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Dossiê "Estéticas engajadas e cidade: reflexões sobre ativismos, sociabilidades e representações políticas num mundo em crise"
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Experiência urbana gay afeminada e modos de resistência na cidade contemporânea

Effeminate gay urban experience and modes of resistance in the contemporary city
Victor Hugo Belarmino, Magda Dimenstein e Jáder Ferreira Leite

Resumos

No Brasil, a afeminação é o principal marcador usado para identificar a homossexualidade masculina, contudo os estudos de gênero/sexualidade não tomam a afeminação e os elementos a ela associados como uma categoria analítica decisiva, sobretudo no recorte das experiências urbanas. Neste artigo, objetivamos compreender os modos de opressão vividos e os modos de resistência de homens gays afeminados na cidade contemporânea. Para isso, realizou-se com gays afeminados, 8 entrevistas semiestruturadas e, posteriormente, um grupo de conversa com 5 outros participantes. Os resultados apontam para a relevância da compreensão interseccional dos marcadores da diferença, visto que ser negro, pobre, jovem e periférico funcionam como vetores da precarização da experiência urbana de homens gays afeminados, fazendo-os enxergar a cidade de forma temerosa e violenta. Contudo, os movimentos micropolíticos individuais e coletivos de autoafirmação, confrontamento e desobediência normativa sobre as expectativas de gênero e sexualidade abrem novas possibilidades de existência na cidade.

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Notas da redacção

Versão original recebida em / Original version 05/01/2023

Aceito em / Accepted 17/04/2023

Texto integral

Introdução

1A discussão proposta nesse artigo partiu de uma tese de doutorado, desenvolvida entre os anos de 2019 a 2023, que realizou um conjunto de análises e discussões em torno da experiência urbana de homens gays afeminados na cidade do Natal/RN. Este artigo toma como base os resultados gerais dessa investigação, ajustando as lentes analíticas sobre os modos de opressão vividos e os mecanismos de resistências e de luta micropolíticas que homens gays afeminados desenvolvem para ter sua existência e seus direitos reconhecidos na cidade contemporânea.

2Por “homens gays afeminados” entende-se a vivência, intencional ou não intencional, de um conjunto de comportamentos, trejeitos e estilos socialmente engendrados como relativos ao universo feminino por homossexuais masculinos (Rezende; Cotta, 2015). Contudo, a simples descrição sumária do termo “homem gay afeminado” não dá conta de todas as repercussões negativas vivenciadas por pessoas que se identificam ou são identificadas dessa forma – como, por exemplo, as diversas nomeações pejorativas atribuídas ao gay afeminado: “bicha pão com ovo”, “viadinho”, “poc poc”, “bichinha”, “marica”, “desmunhecado”. Portanto, é necessário contextualizar o uso do termo “afeminado” – o qual não deve ser entendido como um sinônimo de “gay”.

3Como apontara Torrão Filho (2005), o estigma que recai sobre o gay afeminado faz um paralelo ao fenômeno da misoginia – ou seja, o ódio, aversão e inferiorização das mulheres/do feminino – e às assimetrias resultantes de um modo de organização do gênero de forma binária, assimétrica e hierárquica. Segundo o autor, dentro desse sistema normativo binário – de imposição da heterossexualidade e da racionalidade pautada numa suposta coerência sistemática entre sexo, gênero, prática sexual e desejo –, ser gay e afeminado é entendido como algo abjeto, não atrativo, indigno e hierarquicamente inferior. Nesse mesmo sistema normativo binário, por vezes, a afeminação também é associada a uma dada posição sexual, reduzindo uma complexa expressão de gênero ao fato de ser ou não ser penetrado durante uma relação sexual. Nesse artigo, todavia, tomaremos a afeminação como uma expressão complexa de gênero e de sexualidade, a qual ora se amarra, e ora de desprende dos padrões normativos de gênero e sexualidade socialmente disponíveis.

4No cenário brasileiro, a relevância dessa discussão se justifica uma vez que, apesar de a afeminação funcionar como o principal marcador para identificar a homossexualidade masculina, “criando uma patrulha implacável em busca de gestos, tom de voz, aparência, sensibilidade, forma de andar e diversos outros elementos tidos como expressões de gênero” (Ramos; Cerqueira-Santos, 2020, p. 166), esse ainda é um tema que tem recebido pouca atenção dos estudiosos que não tomam a afeminação e os elementos a ela associados como uma categoria analítica decisiva no campo de estudos sobre dissidências sexuais e de gênero (Ramos; Cerqueira-Santos, 2019), escassez ainda mais evidente no recorte dos estudos urbanos e regionais acerca da experiência urbana (Belarmino; Dimenstein, 2021).

5Em nosso estudo, três eixos foram centrais na discussão sobre a experiência urbana gay afeminada: cotidiano, sociabilidade e isolamento social na pandemia da Covid-19. Sobre estes aspectos, evidenciou-se que no cotidiano, a experiência sensível mais comum de homens gays foi o medo de circular pela cidade, motivado pela possibilidade de olhares de reprovação, piadas, agressões verbais, ameaças e violências (Belarmino; Dimenstein; Leite, 2022). Tais constrangimentos foram vivenciados mais intensamente por gays afeminados, ressaltando a afeminação como um fator de vulnerabilização desses sujeitos no espaço urbano.

  • 1 Neste artigo, será utilizada a sigla LGBTQIA+ para representar as minorias sexuais e de gênero, seg (...)

6A pandemia, ao forçar a reclusão domiciliar junto às suas famílias homofóbicas, sobretudo, afeminofóbicas, agravou as adversidades que os atingiam e enfraqueceu os laços de apoio com a comunidade LGBTQIA+1, os quais serviam de suporte frente ao sofrimento psíquico vivenciado por esses sujeitos antes e durante o confinamento. Sabe-se que as minorias sexuais e de gênero experimentam vulnerabilidades prévias e sofrimentos crônicos relativos ao preconceito, homofobia e discriminação que marcam seus cotidianos (Garrido; Rodrigues, 2020).

7Sobre as sociabilidades gays, desvelou-se que as vivências na cidade não são homogêneas, visto que determinados marcadores sociais como ser ou não afeminado, o status financeiro, ser negro, morar na periferia e ser jovem, interferiam no modo como experienciavam a cidade (Belarmino; Dimenstein; Leite, 2022). Dessa maneira, marcadores sociais da diferença como raça, classe, local de moradia, renda, geração e afeminação se articulam à experiência urbana desses sujeitos e às suas vivências nos espaços da cidade.

8Contudo, nesse artigo, pretendemos dar um passo adiante e explorar mais detidamente os mecanismos de controle sobre as performances gays afeminadas e, sobretudo, as estratégias, as táticas de enfrentamento e de luta micropolíticas que homens gays afeminados manejam para contornar e confrontar os mecanismos de gestão de seus corpos na cidade. Com os resultados de nossa pesquisa pretendemos demonstrar que os gays afeminados, ao se imporem na cidade, constroem modos de vida que não apenas resistem ao perecimento, mas contestam, disputam e lutam pelo reconhecimento da singularidade de seus corpos e performances. Para chegar nesse ponto, iniciaremos por uma breve discussão sobre cidade e experiência urbana na contemporaneidade.

Entre o local e o global: cidade e as experiências urbanas na contemporaneidade

9Natal, capital do Rio Grande do Norte, cidade-lócus da pesquisa, é importante centro turístico e econômico do Nordeste do Brasil, com uma forte indústria de serviços e comércio. Tal como outras cidades nordestinas tem enfrentado nas últimas décadas problemas relacionados à gentrificação, turistificação e revalorização de alguns espaços urbanos (Alverga, 2011). Esses processos, de acordo com Rena e Berquó (2014) estão associados à segregação social observada em áreas urbanas de interesse do mercado, as quais vêm sendo utilizadas em prol de uma política que visa à substituição do público que frequenta, habita e utiliza determinadas regiões por pessoas de classes mais abastadas e privilegiadas.

10Nesse sentido, Natal/RN experimenta processos de transformação e requalificação urbana que levam à expulsão de corpos indesejáveis de certas áreas da cidade, que produzem desigualdades no acesso aos espaços públicos, que impactam na sua permeabilidade à diversidade e nas relações de sociabilidade entre seus moradores. Tal como as cidades latino-americanas de forma geral, Natal/RN faz parte do cenário de globalização da economia e apresenta elementos comuns a outras cidades inscritas em uma rota turística global, cidades que registram impactos sócio-urbanos semelhantes vinculados à especulação turística, a saber: “financeiro (especulação imobiliária e aumento do preço das propriedades), social (despejos, saturação do sistema de transporte público) e funcional (transformação simbólica e comercial)” (Cerqueira, 2021, p. 4).

11Por meio desse processo de gentrificação turística, para além do avanço da privatização e restrição dos usos dos espaços públicos, da conformação de uma cidade segregada e homogênea, Natal/RN tornou-se uma cidade associada à fruição e ao prazer em sua plena magnitude, justamente pela possibilidade de vivência de uma experiência de felicidade, entendida como o não encontro com a alteridade, com a diferença, ou qualquer elemento que possa causar mal-estar ou desconforto ao seu visitante (Alverga, 2011).

12Em seus estudos sobre a vida nas cidades, Sennet (2001) destaca que o individualismo moderno, a cidade geometricamente esquadrinhada e a logística da velocidade estão relacionados ao desprezo das diferenças e a consequente valorização do individualismo, da homogeneização e do aceleracionismo – lógicas que beneficiam um público específico, restrito e privilegiado, neutralizam e padronizam tanto os corpos quanto os espaços. Busca-se, portanto, uma cidade com menos excitação e mais comodidade, o empobrecimento da experiência urbana e a aniquilação do que possa parecer confuso, ambíguo e causem “mal-estar” aos que se inscrevem dentro dos padrões de desejabilidade e de normatividade.

13Os corpos gays afeminados são uma dessas fontes de “mal-estar” na cidade, visto que têm potencialidade para desconstruir os espaços homogêneos, contestar os lugares reservados aos que escapam das normas de gênero e sexualidade e instituir pertencimentos para os indesejados que não encontram lugar na cidade. A discriminação e a violência baseadas na orientação sexual e identidade de gênero são problemas graves e generalizados, refletidos nos altos índices de violência física, assédio, discriminação no emprego, na escola, no acesso a serviços e aos espaços da cidade, de violação de direitos e da falta de proteção institucionalizada (Bordiano et al., 2021).

14Assim, para se compreender como as experiências urbanas de gays afeminados na cidade são produzidas e vivenciadas, especialmente no caso de Natal/RN, o primeiro passo é considerar esses aspectos ligados à produção da cidade contemporânea e à gentrificação turística, os quais devem ser considerados como base dos processos que guetificam, segregam e periferizam as pessoas consideradas de “segunda classe”, sobretudo, negras, pobres e periféricas. O segundo passo na direção desse entendimento é analisar também as construções sociais de sexo-gênero e da performatividade dos corpos nos espaços, ou seja, reconhecer que os espaços da cidade são sensíveis às instituições sociais (Frangela; Rui, 2017), instituições essas comumente movidas pelo desprezo às diferenças, pelo individualismo, moralismo e, portanto, comprometida às lógicas normalizadoras, homogeneizantes e empobrecedoras das experiências urbanas.

15Significa entender que não somente muros visíveis impedem que a diferença efetivamente possa habitar a cidade. Segundo Venturini (2009), muros invisíveis separam as pessoas e as camadas sociais, gerando um “apartheid dos diferentes” (p. 209). Nas palavras desse autor: “a razão gostaria de limpar a cidade, homogeneizando seus múltiplos odores e ruídos em uma dimensão desvitalizada e controlável” (Venturini, 2009, p. 206), sentido sustentado pelos repertórios discursivos que associam os sujeitos da diferença aos protótipos de perigo e de ameaças à cidade. De outra perspectiva, o autor valoriza as práticas de reinvenção do cotidiano: práticas que ganham materialidade quando o corpo se move na cidade e exprime a concretude de suas necessidades e direitos.

16O direito à cidade se efetiva quando se viabilizam essas necessidades sociais pelas quais as experiências urbanas têm a potência de transformar a cidade num “lugar de encontro, prioridade do valor de uso, inscrição no espaço de um tempo promovido à posição de supremo bem entre os bens, encontre sua base morfológica, sua realização prático-sensível” (Lefebvre, 2008, p. 118). Para isso é fundamental tomar o corpo como instrumento de transformação – de acordo com Butler (2018), os corpos precários terem o direito de aparecer em público, produzirem suas performances e tornarem evidente suas existências também é um modo potente de reivindicar o direito à cidade. Essa ideia vai na mesma direção do conceito de “contra-usos”, sugerido por Leite (2002) enquanto desobediência e transformação, de um espaço originalmente moldado privilegiando as práticas econômicas e simbólicas de consumo e lazer, em um espaço político de visibilidade pública e contestação.

17É preciso, pois, viabilizar a dimensão existencial dos espaços urbanos como provocara Certeau (1994), investindo na possibilidade de se fazer nos espaços, escapando das totalizações da cidade. Nesse sentido, a cidade enquanto empreendimento humano comporta virtualidades, possibilidades de experimentação do corpo e de modos de vida singulares (Santos; Lago, 2015). De acordo com Leite (2002) formas de “criar singularidades, expressar dissensões e reivindicar direitos. Direitos de pertencer à cidade, de estabelecer itinerários próprios, de fazer do espaço público contemporâneo, enfim, um legítimo espaço político da diferença” (p. 130).

Algumas considerações metodológicas da pesquisa

  • 2 Tal como na questão racial, optamos por abordar a identificação enquanto homem gay afeminado pela v (...)

18A investigação foi realizada em três etapas com uso de recursos metodológicos distintos na perspectiva da triangulação metodológica: questionário online (240 homens gays), entrevistas remotas (8 gays afeminados) e grupo de conversa (5 gays afeminados). Para este artigo consideramos majoritariamente os dados das duas últimas etapas, visto que são nessas que são refletidos com mais clareza os modos de opressão/de resistência que são de nosso interesse abordar neste artigo. Nas entrevistas e no grupo de conversa, os participantes eram majoritariamente jovens, negros, que se autoidentificavam2 afeminados e residiam em bairros periféricos da cidade.

19As entrevistas virtuais foram realizadas em março de 2021, as quais exploraram questões relativas ao cotidiano dos sujeitos gays afeminados na cidade (atividades desempenhadas, circulação urbana, como se sentem, histórico de discriminação, preconceito, homofobia e violência, racismo e estratégias de enfrentamento), à sociabilidade entre gays e na comunidade LGBTQIA+ (espaços urbanos importantes no processo de se descobrir gay, espaços usados para encontrar-se, como funcionam os espaços, aspectos que interferem na escolha e permanência, histórico de discriminação, preconceito, homofobia, violência e racismo) e os efeitos da pandemia na experiência urbana e na saúde mental desses sujeitos (impactos no cotidiano e na sociabilidade com outros gays/comunidade LGBTQIA+, impactos na saúde mental, estratégias de autocuidado, apoio social, virtualidade). Tiveram duração média de uma hora, foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas.

20Já em 2022, com o abrandamento das restrições e com o processo avançado de vacinação, foi possível realizar a terceira etapa, que consistiu em grupos de conversa – técnica de pesquisa que tem muita potencialidade para compreender percepções, crenças, atitudes sobre um tema. O roteiro utilizado no grupo de conversa procurou compreender que elementos controlam e oprimem a homossexualidade e, mais especificamente, a afeminação; como a cor/raça interfere na forma como sofrem preconceito/violências/homofobia/discriminação/afeminofobia; o que potencializa mecanismos de resistência e enfrentamento; e os modos formais e informais, individuais e coletivos, que esses sujeitos desenvolvem para enfrentar as opressões sofridas ao circularem na cidade. O grupo de conversa também foi gravado em áudio e posteriormente transcrito para análise.

21Os dados qualitativos foram analisados utilizando-se a técnica de Análise Temática (Souza, 2019), a qual consistiu nos seguintes passos: transcrição, familiarização e codificação dos dados, busca e revisão dos temas à luz da literatura especializada, consolidação dos temas e dissertação dos resultados.

22A presente pesquisa seguiu os parâmetros éticos previstos na Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510/2016, que trata das pesquisas envolvendo seres humanos, foi submetido ao Conselho de Ética em Pesquisa da UFRN (CEP-UFRN) e recebeu parecer favorável à sua execução (CAAE: 38143220.7.0000.5537).

Afeminação gay e os mecanismos de opressão na cidade

23Compreender os mecanismos de controle/vigilância/tutela/opressão sobre os corpos gays afeminados na cidade implica em seguir o rastro analítico deixado por Foucault (1998) e pensar para além da dicotomia interdição-permissão, e levar em consideração “quem constrói, onde é formulado e qual o ponto de vista dos discursos que versam sobre o tema” (p. 16). A partir dos relatos de nossos participantes significa compreender alguns aspectos que fazem parte dos mecanismos de controle dos corpos gays afeminados: sociedade/família/religião (imposição de um padrão a ser seguido), hetero/homonormatividade, afeminofobia (interseccionado ao racismo e a outros modos de estigmatização), julgamentos e violência (desde violência verbal até a perseguição/ameaça concreta nos espaços públicos), a percepção de “vazios” urbanos e de perigo à espreita nas ruas.

24Os dados levantados em nossa pesquisa reforçam a importância da lente interseccional e dos marcadores sociais da diferença na compreensão da experiência urbana gay, visto que gays afeminados, pobres, negros, periféricos e jovens mostraram experienciar maior grau de vulnerabilidade nos encontros com a/na cidade, vivenciando-a de forma mais negativa e temerosa, sobretudo nos espaços públicos (Belarmino; Dimenstein; Leite, 2022).

Eu soube que tinha gente “importante”, que morava nas casas ao redor da praça, e chegou num momento que essas pessoas se sentiram incomodadas com os gays lá, se beijando, ficando, bebendo, conversando, escutando música, o que fosse. As pessoas que moravam naquelas casas não gostavam desse tipo de coisa, e começaram a ficar pressionando a polícia pra ficar batendo lá, e tendo apreensão, baculejo [revista policial], esse tipo de coisa. No fim acabou por conta disso, da pressão dessas pessoas que moravam lá. Inclusive, aconteceu de, numa dessas vezes que eu fui, de ter batida da polícia, e eles foram agressivos, mal-educados – se bem que isso já é um comportamento esperado da polícia, né? Mas eles foram mais ainda. Aí o pessoal foi se dispersando, deixando de ir pra lá por conta disso. Ali era rodeado de casas de “gente burguesa”, então era esperado que isso fosse acontecer (Participante 8, 24 anos, branco, entrevista).

25O peso dos marcadores sociais na experiência urbana e na diferenciação dos modos opressão na cidade são aspectos que vêm sendo discutidos na literatura científica, em torno de dois eixos: (1) gestão das diferenças na cidade; e (2) homossociabilidade e fragmentação das experiências urbanas. O primeiro aborda a articulação entre os processos de generificação-gentrificação dos espaços e os marcadores sociais da diferença. Assim, os espaços públicos, estabelecimentos comerciais/de consumo/de lazer e ambientes virtuais apresentam diferentes graus de abertura à presença das diferenças. O segundo explora as relações homossexuais mediadas por normas sociais e relações de poder, revelando uma homossexualidade hierarquizada em diferentes níveis de prestígio e desejabilidade, em que os gays negros (“o cafuçu”), afeminados (“a bichinha”), pobres (“bicha pão com ovo”) e velhos (“a maricona”) ocupam a base dessa pirâmide (Belarmino; Dimenstein, 2021).

26Nossa pesquisa evidenciou que esses marcadores da diferença também se associam à vivência de sofrimento psíquico, sobretudo no período de isolamento social que caracterizou a pandemia, visto que aqueles que constituem a base da pirâmide social são mais vulneráveis e dependentes da família de origem (por serem pobres e jovens) e mais afetados pelo peso das desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Ou seja, a intersecção entre localização geográfica/desigualdades regionais, raça, expressões de gênero e condição socioeconômica são importantes determinantes das iniquidades em saúde mental entre a população LGBTQIA+.

Eu acredito que [a pandemia agravou o sofrimento mental] sim, os ambientes que eu me sinto confortável geralmente são os ambientes que estou com meus amigos. O ambiente de casa é heteronormativo, no trabalho da mesma forma. E durante a pandemia meus lugares eram esses: minha casa e meu emprego [remoto], e eu não podia ser eu mesmo nesses dois. Então acaba que ficou bem mais pesado, você não se sente confortável em todos os ambientes que você está participando. Tem pessoas que me forçam a ser heteronormativo, tipo meu pai, então qualquer espaço em que ele esteja inserido eu não vou me sentir confortável (Participante 3, 21 anos, branco, entrevista).

27Outro importante achado indica que os espaços privados onde é necessário pagar/consumir para acessar e permanecer parecem mais seguros e são mais usados por um público gay sênior, masculinizado, branco, com mais renda e moradores de regiões mais abastadas da cidade. Os espaços públicos e privados onde não há necessidade de pagar/consumir para acessar e permanecer, ainda que se voltem para o consumo (como é o caso dos shoppings centers) e pareçam mais inseguros e vazios, são mais usados pelo público gay jovem, afeminado, negro, pobre e periférico, visto que são um dos poucos espaços que esses sujeitos encontram disponíveis para circular na cidade.

  • 3 Para identificar a raça/etnia/cor dos participantes, seguiu-se o critério de autodeclaração, seguin (...)

Normalmente, quando eu vejo que o ambiente tá muito vazio, aí eu tendo a ter mais receio, porque se for acontecer alguma coisa as chances de eu pedir ajuda é menor. O shopping é um canto que eu me sinto acanhado, mas é onde eu me sinto bem à vontade, porque está sempre cheio. Se for acontecer algo, eu sinto que tenho mais chance de encontrar apoio, até porque o público do shopping é bem diversificado e penso que talvez alguém pudesse me ajudar, se precisar. Mas, isso não acontece com rua, por exemplo, porque nem sempre tem muita gente as situações mais complicadas foram na rua e nunca houve nenhum apoio. As pessoas não costumam parar pra ajudar (Participante 6, 20 anos, pardo3, entrevista).

28Observamos que entre os gays encontram-se instituídos na cidade espaços destinados aos indivíduos de “primeira” e de “segunda” classe. Na primeira classe estão os de classe média/média alta, brancos, que relacionam o poder aquisitivo aos sentidos de “tolerância à diversidade”, informação e “cultura” (Reis, 2017). A cidade que se abre para esses sujeitos é aquela cujo acesso depende de um certo padrão de consumo – cidade mediada pelo lazer/divertimento, consumismo, fruição e cosmopolitismo. Os sujeitos de segunda classe, por sua vez, são compelidos aos lugares de menor prestígio, menor segurança e menor comodidade. Esse modo de acesso à cidade atravessada pela condição de classe, renda e raça, direta e indiretamente, se torna uma chave de leitura necessária ao entendimento da cidade que festeja a diversidade, a tolerância e a pluralidade, ainda que, na maior parte do tempo e dos espaços, reforce mecanismos de dilaceração das diferenças (Belarmino; Dimenstein, 2021).

29Desse modo, determinados lugares da cidade interditam o acesso a quem não se encaixa, sobretudo quando se é gay afeminado, visto que essa performance eclipsa outros marcadores, fazendo com que orbitem em torno da generificação mais feminina: “Ser mais pobre, menos desejável, é ser afeminado. Ser mais negro, menos desejável, é ser afeminado. Ser de um bairro distante, menos desejável, é ser afeminado. Estar num bar ao lado, mas conter tais marcadores, é estar na periferia” (Puccinelli, 2014, p. 117). Assim, considerando que o gay aceitável aos olhos da sociedade é o gay que não aparenta ser gay, os gays afeminados amargam a posição de abjeção da abjeção, tornando-os mais suscetíveis a sofrerem ameaças, julgamentos e violências na cidade.

Porque eu sei que vai vir um julgamento e eu tenho muito medo. Então, assim, você estar com um grupo de amigos é uma coisa mais fácil de você estar mais afeminado, estar de shortinho ou alguma coisa assim. Agora, quando você anda só, é uma coisa totalmente diferente, porque você não sabe o que vai acontecer na próxima esquina, está entendendo? Qualquer pessoa pode chegar e te bater e as outras pessoas ficarem só olhando e não resolver nada, como aconteceu com ele [outro integrante do grupo de conversa], está entendendo? Então, é uma coisa bastante complicada (Participante 5, 18 anos, preto, grupo de conversa).

30Butler (2003) refere que o abjeto caracteriza aquelas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social, onde se concentram aqueles que não gozam do direito à existência e, por que não dizer, do direito à cidade. Sobre o direito à cidade, Lefebvre (2008) ressalta que este se manifesta como uma forma superior dos direitos: o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. Está intrinsecamente associado aos ideais de liberdade, igualdade e com a participação de todos na vida urbana. Contudo, o direito à cidade é precariamente concedido ou mesmo negado aos gays afeminados, em razão da inferiorização, desqualificação da afeminação e da afeminofobia que sofrem – ou seja, a rejeição/negação do feminino no corpo masculino, com base na norma performativa hegemônica.

Aí, eu fiz a denúncia, ela [profissional da equipe da casa-abrigo] disse: você está de parabéns, você foi a primeira pessoa que fez a denúncia de homofobia aqui dentro, tal, né. E aí esse usuário que me agrediu foi expulso de lá. Só que quando ele foi expulso de lá, ele ficou lá na frente da porta, esperando eu sair, para “pegar” [agredir] eu na rua. E aí estava pedindo alguma segurança à equipe: “E aí, como vou estudar? Como vou sair para resolver alguma coisa?”. E aí, ele disse: “Não, fica tranquilo que não vai acontecer nada com você”; “Vai não? Ele está ali fora me esperando”. E aí quando ele saiu dali da frente eu fui correndo, andando, não tinha um segurança, não tinha uma pessoa ali comigo. Não tinha. Eu fui correndo, andando e olhando para trás, eu peguei o celular na mão para ver se eu tinha como ligar para a equipe, ele estava vindo atrás de mim (Participante 2, 21 anos, preto, grupo de conversa).

31Além da heteronormatividade, o racismo sofrido pelos corpos gays e negros se materializa por meio de humilhações, as quais reforçam a sensação de inadequação, marginalidade, desvalor e desamparo na cidade (Cunha; Vieira, 2022). O estigma associado às pessoas pretas, pobres e periféricas e a vinculação entre pobreza, raça e menos valia são aspectos psicossociais que servem para a manutenção dos poderes hegemônicos e segregação na cidade. Isso não pode ser descolado, tal como referem Dimenstein et al. (2020), do padrão dominante de cidade, a qual é atravessada pela articulação entre desigualdade, sub- cidadania e subjetividade.

  • 4 A afirmação “Eu sou uma mulher”, nesse contexto de fala, não significa uma identidade de gênero, e (...)

Ei, o que eu fico passado é como é que o povo tem medo de uma bicha como eu. Menina, eu andando aqui o povo se escondendo. Tinha um homem ali se escondendo, ele me viu e saiu. Fiquei passado, isso normalmente acontece. [...] O povo tem medo, aí eu boto a mão aqui dentro do casaco, já era: as pobres das velhas, quando me veem, onde tiver buraco enfia a bolsa. A bicha passando na maior tranquilidade só querendo mostrar o poder. Pior que eu entro na loja e o segurança fica olhando para minha cara: “Pois se vier atrás de mim vai passar mal, querido. Eu sou tão bicha que eu faço um escândalo aqui dentro”, ele vai se arrepender de ser segurança: “Me solte! Me largue! Eu sou uma mulher!4 Me largue!”. Eu não sei que treinamento é esse que a pessoa faz para ser segurança que não sabe diferenciar uma princesa de um marginal (Participante 1, 27 anos, preto, grupo de conversa).

32Nessa direção, Santos e Santos (2022) afirmam que os modos de subjetivação de gays negros são marcados pelos atravessamentos do racismo e da homofobia em um país cujo ideal de embranquecimento estrutura as relações sociais e cujos índices de violência contra a população LGBTQIA+ são cada vez mais alarmantes. Os autores afirmam que, junto às significações pejorativas e ofensivas atribuídas ao ser negro, a cisheteronormatividade que regula as relações sociais, introduz mais um alvo de ataques à existência dos homens negros que se relacionam com outros homens. Em outras palavras, como bem situaram Simões, França e Macedo (2010), a identidade de cor/raça precisa ser compreendida a partir de outros eixos de diferenciação, como o gênero e a sexualidade – “arranjos, negociações, acomodações e resistências que complicam as tentativas de fixar alinhamentos e oposições” (p. 73).

33Dessa maneira, a performatividade gay afeminada, sobretudo quando articulada a outros modos de estigmatização, tem sua existência deslegitimada justamente porque está fora dos padrões aceitáveis de inteligibilidade e normalidade. Inspirando-se em Butler (2019), pode-se afirmar que são vidas as quais estão fora dos esquemas de reconhecimento, cujas mortes não são choradas, não são enlutáveis, ou seja, são vidas precárias. Diante disso, faz-se a gestão entre aqueles que merecem viver e os que devem morrer: uma necropolítica dos corpos, tal como proposto por Mbembe (2016). Não por acaso, os participantes dessa pesquisa – pardos ou pretos, pobres e alguns deles moradores da periferia – relataram sucessivas tentativas de aniquilamento, de negação, de “deixar morrer”. Perecimento que ora é administrado pela família, ora pela religião, ora orquestrado por aqueles que deveriam acolher, como o próprio Estado e seus representantes. Afinal, são corpos gays negros afeminados, cujas sexualidades e performances são dissidentes da normativa social heterossexual e cisgênera operante na cidade contemporânea.

Gays afeminados e os modos de resistência na cidade

34Na contramão dos mecanismos de controle que se esforçam pela obliteração da existência gay afeminada na cidade, há modos de enfrentamento e de luta micropolítica operados por esses corpos. Os modos de resistência gay na cidade dizem respeito aos mecanismos macro e micropolíticos de luta através dos quais há “ruptura e (des)continuidades das dinâmicas normativas da cidade, por meio de afetos e performances dissidentes a um código social estabelecido a partir do controle e da hostilidade voltados aos desviantes” (Dellamagna, 2022, p. 72). A ocupação e o posicionamento desses corpos dissidentes na cidade são importantes para expor violências e violações, bem como para abrir possibilidades da existência gay fora dos enclaves urbanos – os guetos gays – os quais permitem uma espécie de liberdade guetificada, que enclausura e encapsula as alteridades, fazendo-as existir somente em cantos e pedaços heterotópicos da cidade que aceitam os desviantes (Costa; Bernardes, 2013).

35Acerca desses mecanismos de resistência, algumas categorias emergiram em nossa pesquisa: autoafirmação/autoaceitação; afastamento/não aceitação de situações/pessoas/espaços/posições violentas e moralizantes (pedir demissão, terminar relacionamento tóxico, faz “carão”, usa fones de ouvido, ignora as pessoas); criação de uma “persona” (o oposto da passabilidade); desnaturalizar/desgenerificar os adereços usados (brinco, saia, salto, batom, maquiagem etc.); apropriação de espaços outros (mais abertos à diversidade); fugir/sair/distanciar-se de casa; buscar apoio institucional (casa abrigo, Centro de Referência “LGBT”); unir-se com as causas da própria comunidade LGBTQIA+; ocupar coletivamente os espaços, preenchendo os “vazios urbanos”; estudar sobre a própria comunidade LGBTQIA+; e publicizar as vivências/fazer denúncia/fazer militância (adota atitude de confronto).

36Essas práticas de resistência dizem respeito aos movimentos de recusa ao desaparecimento na cidade – considerada neutra e imparcial – e à invisibilidade de sua existência. Para Costa e Bernardes (2013), trata-se de modos de apropriação e de rupturas sub-reptícias, por vezes imperceptíveis, que buscam romper a estranheza de si para os outros no espaço urbano, fomentar alteridades pelo acolhimento da diferença e de especular novas narrativas urbanas.

37Nossos resultados indicam que a sociedade, a família e a religião, operam enquanto “barreiras invisíveis” (Venturini, 2009) que tentam conter a homossexualidade e a afeminação, fazendo com que as principais estratégias adotadas para a sobrevivência física e mental, quase que pelo cansaço, seja evitar os embates/confrontos por meio da autovigilância dos comportamentos, do silêncio/ocultação e da encenação de um “personagem” (sinônimo de passabilidade).

Pra mim foi complexo essa “saída do armário”, foi longo, foi doloroso e foi complicado. Quando eu falo com gays eles sempre falam: “ah, eu sempre soube, desde criança”. Pra mim não foi bem assim, porque quando eu comecei a ver meu “lado feminino”, eu comecei também a negar. Porque desde cedo eu via meu pai restringir: “engrossa a voz”, “ajeita essa postura”, “só tem amigo mulher”, então eu comecei a me restringir também (Participante 3, 21 anos, branco, entrevista).

38Contudo, a cidade propicia outros movimentos que utilizam como estratégia a criação de uma "persona" ou uma apresentação estilizada de si mesmo. Essa “persona”, mostra-se uma dimensão voluntária da estilização e performatividade de gays afeminadas, para o que foi chamado por Colling, Arruda e Nonato (2019) de gays “fechativas” pelas ruas da cidade. Essa dimensão voluntária da performatividade produz um conceito interessante para pensar o uso estético-político que gays afeminados produzem ao brincar conscientemente com os signos de masculinidade/feminilidade disponíveis socialmente, originando o conceito de perfechatividade (performatividade + fechação), que se trata da estilização repetida e voluntária que tensionaria a dicotomia cis-trans. Quando performam intencionalmente acentuando sua expressividade afeminada, isso corresponde a um instante intencional de fazer seu corpo coreografar a “dança de si” (Gualberto; Gualberto, 2019) na cidade e, em movimentos de microrresistências performativas, construir uma performance afeminada na cidade, com o intuito de, efetivamente, serem vistos e reconhecidos nas cenas urbanas.

Foi depois que eu assumi ser quem eu sou, foi depois de eu expor esse meu jeito feminino para fora. E foi depois disso que começou as coisas acontecerem, eu falei assim: “tá aí, então, eu tenho poder”, sabe? E aí veio o “Ander Crazy” [persona criada pelo participante], né. Acho que Ander Crazy estava dentro de mim com essa persona mais feminina, com mais feminilidade, e aí ele saiu, assim, e veio essa gay afeminada que eu sou hoje. E aí veio as unhas, que, inclusive, estou indo fazer hoje. Veio as unhas, veio as perucas, veio as performances, veio os vídeos e tudo isso. E aí eu posso te dizer que foi depois do Ander Crazy, vieram as minhas decisões de largar trabalho que me fazia mal, largar meu relacionamento que me fazia mal e não dar mais tanta atenção para minha família que falava: “você ser gay já mancha o nome da família” (Participante 1, 27 anos, preto, grupo de conversa).

39Resistir na cidade significa também construir “espaços outros”, segundo Dellamagna (2022), na busca por espaços queers na cidade, onde a presença de corpos plurais que democratizam o espaço é desejada, lugares mais abertos e tolerantes à diversidade. A autora ressalta que esses espaços se constituem “lugares de resistência, contracultura e liberdade, mantendo-se em constante movimento e mudança. Em sua maioria, tem caráter efêmero e que perverte os códigos normativos; sua importância é justamente pela momentaneidade, mutabilidade e autonomia de ocupar e existir” (p. 69).

Olha, a gente fala muito de aceitação e tal, eu quero liberdade, eu quero que a cidade me aceite, que a população me aceite, eu quero lugares diversos, eu quero lugares como esse aqui, por exemplo, que tem na cidade, mas eu quero em diversos lugares da cidade, sabe. Eu quero lugar com acessibilidade pra gente, mas o que eu quero mesmo, não só da cidade, mas, sim, do cidadão, é que eles parem nos olhar com um olhar de pena, sabe, de tadinho, de: “ah, é, eu vou te respeitar porque agora virou moda”; “Ah, eu vou te respeitar, porque tem uma lei que me obriga”. Não! Eu quero que as pessoas só aceitem: a gente não quer tomar o seu lugar, a gente quer ocupar o nosso lugar (Participante 1, 27 anos, preto, grupo de conversa).

40Esses movimentos estão na direção oposta ao que foi definido por Agier, Nice e Wacquant (2002) como "a cidade nua", onde todos os elementos que definem o "não lugar" (Augé, 1994) encontram-se amplificados, onde a impessoalidade e a biografia dos sujeitos e suas identidades são colocadas entre parênteses. O planejamento urbano da “cidade nua” não favorece as relações, não permite formas de enraizamento, não cria identidades individuais, nega relações simbólicas e patrimônios comuns. A cidade nua é funcional apenas para facilitar a circulação das mercadorias, é funcional para o acúmulo e a exploração.

41Assim, quando esses corpos precários exercem o direito de aparecer em público, produzirem suas performances e tornarem evidentes suas existências é também um modo potente de reivindicar o direito à cidade (Butler, 2019). Essa ideia vai na mesma direção do conceito de “contra-usos” sugerido por Leite (2002), enquanto desobediência e transformação de um espaço originalmente moldado, que privilegia as práticas econômicas e simbólicas de consumo e lazer, em um espaço político de visibilidade pública e contestação, sobretudo quando operacionalizado em coalisão com a comunidade LGBTQIA+.

Eu não fico calado, eu não ligo para ninguém não, a questão é seguir em frente, né? Eu me apresentei duas vezes no Tribuna do Norte [jornal local], para mostrar quem eu sou e levantar nossa bandeira. A primeira foi em fevereiro, que foi no dia nacional das trans. E aí teve um rapaz que me convidou para fotografar, que ele tira foto e posta no Tribuna do Norte. Quando foi nesse ano, no dia do orgulho LGBT (sic.), ele me convidou de novo para tirar foto. Tive que mostrar quem eu sou e levantar as bandeiras. Tirei a máscara, comecei a tirar foto, foi lá em Ponta Negra [praia urbana e importante cartão postal da cidade do Natal], comecei a tirar foto, dei entrevista falando tudo, tudo mesmo. Depois desse tempo, muitas pessoas que estão lá por Mossoró, que faz parte da militância LGTB (sic.) de luta pelos direitos, vieram muitas pessoas falar comigo: “Ah, você foi uma ótima pessoa, levantou as bandeiras, mostrou quem somos” (Participante 2, 21 anos, preto, grupo de conversa).

42A potência dessas coalisões, que não resulta necessariamente a partir de muitos corpos, mas a partir de corpos múltiplos e diversos, se interconectam em um movimento horizontal e contínuo de resistência (Rena; Berquó, 2014). Assim, ao cuidar de si e do outro, resiste-se ao isolamento e ao individualismo, criam-se possibilidades outras de posicionamento no mundo, pequenas insurgências nascidas no comum – aspectos que, em última instância, representam recusas aos modos de subjetivação neoliberais que fomentam a privatização dos espaços e o descrédito do comum.

Considerações finais

43Este artigo trouxe a compreensão de que a possibilidade de transformação da vida na cidade passa pela possibilidade concreta de experimentação do cotidiano sem receio de ser ultrajado e violentado. Os gays afeminados, ao se imporem na cidade, constroem um modo de vida que não apenas resiste ao perecimento na cidade, mas contesta, disputa e luta pelo reconhecimento da singularidade de seus corpos e performances. Assim, foi possível compreender melhor algumas das práticas microcotidianas e golpes de astúcia potentes para desviar intencionalmente e subverter a norma imposta sobre o corpo-cidade.

44Sobre essas práticas, um primeiro aspecto que nos chamou atenção foi a intencionalidade e o comportamento autorrefletido nos atos de confrontamento às imposições sociais. Recusar a pecha que é atribuída à afeminação é, sem dúvida, a expressão mais clara da luta micropolítica desses sujeitos, os quais valorizam, admiram e cuidam de seu “lado mais feminino”, e não tentam esconder esse “lado” ao circularem pela cidade – mas publicizar ao máximo suas vivências, seja em eventos públicos, nas redes sociais e veículos de imprensa. Valorizar a afeminação implica também em afastar-se daquilo que se esforça por obliterar a afeminação no corpo masculino – sejam discursos, instituições, pessoas ou lugares e aproximar-se daqueles que a potencializam.

45Um segundo aspecto é o caráter criativo de reinventar-se, o que para alguns implica em criar uma “persona” – uma caricatura sobre si mesmo, a qual, por vezes, se utiliza da hipérbole nas performances e estilos usados, produzindo uma “bicha fechativa”; e, para outros, opera por meio da desgenerificação dos adereços/utensílios tradicionalmente classificados como de uso masculino/feminino. Por fim, reinventar-se implica em abrir mão de velhos modos de pensamento sobre sexualidade e gênero, socialmente aprendidos desde a infância. Reiteram a importância de aproximar-se da temática, das necessidades e das experiências comuns entre pessoas LGBTQIA+.

46São estes movimentos de resistência e de luta que gays afeminadas travam na cidade, atos aparentemente inofensivos e provocações inócuas, que se revelam como sucessivas e incansáveis marteladas nos “muros invisíveis que impedem que a diferença efetivamente possa habitar a cidade” (VENTURINI, 2009, p. 209). Assim, a presença desses sujeitos nas cenas cotidianas da cidade e os encontros com outras performances consideradas disruptivas e abjetas das normas de gênero e sexualidade são capazes de produzir erosões na cidade gentrificada e segregada.

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Notas

1 Neste artigo, será utilizada a sigla LGBTQIA+ para representar as minorias sexuais e de gênero, seguindo a mesma sigla utilizada em órgãos oficiais brasileiros, como o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e, mais especificamente, a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+.

2 Tal como na questão racial, optamos por abordar a identificação enquanto homem gay afeminado pela via da autodeclaração. Ou seja, perguntava-se previamente aos participantes se eles se reconheciam no lugar de homem gay afeminado, em outras palavras, se entendiam aparentar ou comportar-se “de forma a transmitir feminilidade para além do que é convencionalmente concebido em um contexto cultural” (Ramos; Cerqueira-Santos, 2020, p. 159).

3 Para identificar a raça/etnia/cor dos participantes, seguiu-se o critério de autodeclaração, seguindo as categorias utilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

4 A afirmação “Eu sou uma mulher”, nesse contexto de fala, não significa uma identidade de gênero, e sim um modo de expressão comumente utilizado por pessoas gays, o qual brinca intencionalmente com as flexões gramaticais de gênero masculino/feminino nas conversas com outros gays. O Participante 1 autoidentificava-se como homem gay cisgênero.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Victor Hugo Belarmino, Magda Dimenstein e Jáder Ferreira Leite, «Experiência urbana gay afeminada e modos de resistência na cidade contemporânea»Ponto Urbe [Online], 31 | 2023, posto online no dia 25 julho 2023, consultado o 01 dezembro 2023. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/15016; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.15016

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Autores

Victor Hugo Belarmino

Doutor em Psicologia e Docente Externo do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

E-mail: victorbelarmino@outlook.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4102-3351

Magda Dimenstein

Doutora em Psicologia e Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

E-mail: mgdimenstein@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5000-2915

Jáder Ferreira Leite

Doutor em Psicologia e Professor Associado II do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

E-mail: jaderfleite@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6045-531X

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