1Amplamente difundida como “uma paisagem monótona e cinzenta (…), um bloco homogêneo em oposição ao centro” (Magnani, 2012, p. 86), a periferia não foi, historicamente, reconhecida como espaço preferencial para consumo e produção de arte, tampouco como lugar ideal para relações de fruição e de lazer. Essa representação contrasta com manifestações da cultura nacional que têm em regiões nomeadas como periféricas o seu berço. Podemos pensar no samba, no carnaval, no rap e no funk, para citar alguns exemplos mais conhecidos.
2Transformações políticas e sociais vividas no Brasil, especialmente a partir dos anos 2000, possibilitaram a ascensão de novas visibilidades sobre a periferia, culminando em um “reposicionamento semântico” do termo (Aderaldo, 2017. p. 21). Contribuíram para isso questões como a ampliação do acesso ao ensino superior por pessoas de baixa renda e de diferentes origens étnicas e raciais, o crescimento do poder de consumo por membros dessa mesma população, acompanhado de uma relativa democratização do acesso a dispositivos de comunicação e do aumento do investimento público em políticas culturais.
3Esses fatores impulsionaram uma nova “construção nacional” produtora de uma “esperança positiva” (Pinheiro- Machado e Scalco, 2018, p.4), gerando profundo impacto na subjetividade de indivíduos com marcadores sociais estigmatizados, os quais puderam converter sentimentos de inferioridade em orgulho por suas origens menos privilegiadas. Na prática, isso significou uma abertura de campos de possibilidades (Velho, 2003) para pessoas vindas de estratos sociais mais baixos, o que contribuiu para a ampliação de públicos e de artistas envolvidos com a produção cultural em regiões mais precarizadas. Os impactos dessas mudanças foram simbólicos e concretos: ganharam vez outras formas de imaginação da cidade e de circulação por ela.
4No Rio de Janeiro, alteraram-se especialmente as relações entre periferia e centro, subúrbio e Zona Sul. Associada a símbolos como cosmopolitismo, modernidade, sofisticação, entre outras formas de distinção (Velho, 1973; O’Donnell, 2013), a Zona Sul contrasta historicamente com o subúrbio carioca, que comumente faz referência a um conjunto de bairros do Rio de Janeiro “atravessados pelas linhas de trem e simbolicamente distantes do que seria o ‘centro’, sendo recorrentemente indexados à pobreza, à subalternidade e às classes populares” (Guimarães e Davies, 2018, p. 457).
5Embora essas representações sobre a cidade e suas divisões permaneçam, elas estão menos cristalizadas à medida que vêm passando por um processo de disputa. A expressão “cria” é reveladora disso. Os “crias” das favelas e das periferias usam esse termo para se referirem com orgulho a seus lugares de origem, descrevendo-se como parte de um mesmo grupo, mesmo quando vindos de lugares espacial e simbolicamente distantes. Nova Iguaçu e Belford Roxo, por exemplo, são cidades muito diferentes entre si, o que não impede seus moradores de se conectarem a partir de uma identificação comum: cria da Baixada. Isso só é possível porque para esses sujeitos a Baixada e a periferia são mais do que meros territórios, são uma forma de “experiência dotada de mobilidade” a partir da qual vem sendo relativizada a ideia de centro (Aderaldo, 2017). Neste artigo busco demonstrar como alguns dos e das crias da Baixada que acompanhei para a minha pesquisa chegaram a esse tipo de elaboração a partir de intervenções audiovisuais pela cidade.
- 1 A Baixada é composta oficialmente pelos seguintes municípios: Japeri, Queimados, Mesquita, Belford (...)
6De grande extensão territorial, a Baixada é composta, em seu mapa oficial, por 13 municípios que integram a região metropolitana do Rio de Janeiro1. A escolha por tê-la como lugar de pesquisa foi motivada inicialmente por vínculos que estabeleci com a região, na qual vivi desde a infância e onde atualmente moram alguns dos meus familiares. Eu venho de Nova Iguaçu, que é uma de suas principais cidades, a maior em extensão territorial e a segunda em população, sendo Duque de Caxias a mais populosa. Mas essa não foi a única razão que despertou o meu interesse. O meu recorte de pesquisa foi estimulado também pelo fato de a Baixada Fluminense ser um importante espaço para a reflexão sobre disputas simbólicas que envolvem a produção de representações e de intervenções estéticas na cidade.
- 2 Segundo Aderaldo (2017, p. 21), “os coletivos podem ser definidos como pequenas associações, sem es (...)
7A Baixada tem uma cena de produção e difusão audiovisual bastante profícua e consolidada, desde os anos 1980, pelo menos, com as históricas TV Maxambomba e TV Olho, que incentivavam moradores a produzirem vídeos sobre suas histórias e a exibi-los em praças públicas. Esse histórico fez dela um terreno fértil para o surgimento de diversos coletivos audiovisuais em um contexto favorável para a produção cultural no Brasil, a partir dos anos 2000, pelas razões já apontadas2. Não por acaso, esse período foi um marco para o surgimento de coletivos não só audiovisuais como também de diversas outras abordagens artísticas, conforme revelou o Mapeamento dos Grupos Criativos da Baixada Fluminense (Programa Brasil Próximo, 2015).
8O trabalho desses coletivos costuma problematizar uma série de rotulações desqualificadoras (Alves, 2003; Enne, 2002; Freire, 2016) que produzem estigmas e vinculam a Baixada quase que exclusivamente à violência política e urbana, a representações particulares sobre a pobreza e a percepções que a situam como lugar muito distante do centro do Rio de Janeiro, ainda que alguns de seus municípios mais conhecidos estejam cerca de 30km de distância das áreas tidas como mais centrais na cidade.
9Em um contexto de baixa oferta de equipamentos culturais, os coletivos audiovisuais da Baixada analisados pela minha pesquisa são caracterizados por uma tríade: exibição, formação e produção. Na exibição, destacam-se os festivais e cineclubes que têm como marca a difusão de produções audiovisuais em sintonia com critérios estéticos e políticos relacionados ao chamado “cinema de arte” e ao videoativismo. Gratuita e aberta ao público, esse tipo de manifestação cumpre um papel importante para a circulação de filmes fora da rota comercial, de curtas-metragens e de obras consideradas clássicas, sejam nacionais ou internacionais, contribuindo para a formação de público e de novos cineastas (Butruce, 2003).
- 3 Sobre essas produções, é importante pontuar que embora o cinema seja uma frente importante, a atuaç (...)
10Na Baixada, esse processo impulsionou moradores não só a consumirem uma maior variedade de produtos audiovisuais como também a fazerem e exibirem suas próprias produções, geralmente estimulados pela participação em cursos e oficinas oferecidos pelos coletivos3. Essa atuação dos coletivos teve impacto na produção de novos imaginários sobre a Baixada, o que é parte de um processo mais amplo de ressignificação: à medida que a noção de periferia passou a ser associada a sentidos mais positivos, a Baixada vista como “problema” passou a ser encarada também como “solução” (Menezes, 2021), ou seja, espaço de potência criativa, de repertório e acúmulo sobre determinadas formas de experimentar e representar a cidade.
11A periferia caracterizada por um conjunto de carências, identificada como um aglomerado de cidades-dormitório, conforme visões construídas nos anos 1970 “nos marcos da sociologia urbana e incorporada ao senso comum” (Lago, 2007, p.9), foi dando lugar a um conceito polissêmico que conecta uma variedade de mobilizações e eventos culturais (Aderaldo, 2017, p. 34). No entanto, uma concepção não eliminou a outra, ambas coexistem, a depender dos contextos e atores que as estejam utilizando. Minha proposta aqui é deixar emergir os sentidos que vêm sendo mobilizados por meus interlocutores de pesquisa a fim de refletir sobre como redefinições das ideias de centro e periferia têm conduzido a outras formas de imaginação da cidade e de circulação pelos espaços urbanos.
12Para tanto, foi fundamental me mover com indivíduos que, com suas câmeras e projetores, nos convidam não só a olharmos juntos para a cidade, mas a “fazer-cidade” com eles. Essa expressão, cunhada por Agier (2015), compreende que a cidade é feita essencialmente de movimento, não cabendo, portanto, em definições normativas que congelem as dinâmicas sociais. Por essa razão, o autor rejeita concepções a priori da cidade e oposições radicais, do tipo margem X centro. Seu objetivo é compreender a margem não como fato social, geográfico ou cultural, mas como posição epistemológica e política.
13A proposta analítica de Agier parte do seguinte questionamento: o que faz e desfaz a cidade permanentemente? Como frisado por ele, é a partir da descrição e análise dos movimentos constantes de transformação urbana que o olhar antropológico pode contribuir para o tema, a fim de desenhar “uma cidade múltipla, partindo do ponto de vista das práticas, das relações e das palavras dos citadinos, tais como o próprio pesquisador as observa, as coleta e anota, direta e situacionalmente” (Agier, 2015, p.486). É partindo dessas questões e perspectivas que apresentarei a seguir um relato etnográfico sobre um circuito de produção e exibição audiovisual movimentado por coletivos da Baixada Fluminense.
14No dia 8 de março de 2018, uma fila dava voltas no quarteirão em torno do Cinema Odeon, no centro do Rio de Janeiro. Rodeado de guarda-chuvas coloridos numa quinta- feira cinzenta e agitada por manifestações pelo Dia da Mulher, o espaço se preparava para receber a Sessão de lançamento dos curtas LABs PE, pelo qual eu e mais dezenas de pessoas esperávamos.
15O evento gratuito trouxe como programação a exibição de 15 curta-metragens realizados por integrantes de coletivos audiovisuais do Rio de Janeiro, em sua maioria da Baixada Fluminense e da Zona Norte. Os filmes estreantes daquela noite foram fruto de uma formação audiovisual realizada pelo Cinema Nosso durante o ano de 2017 em parceria com o programa Territórios Culturais- RJ- Favela criativa.
16Cheguei lá sozinha, seguindo coordenadas de um evento encontrado no Facebook, com o objetivo de me aproximar dos grupos da Baixada Fluminense. Enquanto esperava, pensei naquele momento como um marco. Aquela era, afinal, a minha primeira ida a campo para o doutorado. Ali, o projeto de pesquisa finalmente deixou de ser algo distante e abstrato para dar lugar ao conhecimento “permeabilizado por cheiros, cores, dores e amores”, o famoso anthropological blues (Da Matta, 1978, p. 1).
17A ida para aquela sessão foi marcada por muitas dúvidas. Diversas vezes me perguntei se faria sentido iniciar o trabalho de campo justamente no centro do Rio e não em alguma cidade da Baixada, como eu imaginei que seria. Mas aquela mesma noite me mostrou que meus futuros interlocutores de pesquisa estavam interessados em romper fronteiras, materiais e simbólicas, que determinam quem pode ou não, e em quais circunstâncias, circular por certas partes da cidade. A Baixada foi o lugar principal para a maioria das minhas observações posteriores ao evento no Odeon, mas começar a pesquisa fora dela reforça que a cidade é um “espaço a ser conquistado e usado intensamente, como lugar de intervenção e de criatividade”, como afirmou Teresa Caldeira (2014, p.18), ao descrever o fenômeno dos rolezinhos nos shoppings de São Paulo. A casa cheia era expressão viva disso.
18Ficou evidente para mim que a Baixada não se resume a um território físico apenas: ela é um ponto de partida para olhar e viver a cidade, uma lente, conjunto de vivências inscrito nos corpos e memórias de quem veio de lá. Isso não significa padronização ou linearidade, como se todos de uma região vivessem a cidade do mesmo modo, o que seria um absurdo de ser afirmado. Significa apenas que ao tomar a Baixada como lugar de elaboração da própria subjetividade, esse lugar passa a ser um ponto de referência dentro de si para a relação com o mundo, algo como uma bússola. Parafraseando Guimarães Rosa ao falar do sertão: a Baixada é dentro da gente. Isso pode assumir formas muito variadas, como revelou a própria diversidade dos filmes exibidos naquela noite.
19Entrei no cinema a tempo de assistir o início da sessão. Encontrei o espaço lotado, com seus 550 lugares ocupados e parte da plateia espalhada pelo chão dos corredores, onde me acomodei inicialmente. Foi uma surpresa ver tantas pessoas em uma mostra de realizadores que eram, em sua maioria, jovens e ainda pouco conhecidos. As exibições foram acompanhadas por manifestações calorosas do público. Entre um e outro filme, o cinema era tomado por uma onda de palmas, assovios e vozes parabenizando os jovens cineastas, fazendo referência a seus nomes, coletivos e lugares de origem.
20O clima foi de grande celebração. Para além da beleza do prédio e da infraestrutura do local, exibir um filme no Odeon é bastante simbólico, motivo de grande orgulho, como verbalizado pelos realizadores após a sessão. Inaugurado em 1926, o Odeon se confunde com a própria história do audiovisual no Brasil, sendo marca viva de um tempo de sucesso dos cinemas de rua.
21Entre documentários e filmes de ficção, cinco dos 15 curtas apresentados foram realizados na Baixada. Desses, três tratavam da história da produção audiovisual na região. “Entre pó e películas: uma história esquecida” relembrou os antigos cinemas de rua existentes na Baixada; o documentário “TV Olho” contou a história da primeira TV comunitária do Brasil, nascida em Caxias; e “Cineclubismo na BF” trouxe um panorama mais contemporâneo da produção e veiculação de cinema na região movimentadas por cineclubes. Os outros dois filmes, “Cascudos” e “Perpétuo”, apresentaram histórias fictícias inspiradas em cenas e personagens presentes no cotidiano da Baixada Fluminense.
22Dentre os citados, o documentário “Cineclubismo na BF”, de Carol Vilamaro, nos fornece um mapa para uma primeira identificação da cena audiovisual da Baixada. Vejamos quais grupos compõem esse movimento a partir da descrição do filme a seguir, retirada do evento do Facebook criado para divulgação da sessão no Odeon4:
Trecho do evento “Estreia Cineclubismo na BF”
Fonte: Facebook da página Cineclubismo na BF
- 5 Como o meu intuito era realizar observação participante, escolhi estudar os grupos que estivessem r (...)
23Nota-se que os coletivos audiovisuais da Baixada são pensados não como grupos isolados, mas como parte de um movimento, dando corpo a uma “onda cineclubista periférica”, como é dito no convite. Essa descrição e a lista de cineclubes que a compõe me forneceram o traçado para um trabalho de campo que se iniciou naquela noite e demandou a circulação por um circuito, esse que frequentemente é um termo “nativo” utilizado por meus interlocutores de pesquisa, mas que é também um conceito formulado por José Guilherme Magnani (2014) em seus estudos sobre práticas de lazer na periferia de São Paulo5.
24Como descrito por Magnani, a partir da categoria circuito é possível ligar pontos espacialmente descontínuos e distantes no tecido urbano, sem deixar de compreendê-los como constitutivos de um mesmo conjunto. Assim, um cineclube em Duque de Caxias, um festival em Nova Iguaçu, a gravação de um filme em Belford Roxo e uma mostra de cinema no centro do Rio de Janeiro podem ser parte de um mesmo circuito, pois o que caracteriza essa unidade analítica não é uma contiguidade espacial necessariamente, mas os encontros entre pessoas com interesses comuns e as relações construídas entre elas ao circularem com frequência pelos mesmos espaços.
25Esse formato trouxe como desafio metodológico o movimento, o acompanhamento de “corres” cinematográficos pela cidade, em ônibus, trens, bares, praças, sets de filmagem. Observar essas mobilidades, ao me mover junto com meus interlocutores, foi fundamental para a reflexão sobre o entrelaçamento entre movimento, representações e práticas, entendendo que “as formas como as pessoas se movem estão estreitamente imbricadas com as formas como as cidades são vividas” (Jirón, Imilán, 2018, p. 27). No contexto da pandemia de covid-19, as movimentações se deram por caminhos digitais, durante o isolamento social que levou à interrupção do meu trabalho de campo presencial.
26Embora o cineclubismo seja um fio importante de conexão, como sinalizado já no nome do filme que abordamos, o “Cineclubismo na BF”, a atuação dos coletivos vai além da organização de cineclubes. Suas atividades compreendem ações de educação, produção e difusão audiovisual, como já anunciei na introdução. A partir dessas frentes, são realizados produtos diversos e oficinas que dão origem a filmes, videoartes, clipes musicais, entre outras produções audiovisuais. A divulgação dos resultados desse trabalho acontece não só nos cineclubes, mas também na internet, em festivais de cinema e eventos culturais variados em diversas partes do Rio de Janeiro e do Brasil, já tendo ocorrido também algumas exibições internacionais. É esse emaranhado que compõe o circuito que segui para a realização da etnografia.
27Os integrantes dos coletivos que fazem parte desse circuito são muito variados, mas costumam ter algumas características em comum, não só entre eles como também entre realizadores de outras periferias. Um autor que nos ajuda a ter essa compreensão mais panorâmica é Guilhermo Aderaldo, a partir de seu trabalho de campo em São Paulo. Os perfis descritos pelo autor se relacionam com os dos participantes dos grupos com os quais interagi na Baixada e nos ajudam a fazer um retrato inicial deles:
A maior parte dos realizadores integrados nesses coletivos é formada por jovens na faixa entre os 18 e 35 anos, os quais, além do domínio técnico no manejo de instrumentos audiovisuais, são amplamente “conectados” e possuem um repertorio múltiplo de referências culturais e estéticas. Em geral, atuam profissionalmente –e de forma bastante precária e irregular–nas chamadas “profissões criativas”. Assim, se encontram constantemente disputando editais voltados ao financiamento de atividades culturais, ao mesmo tempo em que exercem funções como a de arte-educadores, cinegrafistas, editores de vídeo e fotógrafos, quase sempre a partir da prestação de serviços ocasionais a diferentes instituições ou a pessoas que podem contratá-los para pequenos trabalhos esporádicos. A despeito da precarização laboral, esses jovens fazem parte de uma geração que, de algum modo, se beneficiou de uma relativa melhoria nas condições de vida e na capacidade de consumo das camadas socialmente desprivilegiadas, por conta de um conjunto de mudanças políticas e econômicas que marcaram a história recente do país. Muitos, por exemplo, compõem a primeira geração de suas famílias a conseguir o ingresso em instituições de ensino superior (alguns, inclusive, em universidades públicas) (Aderaldo, 2017, p.76).
- 6 Até a conclusão deste artigo, o Baixada Filma reunia mais de 150 cineastas e 45 coletivos/produtora (...)
28A atuação precária e irregular da qual nos fala Aderaldo caracteriza esses realizadores tanto em âmbito coletivo como individual. Essa precarização motivou a organização dos grupos audiovisuais da Baixada em torno de uma rede ampla, com intuito de reunir algumas pautas comuns. A rede, chamada Baixada Filma, foi lançada naquela noite no Odeon e reúne até hoje os principais grupos e indivíduos envolvidos com a produção audiovisual na Baixada6. Mais do que uma rede, Baixada Filma é também um movimento a partir do qual são realizadas mobilizações conjuntas a fim de pressionar o poder público, além da organização coletiva de atividades e articulação de uma intensa rede de contatos e de apoio entre os seus participantes por meio da troca de informações sobre oportunidades profissionais e divulgação de editais, por exemplo. A seguir, veremos quais são as demandas e perspectivas do Baixada Filma e como elas nos provocam a refletir sobre a cidade. Para tanto, voltemos à noite de lançamento, naquele 8 de março de 2018, no Cinema Odeon.
29O lançamento do Baixada filma foi marcado por uma manifestação no Odeon. Depois da apresentação dos curtas, os realizadores subiram ao palco exibindo uma faixa reivindicando o que chamaram de “territorialização do audiovisual”. O cartaz indicava também o endereço do site do movimento que nascia ali.
Foto de manifestação do Baixada Filma no Odeon
Fonte: Facebook do movimento
30O Baixada filma foi, então, apresentado pela primeira vez ao público por meio da leitura de um manifesto, reproduzido na íntegra a seguir:
Caros seres audiovisuais do planeta,
Estamos no Recôncavo da Guanabara e temos um recado urgente e necessário pra mandar.
A Baixada Fluminense é, já há um bom tempo, um dos maiores polos de Produção Audiovisual do país.
Seu pulsante circuito de produção e difusão independente há décadas resiste e reinventa os modos de fazer cultura, botando na roda artistas, técnicos, produtores e trabalhadores da cultura que compõem o elenco das grandes produções fluminenses e nacionais.
A Baixada transmuta estigma em arte e nessa vibe, com tesão e sangue nos olhos, a produção audiovisual da região vem cheia de vigor nos últimos anos, com a ação de cineclubes, com realização de curtas, médias e longas-metragens, festivais nacionais e internacionais, oficinas potentes, videoclipes maneiros, youtubers que tiram onda, empresas produtoras que realizam com ânimo redobrado
Todos acumulando prêmios ao longo de sua história, garantindo reconhecimento à Baixada. São dezenas de filmes e centenas de milhares de visualizações na internet por ano.
A Baixada Filma.
Mas é chegada a hora de um papo reto, olho no olho.
A Baixada é rica, uma região com um dos maiores PIBs do país, mas em termos de investimento está sempre no final da fila. Não dá mais pra esconder essa realidade.
É preciso territorializar os orçamentos do Audiovisual, no Estado e na União. Recolhe-se muito imposto por aqui e o retorno? Praticamente zero.
É preciso um diálogo franco do MinC, da Ancine, da Sav, das Secretarias de Cultura com quem está na ponta do processo, no front pesadão do fazer cultural, sem os tapinhas nas costas e as promessas vazias que são o mais do mesmo.
É preciso que haja Políticas Públicas concretas que dêem conta dessa potência – redefinindo a noção de investimento e de formação, garantindo os direitos dessa população que filma, produz, difunde, pensa e faz viva a identidade cinematográfica da Baixada fluminense.
Esse é o recado franco e direto a quem tem canetas na mão e espaços nos jornais e gabinetes: queremos ações concretas já.
O Rio de Janeiro é mais que a cidade do Rio de Janeiro.
A Baixada filma.
31Esse texto foi amplamente divulgado posteriormente na internet e contou com mais de 200 assinaturas de integrantes e apoiadores do movimento7. A extensa lista de realizações e de realizadores audiovisuais que ele traz é parte da apresentação do que é nomeado como um “circuito de produção e difusão independente existente há décadas na Baixada”, descrita como um dos maiores polos de produção audiovisual do país. Esse acúmulo, que já foi tema de diversas pesquisas, relatórios e notícias, é o que se busca enfatizar no lema “a Baixada filma”, como afirmação da agência de produtores de imagens e representações da cidade.
- 8 O cenário para as políticas culturais piorou muito entre 2018 e 2022, diminuindo, e mesmo impossibi (...)
32Essa elaboração desemboca em uma frase que parece sintetizar o conteúdo do manifesto: “o Rio de Janeiro é mais que a cidade do Rio de Janeiro”. Seu sentido mais explícito é a ideia de que o Rio de Janeiro não é só o centro e seus arredores, daí a reivindicação por políticas públicas, a chamada territorialização do orçamento, o que pressupõe o reconhecimento de que a Baixada também filma, produz cultura e merece, portanto, investimento8. Mas a frase que ecoa ao final do manifesto traz como subtexto outras camadas mais subjetivas que estão para além de apenas uma distribuição orçamentária e envolvem um debate mais amplo sobre a cidade. São elas que eu gostaria de explorar aqui.
33A ideia de que arte, cultura e lazer não são, ou não deveriam ser, exclusividade dos grandes centros urbanos diz muito sobre a história do movimento audiovisual da Baixada e revela como o seu surgimento está relacionado a disputas pelo direito à cidade (Lefebvre, 1991, Harvey, 2014). A necessidade de ir para o centro do Rio para o consumo de certos produtos e experiências culturais é um ponto de partida fundamental para a criação e divulgação de alternativas culturais, como observado por um dos idealizadores do Cineclube Mate com Angu, Heraldo HB:
é muito doido, cara, um dos dilemas fodas é que você encontrava todo mundo da Baixada no Rio. Eu sempre zoava isso, que ia chegar no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) dando o maior gritão "qual é, doente, qual é, Caxias!". Mó galera se encontrava lá e não se encontrava aqui. Então, o Mate também foi um farol de trazer as pessoas pra cá, pessoas daqui pra cá9.
34Morar na Baixada e frequentar o centro do Rio de Janeiro não é algo trivial, seja para trabalho, educação ou lazer. Os deslocamentos na metrópole são realizados em condições precárias, marcados por problemas como a falta de regularidade, o desconforto das viagens, incidentes, engarrafamentos e tarifas cada vez mais inacessíveis para parte da população (Rodrigues; Bastos, 2022). A situação se agrava nos finais de semana e feriados, quando há um maior tempo de espera pelo transporte público.
35A busca por atividades culturais no centro é, em parte, reflexo da baixa oferta de equipamentos culturais nas periferias. Na área do audiovisual, isso se revela na distribuição das salas de cinema, que, na Baixada, estão localizadas majoritariamente em shoppings centers, onde a programação de filmes é bastante restrita, basicamente comercial. Algumas cidades da região não possuem nem mesmo essa opção. É o caso de Belford Roxo, Magé, Guapimirim, Mesquita, Queimados, Japeri e Seropédica, conforme mostra o mapeamento realizado em 2020 pela Casa Fluminense, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro:
Mapa da Desigualdade 2020
Fonte: Casa Fluminense
36Esse tema já foi objeto de questionamento de uma produção do Baixada Cine, coletivo de Belford Roxo, que, diante da ausência de salas de cinema no município, formulou em um de seus filmes a seguinte questão: o que é cinema de periferia? Ao longo do curta em que a pergunta é apresentada, fica evidente que a intenção é menos respondê-la e mais deixar que ecoe e reverbere em novas questões.
Cena do filme “Cinema do futuro: minha verdade seja dita”
Fonte: YouTube do Baixada Cine
37O dilema de morar em um lugar e desfrutar de produtos culturais quase que exclusivamente em outro é apresentado com espanto: “galera se encontrava lá e não se encontrava aqui”, como vimos na declaração de HB. Essa dimensão do encontro é uma questão-chave para a nossa reflexão. Em tempos de tanta facilidade de acesso às mais diversas produções audiovisuais por meios digitais e plataformas de streaming, o que leva alguém a sair de casa para ver um filme hoje em dia? Ainda faria sentido investir em espaços de exibição cinematográfica? Na Baixada, vemos que o sentido está nos encontros que o audiovisual pode promover.
38Se nas salas de cinema tradicionais, há, em princípio, uma proposta de imersão solitária e silenciosa, nos cineclubes a ideia é fazer do cinema um motivo para a interação, o que é estimulado pelos próprios locais de realização das sessões, em geral, bares, centros culturais, praças e até mesmo o quintal de alguém. A dinâmica envolve, portanto, não só a exibição como também o debate sobre o que foi visto, que frequentemente se desenrola em diversos outros assuntos e na construção de relações, projetos, amizades. Esses eventos não se restringem a exibições audiovisuais e a debates intelectuais sobre cinema. As sessões contam também com momentos de música e outras intervenções artísticas, como slam de poesia e encenações teatrais, seguidas de celebrações pelos bares da vizinhança. Há, portanto, a afirmação da cidade como espaço a ser desfrutado, celebrado.
39Em busca desses locais de encontro, aqueles que há algum tempo frequentavam a cena cultural do Rio de Janeiro passaram a organizar atividades culturais diversas na Baixada, dentre as quais teve destaque o audiovisual, frequentemente descrito como uma “vocação” da região. Essas motivações coincidiram com um contexto relativamente favorável de maior popularização dos dispositivos de comunicação e aumento do investimento público em políticas culturais, como percebido pelo próprio HB:
Quando a gente começa, em 2002, a gente vê que o fenômeno da digitalização possibilitou que gente de todo o mundo começasse a ter a mesma ideia: a de que agora a gente pode postar a nossa cara, fazer um filme com nossa cor de pele, nosso tom de voz, nossos monumentos, nossas ruas, a poeira de quando um ônibus passa no nosso bairro, a lama, os problemas, aquele sanfoneiro ali, a rezadeira, incontáveis histórias. O audiovisual sempre foi o território da galera classe média alta, era caro, mas naquele momento fomos começando a sacar que o audiovisual permitiria também a gente contar as nossas histórias (Heraldo HB, integrante do cineclube Mate com angu, durante participação no Festival do conhecimento da UFRJ, 2020)10.
40 Como se vê, está em jogo a possibilidade de viver tempos mais dilatados em periferias experimentadas não só como lugar de passagem, mas também de parada, de permanência, de observação, passíveis de serem desejadas como matéria-prima para produção de arte e de encontros. Essa busca não é só pelo acesso a determinados bens culturais, mas também pelo direito de produzi-los.
41Fazer da cidade cenário e objeto de fabulações e exibições audiovisuais é algo que esbarra necessariamente nos limites e possibilidades de circulação pelo ambiente urbano. “Circular livremente pelas ruas é uma prática fortemente associada às cidades modernas” (Caldeira, 2014, p.13), mas que não vale igualmente para todos. A circulação motivada pela experimentação artística e busca por diversão é historicamente objeto de escrutínio e criminalização quando protagonizada por grupos menos privilegiados da sociedade. Nesse tipo de contexto, o circular e o parar em certos pontos são atividades que demandam um planejamento que em nada se parece com as idealizações de um livre flanar espontâneo pela cidade.
42Em geral, as sessões de cineclube acontecem à noite e terminam em horários em que a volta para casa nem sempre é simples ou segura, pois é comum a ausência de ônibus e a dificuldade de acesso a meios de transportes na Baixada a partir de determinado turno. O cineclube Mate com Angu tentava driblar esse problema incluindo em suas despesas o aluguel de transporte, como forma de incentivar uma presença mais relaxada em suas sessões, que costumam ser seguidas de festas, estimulando, inclusive, a ida de pessoas de fora da Baixada, como mostra o convite a seguir:
Texto de divulgação da Sessão Cabaré Fim do Mundo, ocorrida em 15/02/2012
Fonte: site do Mate com Angu11
43Pensar o Rio de Janeiro como mais do que a cidade do Rio de Janeiro implica, portanto, não só a possibilidade de ver um filme ou produzir um videoclipe na Baixada Fluminense. Significa, sobretudo, poder vivê-la, de forma ativa, com temporalidades mais alargadas, ter a possibilidade de sair pela cidade em bando para dela extrair histórias. Tomar, enfim, o urbano como ponto de interrogação e de encontro, janela para outras realidades, próximas e distantes.
44A partir da experiência de coletivos da Baixada Fluminense, busquei demonstrar como circuitos de produção e difusão audiovisual impactam não só em processos de representação, mas também de circulação pela cidade. Frequentar certos lugares e consumir determinados produtos culturais são parte de processos de construção de gostos, subjetividades e de vinculação a grupos sociais. Nesse sentido, os coletivos audiovisuais da Baixada são produtores de sociabilidades e estilos de vida ao produzirem localidades (Appadurai, 1996) que colocam em xeque a exclusividade do centro e da Zona Sul do Rio de Janeiro como únicos detentores de uma vida urbana pulsante e criativa. Ao lutarem pelo direito à cidade, eles expandem as fronteiras do urbano e fazem, eles próprios, a cidade. Nos termos de Agier:
O fazer-cidade deve ser entendido como um processo sem fim, contínuo e sem finalidade. Ele faz sentido no contexto de uma expansão contínua dos universos sociais e urbanos. Eis porque parece possível elaborar a hipótese teórica (e a aposta política) segundo a qual o fazer-cidade é uma declinação pragmática, aqui e agora, do “direito à cidade”, sua instauração. O movimento é essencial nesta concepção da cidade como construção permanente (Agier, 2015, p. 491).
45 Essa construção envolve outras formas de imaginação da cidade, em que a ideia de periferia aparece como algo mais próximo de “uma posição política do que de uma origem social e identitária, pura e simplesmente” (Aderaldo, 2017, p.83). Estamos diante de um processo de enraizamento nessa periferia, no sentido da afirmação de certas raízes e do desejo de cultivá-las, o que não significa imobilidade e restrição. Pelo contrário, está em jogo “o desejo de circular, de conquistar a cidade, de forçar limites (Caldeira, 2014, p.15)”.
46Como observado por Caldeira (2014, p.15), “os jovens das periferias cada vez circulam mais, não para ir humildemente ao trabalho, como sempre fizeram os trabalhadores, mas para se divertirem” e para produzirem suas próprias referências culturais, podemos acrescentar. Esse é um grande desafio, no entanto, em cidades estruturadas para reproduzirem segregação e desigualdade. Se a cidade é movimento, como afirma Agier (2015), é preciso a garantia de condições dignas para essa movimentação que faz do urbano um laboratório para o desenvolvimento de inúmeras potências.