Seu livro Tristes trópicos (Lévi-Strauss, 1996 [1955]), com um capítulo dedicado a suas observações de São Paulo (entre 1935 e 1938), nas suas “etnografias de domingo” foi alvo de um artigo de Magnani (1999).

16 Isaac Joseph (Valladares e Lima, 2000, p. 3-4) inclui Becker e Goffman no que seria a “Segunda Escola de Chicago”.

17 Becker (1996, p. 188), por sinal, já afirmou pertencer à linhagem Simmel-Park-Hughes-ele próprio.

18 Em 1972, R. C. de Oliveira deixou a instituição para também ajudar a criar, no mesmo ano, a pós-graduação de antropologia da UnB (Corrêa, 2013 [1995], p. 131-136).

19 DaMatta veio a enfocar âmbitos urbanos (sobretudo do Rio de Janeiro), mas não numa perspectiva etnográfica que dialogasse com a antropologia urbana, dada a ênfase (inspirada em Louis Dumont) no tema da sociedade nacional (sobre o autor, ver Corrêa, 2013 [1995], p. 175-185; Cavalcanti, 2012, p. 254-279). Nessa linha, Gonçalves (2018) entende uma aproximação da antropologia urbana com o pensamento social brasileiro, mais evidente no contexto carioca.

20 Para uma síntese de suas pesquisas no Rio de Janeiro, ver Leeds, A. e Leeds, E. (2015 [1978]).

21 Cujo trabalho de fim de curso, escrito em parceria com Yvonne Maggie, então sua esposa, abordou uma pesquisa inicial com moradores de Copacabana (ver Velho; Maggie, 2013).

22 Intitulado (em português) “Etnografia de hospitais psiquiátricos e prisões”.

23 “Um dos aspectos mais fascinantes da investigação foi comparar as diferenças, sobretudo, geracionais, entre as famílias dos imigrantes” (Velho, 2010, p. 16).

24 Bem como a definição de diversas publicações antropológicas referenciais junto à Zahar.

25 Isso é frisado por Mariza Peirano (1999, p. 241), o que Paula Montero (2004, p. 124) acaba por ressaltar, embora de forma não matizada, para toda a antropologia urbana brasileira.

26 “Já houve quem dissesse que Gilberto [Velho] cumpria exemplarmente o papel de ‘fazedor de rede de amigos’. Com expertise incomum, transformava a afeição sincera a um amigo em um projeto intelectual raro e persistente” (Bomeny, 2015, p. 51, grifo da autora). Para um balanço das práticas de etnografia urbana em Portugal, com ênfase no papel de G. Velho, ver Cachado (2018).

27 Ver, a respeito, o depoimento de A. Arantes (2018 [1988]), que esteve no prédio entre o fim da manhã e o início da noite de 3.out.1968, quando o local foi alvo de pedras, tijolos, tiros, bombas incendiárias e rojões por partes de mackenzistas, com forte conivência policial (tal livro teve, dentre outras/os, a participação, na comissão organizadora da 1ª ed., de Antonio Candido, E. Durham e R. Cardoso).

28 O prédio da Maria Antônia ficava na área central, na fronteira entre Higienópolis e a Consolação, e sua transferência para um campus afastado, no Butantã, sob a ditadura, trouxe impactos sobretudo àquelas/es que viveram tal mudança. Nas palavras do sociólogo José de Souza Martins, a “animada cultura do saguão da rua Maria Antônia” [...] foi reduzida “às miudezas insípidas próprias das incertezas criadas pela ditadura, e das extensas fragmentações da comunidade acadêmica” [...] num novo edifício “com sua arquitetura pré-fabricada, medonha e burra” (Martins, 2013, p. 124).

29 Autor que articulava a tradição empirista inglesa com o estruturalismo francês então emergente.

30 P. Fry (Fry et al., 2006, p. 221) relatou que R. Cardoso e E. Durham foram as amigas mais antigas que ele teve no Brasil, a partir de sua chegada, em 1970. Numa época em que havia pouquíssimos doutores em antropologia, ele participou, num curto período, das bancas de A. Arantes (mestrado), e de R. Cardoso e G. Velho (doutorados). G. Velho veio a presidir a ABA e a ANPOCS.

31 Para um balanço mais recente da formação desse campo antropológico, ver Gonçalves (2018).

32 A. Arantes também presidiu a ABA.

33 Sobretudo com Carlos Fortuna, da U. de Coimbra.

34 Para um panorama de tais interlocuções, ver Arantes (2000b).

35 Sobre tal livro, Magnani (2001, p. 171) aponta suas diversas qualidades, mas critica certa profusão terminológica e a multiplicidade de categoriais, que correriam o risco de duplicar a heterogeneidade dos objetos tratados. De toda forma, também valeria a pena pensar nas decorrências das categorias básicas propostas por Magnani, quanto à capacidade de abarcar a multiplicidade do urbano.

36 Cujos avós maternos morreram em campo de concentração.

37 Coletânea que, dentre outros autores, continha artigos de Simmel, Park e Wirth.

38 Na Inglaterra, já havia feito cursos com Ernest Gellner, Marc Bloch, Pitt Rivers e Mary Douglas (Castro, 2017 [2016], p. 15).

39 Sobre tal livro, ver Eckert (2010, p. 165-166).

40 Cornelia Eckert fez o mestrado sob sua orientação (1982-1985), com base numa pesquisa sobre mineiros de carvão franceses, sob supervisão de Jacques Gutwirth (1926-2012), etnólogo belga fundador do Laboratório de Antropologia Urbana do CNRS – ele depois seria seu orientador de doutorado. Embora se trate de uma antropóloga bastante expressiva no campo da antropologia urbana brasileira, numa parceria constante com Ana Luiza Rocha (UFRGS), a análise de sua trajetória excede o escopo do presente artigo (ver, sobre sua obra, Oliven, 2005).

41 Sem esgotar os temas mencionados, ler Oliven (2002).

42 Stocking Jr. (2004) mapeou tal processo na própria Universidade de Chicago, ao reconstituir a trajetória de Redfield.

43 Enfoquei tanto o diálogo entre antropologia e sociologia no interior da Escola de Chicago, quanto no desenvolvimento da antropologia urbana na USP (Frúgoli Jr., 2005). Caberia averiguar, evidentemente, a particularidade de tais arranjos em outros contextos, como p. ex. no Rio de Janeiro, cuja entrevista com Gilberto Velho ao CPDOC, sintetizada no presente artigo, dá pistas instigantes.

44 Dentre outras referências, ver Castro (2018 [2017], p. 35-37).

45 Em fev./2023, tive a oportunidade de participar de uma mesa no CPDOC voltada à abertura do acervo de Gilberto Velho e aos 50 anos da publicação de A utopia urbana (Velho, 1973), partilhada com José Guilherme Magnani e Ruben George Oliven. Na ocasião, pude retomar minhas memórias de mestrando (sob a orientação de Magnani), com base nas anotações do meu caderno quando fui aluno de uma disciplina ministrada por Gilberto Velho, como professor visitante, durante o segundo semestre de 1986; na ocasião, ele explorou uma série de enfoques ligados a formas de sociabilidade, a dinâmicas de interação, de anonimato relativo, de comportamentos desviantes, dentre outros temas, que ampliavam as possibilidades de abordagem etnográfica a pós-graduandas/os do PPGAS-USP. Segundo Velho (2012 [1992], p. 189), “um grupo de alunos que muito me marcou pelo interesse e qualidade”.

46 Como feminismo, negritude e branquitude, corporalidades, marcadores sociais da diferença, violências, além de outras temáticas que, evidentemente, escapam ao âmbito desse artigo.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Heitor Frúgoli Jr., «Formação da antropologia urbana brasileira: diálogos com a Escola de Chicago e linhagens iniciais»Ponto Urbe [Online], 31 | 2023, posto online no dia 25 julho 2023, consultado o 02 dezembro 2023. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/14637; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.14637

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Autor

Heitor Frúgoli Jr.

Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo

E-mail: hfrugoli@uol.com.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9075-891X

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