“Quando a mulher negra se movimenta, toda a sociedade se movimenta com ela.”
Angela Davis
1Uma mulher negra de aproximadamente 45 anos, de pés descalços e trajando um vestido branco de tecido fluido, está parada defronte às escadas da Prefeitura Municipal de Teresina, capital do Estado do Piauí. Seus movimentos denotam cautela e, ao mesmo tempo, firmeza. Apenas com o olhar ela perscruta atentamente o espaço ao redor e por fim decide-se: começa a subir vagarosa e solenemente as escadas. Na porta que dá acesso ao interior da Prefeitura, guardas e seguranças a impedem adentrar o recinto. Então está posto: as escadas serão o palco. Ela vira-se e se posiciona de frente para o público que se amontoa aos pés da escadaria. Alguns dos espectadores trazem placas onde é possível ler: “A prefeitura de Teresina não quer mais conversar”, “Já foram mais de 70 casas derrubadas”, “A Zona Norte chora” e “Ato da minha casa eu num saio!”.
2A mulher então começa a movimentar seu corpo como uma bailarina que se familiariza com o palco de sua apresentação pela primeira vez. Inicialmente de maneira lenta, ela vai exprimindo leveza e plasticidade. Poucos segundos – ou serão minutos? – transcorrem. Agora os movimentos do seu corpo adquirem intensidade e vigor. Um líquido viscoso de cor vermelho arroxeado é derramado por sobre sua cabeça e vai tingindo seus cabelos, seu rosto, seu corpo e seu vestido. Será sangue? O vestido outrora branco, agora está vermelho carmim. Ela continua se movendo de maneira ágil e firme, a leveza e a cautela iniciais não existem mais, o que transparece é obstinação, revolta e raiva. Ela é tomada por um intenso frenesi e se joga no chão e, finalmente, se banha no sangue derramado. Assim se encerra o “Banho de Sangue” da performer e bailarina teresinense, Luzia Amélia Silva Marques.
“Banho de Sangue” nas escadarias da Prefeitura de Teresina (janeiro de 2019)
Fonte: Página de Facebook de Luzia Amélia. Imagem acessada em novembro de 2021
3Entre os anos de 2018 e 2020, logo antes da pandemia de Covid-19 impor medidas de isolamento e distanciamento social em todo o mundo, o “Banho de Sangue” foi realizado, com alguma recorrência, em diferentes espaços do tecido urbano da cidade de Teresina. A performance, como apresentada no interlúdio deste artigo, foi idealizada e realizada por Luzia Amélia Marques, mulher negra, ativista, bailarina e performer teresinense e teve como mote, em todas suas edições, denunciar as violências sofridas por parte da população.
4Saber quais as questões permeiam e orientam a realização do “Banho de Sangue”, quais as motivações para a escolha dos lugares para a realização do “Banho de Sangue'', assim como a utilização de sua expressão corporal como protesto político e social, foram fatores que propulsionaram o desenvolvimento da pesquisa e consequentemente a sistematização e escrita deste artigo. A priori sabemos que as causas que serviram como incentivos para as manifestações de Luzia são diferenciadas em seu cerne, mas em todas elas as violências como, por exemplo, o feminicídio, o homicídio, o racismo e a desapropriação da população tradicional negra da periferia da cidade, aparecem como foco central para sua motivação. As análises sobre as relações interseccionais (COLLINS, 2021) que aparecem e orientam as performances, foram realizadas a partir de quatro momentos distintos em que Luzia Amélia realizou tal manifestação em Teresina.
- 1 O material de pesquisa que se apresenta neste artigo, ainda que de maneira parcial, é fruto do Mest (...)
- 2 Print é uma expressão inglesa que significa “imprimir”, mas que nesse contexto significa captura da (...)
5É neste cenário de intensa movimentação que se inicia a pesquisa etnográfica realizada pela autora e coautora deste artigo. Assim, entre os anos de 2020 a 2022, quando vivemos o ápice da crise pandêmica, este trabalho1 passou por um período de reformulação. Frente a uma nova situação, e de acordo com Mariza Peirano, “um cientista social torna-se um antropólogo ao longo de um processo de aprendizado e descoberta” (Peirano, 1995). Deste modo, entre os dois anos supracitados foi preciso desenvolver a pesquisa através do campo virtual, sendo este conduzido por meio da busca e armazenamento de imagens de arquivos fotográficos, prints2 e postagens retiradas das redes sociais de Luzia. Foi nesse período pandêmico que buscamos tais registros, pois, diante deste cenário de insegurança biológica, não foi possível acompanhar o “Banho de Sangue” em modo off-line. Ainda neste momento conduzimos duas entrevistas com Luzia Amélia através da plataforma on-line, Google Meet. É importante salientar que as autoras e a interlocutora já estabeleciam uma relação de proximidade dentro do viés artístico da cidade de Teresina, mesmo da pesquisa e da escrita deste artigo. Destacamos ainda que foi com o andamento da pesquisa que esses laços se fortaleceram, sobretudo a partir de interações nas redes sociais.
6Para discutir a produção dos dados etnográficos no ambiente virtual, utilizamos como base os estudos do antropólogo Daniel Miller, quando fala sobre a Antropologia Digital. O trabalho deste pesquisador é de grande importância para a construção desta pesquisa, sobretudo porque ela ocorreu durante a pandemia causada pela Covid-19. As limitações impostas pelo isolamento social durante a pandemia trouxeram prejuízos ao método etnográfico off-line de observação participante, mas não impediu que a pesquisa de campo fosse realizada de outras maneiras, sobretudo on-line.
7A partir da experiência de pesquisa, Miller afima que o “trabalho de campo sobre a Internet não foi só o fato de que as condições estavam mudando, mas que a Internet, ela mesma, havia se tornado instrumental em tal mudança” (Miller, 2004). Da mesma forma o autor nos fala que:
- 3 Tradução nossa: “Já deve ter ficado claro que, para nós, uma abordagem etnográfica da Internet é um (...)
It should be clear by now that for us an ethnographic approach to the Internet is one that sees it as embedded in a specific place, which it also transforms. Our four 'dynamics' indicate fields of force or tension between ways of life and potentialities to be found in these new technologies (Miller, 2000, p. 21)3.
8Desse modo, aplicamos parte da metodologia de pesquisa defendida por Miller, sobretudo porque as fontes apresentadas aqui, tais como prints de fotografias, texto, e entrevista, foram capturadas pelos meios descritos por este autor. Ainda nesse sentido, em um vídeo publicado em 2020 em seu canal no YouTube, Miller afirma que: “método é algo que você aprende”. Para o autor em cada contexto vivido a experiência poderá levar o trabalho a resultados diferentes e verdadeiros. Além disso o antropólogo reforça a originalidade existente no método de pesquisa realizado no campo virtual. Portanto Miller elenca perspectivas positivas sobre as possibilidades de trabalho antropológico no modo on-line e que são acessíveis ao pesquisador. Uma delas é que os dados podem ser armazenados em grande quantidade, pois existem variados recursos visuais para análise do antropólogo. O autor também fala sobre o comportamento das pessoas diante da webcam, o que pode ser vantajoso para a pesquisa. Entre outras ideias, Miller propõe que façamos teorias através dos ambientes digitais e que este espaço na qual considera “material” e não “imaterial”, não seja visto como um obstáculo, mas sim, um campo de pesquisa da antropologia.
9Diante de um trabalho que se encontra metodologicamente atravessado por fotografias, a imagem aparece como elemento relevante. Para Campos “a fotografia, o filme e o vídeo, vem conquistando novos domínios transformando a imagem em fonte reveladora do conhecimento antropológico'' (Campos, 1996). Assim, a fotografia pode ser pensada também como método que dá subsídio à pesquisa, pois:
Nas últimas décadas, a Antropologia Visual no Brasil vem sendo alvo de estudos e atenção, ampliando gradativamente o número de pesquisadores empenhados em defender e demonstrar que a imagem pode ser uma peça fundamental enquanto fonte primária de pesquisa científica capaz de evidenciar a diversidade social em seu contexto histórico e cultural (Campos, 1996, p. 280).
10A partir do que preconiza o campo da antropologia visual, as imagens retiradas das redes sociais de Luzia Amélia podem ser consideradas importantes para a realização da pesquisa, pois através delas, a descrição do “Banho de Sangue”, tal qual as sensações causadas por estas imagens podem nos aproximar da etnografia off-line. Ainda nesse sentido, Paul Stoller afirma que ao tomar em consideração os sentidos do tato, do olfato e da audição, tanto quanto o da visão, não apenas torna as etnografias mais vividas e acessíveis como proporciona que nossas descrições dos outros sejam mais fiéis às realidades dos campos de pesquisa. (Stoller, 2022). Deste modo, consideramos a relevância das imagens neste artigo uma vez que elas contribuem para uma maior aproximação do leitor com a pesquisa desenvolvida.
11As análises que serão aqui apresentadas partem também das entrevistas semiestruturadas apoiadas na perspectiva de Gaskell, “sendo com um único respondente (a entrevista em profundidade)” (Gaskell, 2000). Nas entrevistas realizadas foram abordadas questões relacionadas aos “Banhos de Sangue” realizados entre os anos de 2018 e 2020.
12O objetivo deste artigo é discutir e apontar, a partir da apresentação da performance “Banho de Sangue”, quais foram os espaços da cidade de Teresina que se transformaram em palcos para desvelar processos de violência, bem como disputas políticas e sociais no período supracitado. Para alcançar o objetivo proposto iremos apresentar cada um dos momentos onde o “Banho de Sangue” foi performado, indicando as motivações para a sua realização. Ainda neste tópico, a partir dos dados apresentados, iremos abordar as discussões sobre expressões corporais e artivismos na cidade de Teresina. Já em um segundo momento iremos discutir, a partir da categoria de interseccionalidades (COLLINS, 2021), quais são as implicações e os desdobramentos do “Banho de Sangue”. E por fim, vamos problematizar a importância das cidades serem problematizadas enquanto lócus privilegiados para disputas políticas que envolvem as lutas por moradia urbana, bem como lutas antirracistas e feministas.
13O “Banho de Sangue” é uma apresentação artística realizada para denunciar as múltiplas violências vivenciadas por mulheres, negros e populações tradicionais da cidade de Teresina. Como já mencionada anteriormente, foi elaborada pela dançarina Luzia Amélia e apresentada em diferentes espaços da cidade. Nas palavras dela a dança emerge nesses contextos de violência enquanto ato de poder político, para questionar e enfrentar questões relacionadas ao sexismo, racismo e machismo vigentes em nossa sociedade.
Postagem de Luzia Amélia
Fonte: Página de Facebook de Luzia Amélia, novembro de 2021
14Nos locais escolhidos para a realização da performance, enquanto Luzia apresenta movimentos corporais diante de apoiadores e transeuntes, seu corpo é banhado pela coloração vermelho-arroxeada feita de polpa de beterraba concentrada. A polpa também é espalhada por toda a área utilizada para a performance e simula o sangue derramado pelas vítimas de violência. Antes da realização do “Banho de Sangue”, Luzia geralmente convoca e articula o protesto juntamente com os voluntários que a acompanham nas redes sociais, ao mesmo tempo em que anuncia em plataformas digitais sobre sua realização. Algumas vezes, ela fornece informações com a indicação de local e horários, já em outras circunstâncias a performance acontece inesperadamente.
15Habitualmente Luzia esta está sempre acompanhada de apoiadoras e apoiadores que a auxiliam no “derramamento de sangue”. Na ocasião essas pessoas levam cartazes e na maioria das vezes ela dança sob a narrativa de Maria Lúcia, mulher negra ativista que a incentiva e se faz presente nas manifestações. Deste modo enquanto Luzia atua, Lúcia de forma oral apresenta argumentos contra a violência e opressão do sistema dominante sobre a população teresinense, associando estes atos de violência ao que propulsionou o “Banho de Sangue” em questão.
16Neste tópico, portanto, iremos apresentar quatro momentos nos quais o “Banho de Sangue” se fez presente nas ruas e demais espaços da capital do estado do Piauí. Posteriormente iremos problematizar quais são as implicações e os desdobramentos da performance “Banho de Sangue”.
17O primeiro “Banho de Sangue” aconteceu em maio de 2018, e foi motivado pelo feminicídio da cabelereira piauiense Aretha Dantas, assassinada com mais de vinte facadas por seu ex-companheiro em maio de 2018 (Romero, 2018). Um cartaz virtual, publicado nas redes sociais de Luzia, trazia a frase “Ato pela vida das mulheres. Nenhuma a menos! Mulheres contra a violência e o feminicídio” e anunciava a realização do primeiro “Banho de Sangue”. O local escolhido pela bailarina foi o Palácio de Karnak, sede do governo do Piauí. Para este momento Luzia convocou muitas mulheres através da rede social Facebook, inclusive marcando os nomes de algumas delas. O encontro ficou agendado para o dia 22 de maio de 2018 às 9h.
18Em entrevista realizada para a pesquisa, a performer explicou que ao saber da morte de Aretha, atingida com cerca de 28 perfurações por arma branca, não pode compreender tamanha crueldade contra a vida humana. Assim ela descreveu:
Era um monte de facadas (faz gestos com as mãos). Uma vez eu falei “isso aqui é um derramamento de sangue, isso é um banho de sangue”. Aí eu decidi, eu vou fazer isso aqui, vou fazer um “Banho de Sangue” (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021).
“Banho de Sangue” em frente ao Palácio de Karnak, maio de 2018
Fonte: Página de Facebook de Luzia Amélia, novembro de 2021
19No dia da performance “Banho de Sangue”, Maria Lúcia estava ao lado de Luzia, juntamente com outras mulheres que compõem diversos coletivos do movimento feminista em Teresina. Todas compareceram ao local levando cartazes contendo frases e fotografias de mulheres vítimas de feminicídio. Algumas mulheres foram convidadas, através das redes sociais, a realizar a performance juntamente com Luzia Amélia, contudo no dia do ato não se fizeram presentes. Assim Luzia ficou como a única performer no “palco” dançando ao som da oralidade de Maria Lúcia. Neste espaço, a bailarina vestia preto e foi banhada pela polpa de beterraba, feita por Maria Lúcia, ao tempo em que espalhava o líquido vermelho-arroxeado por onde se movimentava.
20O segundo “Banho de Sangue” aconteceu em oposição à retirada violenta de pessoas de suas casas na região da Boa Esperança, localizada na zona norte da cidade de Teresina, em janeiro de 2019 (Portal G1 Piauí, 2019). A frase “Ato da minha casa eu num saio!” foi estampada em uma postagem no Facebook de Luzia, anunciando e convocando seus seguidores a comparecer ao protesto no local que seria realizado o segundo “Banho de Sangue” no dia 10 de janeiro de 2019 às 9 da manhã. O espaço escolhido foi a porta principal da Prefeitura de Teresina. O ato foi provocado em protesto à desapropriação de moradores da comunidade Boa Esperança, localizada na zona Norte da cidade. Nas postagens de sua página, havia frases escritas por Luzia, como: “A prefeitura de Teresina não quer mais conversar” e “Já foram mais de 70 casas derrubadas. Zona Norte chora”, entre outras.
21Sobre este “Banho de Sangue”, durante as entrevistas, Luzia fez questão de falar da presença dos guardas que se posicionaram no topo da escadaria da sede da prefeitura de Teresina, apresentando-se como “escudos humanos” diante dela. Luzia assim descreveu aquele momento:
Na Prefeitura eu senti um desconforto [...] nossa, eu fiquei com um pouco de medo, antes de começar, mas eu sabia que na hora que eu começasse o medo ia passar e realmente passou (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021).
22Por conta deste “Banho de Sangue” a artista sofreu ataques nas redes sociais. Frases de cunho sexista e racista foram dirigidas a ela: "Isso é falta do que fazer", "Merece 20 chibatadas", "Que palhaçada, está sujando a imagem das mulheres que se engajam decentemente pelos nossos direitos".
Print da página de Luzia Amélia, janeiro de 2019
Fonte: Página de Facebook de Luzia Amélia, novembro de 2021
Talvez se eu fosse uma artista branca dançando, não teria a relação de “vai procurar roupa pra lavar”, “pegar vassoura”. Porque tem essa questão da raça, né. Mas isso aí eu não... Eu não vou... Não magoa tanto, mas eu percebo. Eu tive que fazer nesse caso o B.O. mas não deu em nada. (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021).
23As ofensas lhe causaram revolta e a levaram-na a registrar um Boletim de Ocorrência. Na fala de Luzia é possível perceber que a questão étnico racial está presente para o desenvolvimento do “Banho de Sangue”, bem como se faz presente nas suas reverberações.
24O terceiro “Banho de Sangue” foi incitado a partir da violência contra jovens negros, tendo como foco a morte de um jovem em um supermercado no Rio de Janeiro no ano de 2019 (Portal G1 Rio de Janeiro, 2019). Este último foi realizado em fevereiro do mesmo ano em um estabelecimento comercial da mesma franquia na capital teresinense. O racismo foi o tema estampado no cartaz virtual postado por Luzia, com a frase acima em letras grandes, acompanhadas da data que marcava 18 de fevereiro de 2019, dia escolhido para a realização deste “Banho de Sangue”. Pois, no dia 14 de fevereiro de 2019, Pedro Gonzaga, jovem negro de 19 anos, foi imobilizado e sufocado até a morte pelos seguranças do Supermercado Extra no Rio de Janeiro. Dessa forma, o Extra de Teresina, localizado na zona nobre da cidade, foi o local designado para a realização do terceiro “Banho de Sangue” analisado neste trabalho.
“Banho de Sangue” no Supermercado Extra, fevereiro de 2019
Fonte: Página de Facebook de Luzia Amélia, novembro de 2021
25Neste ponto comercial, Luzia relatou que a situação foi tensa, pois sabia que poderia ser penalizada por estar nas dependências de uma propriedade privada. Nesse espaço, Luzia não estava acompanhada por Maria Lúcia, mas seguiu firme com o apoio moral de outros ativistas. A bailarina banhou sozinha o seu corpo com o suco de beterraba, iniciando sua manifestação ainda na calçada da parte exterior do supermercado, onde depois adentrou outros espaços do estabelecimento explorando corredores, setor de carnes e mesas onde funcionam os caixas do ponto comercial. Neste local, a bailarina narrou que havia muitos olhares de reprovação, principalmente vindos de pessoas de classe média, que nitidamente tinham como maior preocupação as manchas deixadas no supermercado.
E eu fui para aquele Extra para sujar aquele santuário, porque o louco é que as pessoas lá no Extra, elas tinham muita raiva de mim [...] fui atacada também, falaram da sujeira. “Quem é que vai limpar?”. A questão das pessoas era essa, né. “Quem é que vai limpar o Extra?”. Como se o Extra tivesse virado um grande santuário, na verdade é isso né, um grande santuário. O choque é grande, evidentemente, [o espaço] que vale mais do que um corpo (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021).
26Apesar dos comentários negativos, Luzia acrescentou que alguns funcionários do supermercado, se emocionaram com o “Banho de Sangue”.
Maria Lúcia e Luzia, agosto de 2020
Fonte: Redação Ocorre Diário, 2020
27 O quarto “Banho de Sangue” aconteceu no dia 16 de agosto de 2020, durante a pandemia de Covid-19. Na data eram comemorados os 168 anos da cidade teresinense. O ato aconteceu na manhã no cruzamento da Av. Raul Lopes e Av. Universitária, onde fica um monumento que homenageia o bandeirante Domingos Jorge Velho, considerado um dos maiores genocidas das populações indígenas do estado do Piauí (Redação Ocorre Diário, 2020).
28O ato relembrou as vítimas da pandemia na cidade, questionou os movimentos negacionistas e relembrou as populações ameaçadas de remoção de seus territórios pelo modelo de cidade predatória e colonizadora. Quando perguntada sobre suas motivações para o as apresentações, Luzia relata:
O “Banho de Sangue” saiu disso, saiu de... o banho de sangue, ele é fruto de uma raiva. (Fecha os olhos). De uma revolta, de um sentimento de angústia muito grande, de uma sensação de que eu não poderia fazer nada. (Abre os olhos). O que eu poderia fazer no lugar de bailarina? Eu sinto que eu poderia fazer mais (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021).
29Luzia Amélia Marques, além de bailarina, coreógrafa, performer, é pesquisadora e doutoranda em dança pela Universidade Federal da Bahia, e por este motivo acrescentou que a pesquisa a fez entender que este também é um lugar que deve ser ocupado por mulheres negras destacando que o racismo fez muita diferença em sua vida. Ao mesmo tempo expressou em palavras: “Eu faço questão de dizer ‘eu sou a primeira mulher negra a fazer um doutorado em dança no Brasil” (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021). Reafirmando assim as dificuldades que mulheres negras enfrentam no País. Luzia ainda completou: “Acho que para nós, mulheres negras, tudo é muito mais pesado, é como se a gente já nascesse ativista, como se a gente não tivesse essa opção de não ser ativista” (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021).
30Luzia Amélia é uma bailarina que se compreende enquanto ativista. Na apresentação de seu portfólio a performance “Banho de Sangue” é assim descrita: “Exposição do corpo de uma mulher negra como um manifesto errante e radical inserido em uma sociedade onde a morte de minorias é o principal projeto político vigente. “Banho de Sangue” revela em uma única ação, arte, militância e ativismo nesse tempo de regressão histórica em que vivemos”.
31Entretanto, será a partir de algumas leituras realizadas e que serão expostas no subtópico a seguir, que podemos afirmar que a performance “Banho de Sangue” está situada dentro do viés contemporâneo do artivismo, (RAPOSO, 2015). Afinal, Luzia tem sido atravessada e impulsionada a realizar a performance a partir de questões políticas e sociais que instigam seu fazer artístico dando assim uma dimensão que excede os limites entre arte e ativismo. No total, entre o ano de 2018 e 2020, Luzia Amélia realizou nove “Banhos de Sangue”, sendo sete no Piauí e dois na Bahia, local para onde se mudou durante a pandemia e onde mora e estuda atualmente.
32A arte de Luzia é corporal e é através de seu corpo que ela protesta. Para tratar adequadamente sobre artivismo com ênfase na expressão corporal, primeiramente buscamos uma compreensão sobre o corpo, pois é a partir dessa expressão que Luzia realiza o “Banho de Sangue”. David Le Breton, afirma que “moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o fator semântico pelo qual a evidência de uma relação com o mundo é construída” (Le Breton, 2007). Portanto, através do corpo, o mundo se faz lugar de experiência compartilhada simbolicamente com integrantes da comunidade. Ainda de acordo com o autor, “o mundo é a extensão da experiência corpórea” (Le Breton, 2007). Deste modo, Luzia fora motivada por problemas sociais como a violência, naturalizada não só na cidade de Teresina, mas em todo os Estado do Piauí, e principalmente causada pelo machismo, racismo e ainda a desapropriação da comunidade Boa Esperança.
33Assim como Luzia, outros(as) artistas se expressam através do corpo. Resgatamos o trabalho de Yoko Ono, artista plástica japonesa que propôs uma obra de posicionamento político contra a guerra do Vietnã. Na performance realizada no ano de 1964, Yoko apresenta uma ação coletiva de destruição. Em um ambiente fechado, sentada no chão e inerte, a performer convida o público a cortar qualquer parte de sua roupa e levar consigo. Na obra, Yoko expõe o próprio corpo revelando relações de violência entre vítima e agressor (Redação Bazar, 2015). Por outro lado, Marina Abramovic, artista sérvia, apresenta um corpo objeto em “Ritmo 0” de 1974. Na performance art realizada também em espaço privado, a artista se colocou em posição inerte frente a uma mesa com 72 objetos diversos que poderiam ser utilizados em seu corpo da forma como o público quisesse. Na ocasião, a performer declarou-se responsável por sua atitude. Depois de seis horas de performance, Abramovik declarou que sofreu violência e teve seu corpo violado (Artrianon, 2017).
34É também através da performance, Beth Moysés, artista brasileira da atualidade, propõe reflexões sobre uma transformação social a partir de discussões sobre a violência doméstica e de gênero evidenciando a condição da mulher na sociedade patriarcal. No dia internacional da “não violência contra a mulher”, a performance “memória de afeto”, foi realizada nas ruas de São Paulo, com cerca de cento e cinquenta mulheres vestidas de noiva. As mulheres andaram em cortejo pelas ruas da cidade despetalando suas rosas. Ao final, enterraram os espinhos em um ato repleto de significados (Performatus, 2014). Portanto, podemos perceber como o corpo foi desenhando suas nuances em questões diversas, e de alguma forma, mulheres se expressam ou demonstram incômodos que as efetam a partir do corpo, assim como na performance de Luzia Amélia.
35Para o senso comum, o ativismo é desempenhado por uma pessoa ou por um coletivo que trabalham de modo ativo, continuado e em prol de causas que falem, necessariamente, de um interesse comum. Enquanto o ativismo trabalha a partir de ações sistemáticas como, por exemplo, passeatas, ocupação de espaços públicos, participação em Câmaras e Assembleias Legislativas; o artivismo utiliza-se de estratégias artísticas, estéticas ou simbólicas para amplificar, sensibilizar e problematizar questões que afetam a sociedade. Dessa forma, para além de uma prática ativista, a performance “Banho de Sangue” de Luzia Amélia pode ser compreendida e enquadrada, dentro de um contexto artístico, político e social, enquanto artivismo (RAPOSO, 2015).
Artivismo é um neologismo conceptual ainda de instável consensualidade quer no campo das ciências sociais, quer no campo das artes. Apela a ligações, tão clássicas como prolixas e polémicas entre arte e política, e estimula os destinos potenciais da arte enquanto ato de resistência e subversão. Pode ser encontrado em intervenções sociais e políticas, produzidas por pessoas ou coletivos, através de estratégias poéticas e performativas (...). A sua natureza estética e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga temas e situações num dado contexto histórico e social, visando a mudança ou a resistência. Artivismo consolida-se assim como causa e reivindicação social e simultaneamente como ruptura artística – nomeadamente, pela proposição de cenários, paisagens e ecologias alternativas de fruição, de participação e de criação artística (Raposo, 2015, p. 5).
36A performance de Luzia Amélia é apresentada em locais e cenários públicos da cidade de Teresina e os altera a partir de um “derramamento de sangue”. A partir da arte da dança, a performance pode ser compreendida como um momento destinado aos protestos de cunho político e social que reivindicam o cessar das violências contra as mulheres, negros e populações tradicionais na cidade. Ou seja, ao realizar o “Banho de Sangue” Luzia se posiciona contra e denuncia os sexismos, os racismos e os machismos vigentes. Da mesma forma, a performance carrega consigo a forte simbologia a partir dos usos da polpa da beterraba que faz as vezes do sangue. Tal recurso imagético escancara o problema dos homicídios, feminicídios e assassinatos, sejam eles físicos ou simbólicos, que acontecem todos os dias na cidade. O “Banho de Sangue” é uma performance que impacta quem assiste e provoca profundas reflexões diante de problemas sociais urgentes vivenciados em Teresina.
37Ainda sobre o artivismo, cabe ressaltar que esta proposta se trata de uma abordagem que transita entre a arte e o ativismo. Di Giovanni (2015) apresenta uma leitura de tal relação ao dar enfoque para as problematizações criadas a partir de práticas e transformações da ordem social. Dessa forma a “experiência política” e a “criação estética” se misturam no fazer coletivo. Di Giovanni (2015) fala ainda sobre o “espaço aberto” como o palco das ações artísticas e ativistas e de como ambas, juntas, podem representar transformações nas relações de poder. A cidade, portanto, pode e deve ser encarada como o palco por excelência das experiências, experimentações e expressões artivistas. Ao congregar a dança enquanto criação estética, o espaço urbano enquanto espaço aberto, a questão da violência como experiência política, Luzia realiza uma forma de artivismo a partir da realização do “Banho de Sangue”. E é a partir de seus movimentos corporais, em conjunto com os demais elementos que compõem sua performance, que ela protesta e se posiciona contra o sexismo, o racismo e a desapropriação urbana.
38Rui Mourão (2015), apresenta as potencialidades do corpo como enquanto suporte para o fazer artístico e político. Ele correlaciona as maneiras pelas quais a arte e o ativismo, dentro da arte contemporânea, podem exprimir posicionamentos e inclinações políticas. Mourão fala de uma arte operante, movida pela emoção e com capacidade de transformação. Sobre o corpo durante a realização do “Banho de Sangue”, Luzia descreve:
Naquele momento era muito necessário que eu fizesse [a performance] enquanto uma artista que é ativista, enquanto uma artista que quer se colocar e que quer dizer coisas como: eu não concordo, nosso corpo vai responder à altura. Na prefeitura eu queria dizer que o nosso corpo não tem medo e ele vai responder à altura da invasão de vocês para cima de nossos povos. No “Extra” eu quis dizer: eu honro a sua vida (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021, complemento nosso).
39Luzia reconhece a potência atuante em seu corpo nos espaços abertos e públicos durante a realização da performance. Assim, diante das violências que lhe afetam, ela coloca-o enquanto meio para os fazeres artísticos e políticos. A performer se mostra consciente de suas manifestações dizendo:
Aquele momento é um espaço, tipo assim... tem uma suspensão ali de um sistema capitalista né?! A suspensão do sistema neoliberal. Naquele momento eu me sujo de sangue [daqueles que são violentados por esses sistemas] (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021, complemento nosso).
40O simbolismo da polpa de beterraba que emula o “sangue” vai além do seu aspecto físico viscoso e/ou de sua cor vermelha. O sangue também representa um acontecimento violento que pode ser traduzido no corpo de Luzia: é o sangue da mulher que é vítima de feminicídio; do jovem negro brutalmente assassinado; dos moradores do bairro periférico da Boa Esperança que desapropriados com violência de suas casas; dos corpos tombados pela negligência de um estado que nega a vacinação contra Covid-19. A artista acrescentou que, durante a performance, ao pensar no sangue “real” derramado pelas vítimas sente que sua respiração fica pesada, quase como uma asfixia; mas que continuar dançando lhe ajuda a dissipar essa sensação.
41Mourão (2015) também faz colocações sobre o artivismo disponível na internet, pois este sai do espaço público para se expandir pelo espaço virtual gerando compartilhamentos, interações e visualização. Este pode trazer variadas linguagens artísticas, tais como: música, dança ou a exemplo da performance desta pesquisa, na qual tenho realizado buscas a partir da internet. Luzia disse que após a performance ser compartilhada na internet ganhou um grande número de visualizações, compartilhamentos, críticas construtivas e negativas, e que seu objetivo quando faz as postagens é denunciar e expor seu posicionamento contra a violência e a opressão, colocando-se como artista ativista.
42No tópico anterior apresentamos as motivações que levaram Luzia Amélia Marques a performar o “Banho de Sangue” em diferentes espaços da cidade de Teresina. Aí também abordamos também algumas diferenciações possíveis entre ativismo e artivismo; enfatizando a importância do espaço urbano para a consolidação das práticas e transformações estéticas propostas pelo artivismo. A partir de agora iremos discutir quais são implicações e os desdobramentos do “Banho de Sangue” a partir da categoria interseccionalidades, proposta por Patrícia Hill Collins (2021).
43Antes mesmo de trabalhar de uma perspectiva interseccional sobre os marcadores de gênero e raça, faz-se necessário apresentar, ainda que de forma breve, como cada um é entendido nesse artigo. Para adentrar questões sobre gênero partimos do trabalho pioneiro de Gayle Rubin (1993). Rubin apresenta reflexões sobre o sistema binário sexo/gênero e nos diz que a partir do momento em que se apontam distinções entre os sexos biológicos, estas passam a ser traduzidas a partir de hierarquias sociais calcadas nas diferenças de gênero. Para Rubin as opressões e a subordinação imposta às mulheres podem ser compreendidas a partir desse sistema binário de compreensão de mundo. Seguindo esta linha, Joan Scott (1995), afirma que além de uma categoria social de análise, o gênero é o artefato cultural sistematicamente imposto sobre um corpo sexuado. Da mesma forma, Celi Regina Jardim Pinto (2003), aponta que o gênero é um elemento estruturante da desigualdade no Brasil, uma vez que legitima a dominação masculina a partir de discursos e práticas que inferiorizam e colocam as mulheres em posição de subalternidade. Já Miriam Grossi (2004) apresenta diferentes concepções relacionadas a categoria de gênero, dentre elas, a que na maioria das sociedades ocidentais, mulheres são oprimidas e submissas em relação aos homens, sustentando um modelo de fragilidade e vulnerabilidade na construção do gênero feminino e de virilidade e assertividade na construção do gênero masculino.
44A partir dessa breve revisão, podemos perceber como a categoria analítica gênero é uma ferramenta poderosa para pensar a performance “Banho de Sangue”. A partir do momento em que o corpo de uma mulher problematiza, a partir da dança, questões como submissão, opressões e hierarquias que culminam mortes violentas, Luzia se opõe categoricamente ao modelo de gênero que pensa as mulheres enquanto sujeitos submissos e frágeis. Ao mesmo tempo em que ela própria se desvencilha desses estigmas e amarras, também denuncia as violências que incidem sobre os corpos de outras pessoas consideradas enquanto subalternas, dialogando assim, com os estudos de Spivak (2010).
45Ao ser questionada sobre a influência do movimento feminista para a construção e realização do “Banho de Sangue”, Luzia respondeu que considera o movimento de suma importância para a luta de igualdade de gênero, mas aponta-o como movimento social que pertence à classe das mulheres brancas.
Enquanto mulheres brancas lutavam para votar, as nossas mães, nossas avós negras estavam trabalhando nas cozinhas. Nós nunca tivemos essa missão de lutar para trabalhar. Nós nunca tivemos esse direito ou esse desejo de lutar para trabalhar. A gente [mulheres negras] já nascemos trabalhando (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021, complemento nosso).
- 4 Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos: Reunião de clérigos onde se discutiam os (...)
46A fala de Luzia se aproxima, em muitos aspectos, do discurso de Sojouner Truth. Truth foi uma mulher negra norte-americana, que durante boa parte da sua vida foi escravizada. Durante o Women’s Rights Convention4, ocorrido no ano de 1851, na cidade de Akron, Estado de Ohio, nos Estados Unidos, ela posicionou-se diante da desigualdade de gênero, a partir de uma perspectiva racial. Na ocasião ela disse: “Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher?”. Dessa forma, Sojouner Truth evidenciou como o movimento feminista, sobretudo o de primeira onda, que visava a conquista do direito ao voto feminino e o direito de ingresso no mercado trabalho, não contemplava a realidade vivenciada pelas mulheres negras.
- 5 A expressão “lacrar” é usada como gíria para definir aqueles que “arrasam”, “mandam bem” ou “têm su (...)
47Uma autora que nos ajuda a pensar nessa questão das interlocuções entre gênero e raça nas vivências e experiências das mulheres negras é bell hooks. De acordo com a autora, o feminismo não nasceu de mulheres vítimas de opressão, mas sim, de “Mulheres brancas que não têm consciência de que suas perspectivas refletem preconceitos de raça e classe”. (Hooks, 2015). A reflexão da autora, escancara que as violências de gênero podem ser causadas não somente por homens em relação a mulheres, mas também por mulheres brancas contra mulheres negras. Nesse sentido, ao retornar para a entrevista com Luzia, podemos perceber a partir da sua fala que um dos momentos em que se sentiu mais ofendida e atacada foi quando outra mulher lhe disse que ela só “queria lacrar5”. Convém dizer que “lacrar” é uma gíria utilizada para dizer que alguém realizou algo com sucesso a ponto de calar os supostos críticos. Ou seja, ao dizer “lacrou” significa que fulano realizou algum ato/feito que deixou as pessoas sem argumentos para refutá-lo. A gíria pode ser utilizada em tom acusatório, com o intuito de apontar que a pessoa só quer "se aparecer" e/ou ser "militante" em cima de causas sociais; esse é o caso da frase dirigida a Luzia.
48Ainda sobre o movimento feministas, bell hooks nos diz que “se as mulheres negras de classe média tivessem começado um movimento em que designassem a si mesmas como “oprimidas”, ninguém as teria levado a sério” (Hooks, 2015). Dessa forma, hooks reafirma seu descontentamento diante dos privilégios de mulheres brancas que se diziam oprimidas. E assim, se posiciona:
Mulheres brancas acham que só percebemos a opressão a partir de suas teorias - as negras, assim como outros grupos de mulheres que vivem diariamente em situações de opressão, muitas vezes adquirem uma consciência sobre a política patriarcal a partir de sua experiência de vida, da mesma forma com que desenvolvem estratégias de resistência. (Hooks, 2015, p. 203).
49Mobilizamos ainda Lélia Gonzalez, que nos ajuda a pensar sobre os lugares que ocupam as mulheres negras na sociedade brasileira. Gonzalez discorre sobre as diferentes perspectivas e posições que se destinam às mulheres negras na sociedade brasileira, bem como os lugares em que elas mesmas se percebem. Esses movimentos são importantes, nas palavras de Gonzalez, uma vez que “o lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo” (Gonzalez, 1984).
Enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nessa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva socioeconômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações. E isso começou a nos incomodar (Gonzalez, 1984, p. 225).
50Lélia Gonzalez reivindica que as mulheres negras devem começar a refutar os modelos de explicação e análise social que eram sistematicamente reproduzidos e repetidos pelas Ciências Sociais em meados dos anos 1980. O objetivo é que essas mulheres possam começar elas próprias a produzir seus próprios significados de mundo. E assim, sucessivamente, reconstruir os lugares ocupados pelas mulheres negras dentro da sociedade brasileira.
A gente também pode apontar para o lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim como os diferentes modos de rejeição/integração de seu papel [...] Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção (Gonzalez, 1984, p. 226).
51Durante as entrevistas, Luzia afirmou que sempre foi consciente sobre sua negritude, mas que o preconceito não a deixava perceber sua beleza. Houve um tempo, inclusive, que para sentir-se bela alisava os cabelos por medo de reconhecer seus fios e assim escondia o Black Power que tanto se orgulha de ter na atualidade. Para Nilma Gomes, “nas múltiplas possibilidades de análise que o corpo negro nos oferece, o trato do cabelo é aquele que se apresenta como síntese do complexo e fragmentado processo de construção da identidade negra” (Gomes, 2008).
52Sobre tal processo de reconhecimento, Frantz Fanon revela que “para obter a certeza de si mesmo, é preciso a integração do conceito de reconhecimento” (Fanon, 2008). Ainda de acordo com o autor, o processo de reconhecimento diante do racismo é lento e doloroso. Porém, após a transformação de si, a pessoa mostra-se como um novo ser.
Sangue! Sangue!... Nascimento! Vertigem do devir! Em três quartos de mim, danificados pelo aturdimento do dia, senti-me avermelhar de sangue. As artérias do mundo arrancadas, desmanteladas, desenraizadas, voltaram-se para mim e me fecundaram (Fanon, 2008, p. 115).
53Durante as entrevistas realizadas com Luzia Amélia, ela foi questionada sobre a ideia debatida pela autora Lélia Gonzalez (1984), quando esta nos diz que uma mulher negra quando levanta a voz contra injustiças e opressões é considerada uma mulher raivosa. Prontamente Luzia respondeu:
A gente aprende que não pode ter raiva, mas a raiva é um lugar de convivência e também de criação, acho que muitas vezes a raiva me envolveu ao tentar transformar uma realidade que era, naquele momento, injusta. Não só para mim, mas também para os meus iguais, ou seja, para pessoas pobres, marginalizadas, negras, mulheres, gays, moradores de rua. Pessoas que realmente estão no último lugar na fila dessa sociedade colonial (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021).
54Ela argumentou que o “Banho de Sangue” nasceu como um grito de revolta diante da impotência gerada pela violência contra os seus. Acrescentou ainda que na qualidade de bailarina não poderia fazer uma dança esteticamente agradável, dentro de um teatro ou sala, para realizar-se enquanto artista e agradar ao público. Era preciso fazer uma performance impactante, que mexesse com os sentimentos e que perturbasse a ordem vigente. Era preciso que a arte exercesse a função social de denúncia, sobretudo. Assim surgiu o “Banho de Sangue”.
55A partir das problematizações trazidas por hooks, Gonzalez e Fanon, afirmamos que a performance “Banho de Sangue” deve ser compreendida a partir de um movimento político em que Luzia intersecciona e desconstrói as categorias e as noções que vêm junto com elas, de gênero e raça. A mulher negra que dança, no momento em que dança, não está mais submissa, frágil ou sujeita às opressões patriarcais; pelo contrário, a mulher negra que dança traz no corpo, a partir de estratégias, marcas de resistências para enfrentar as violências – sexistas e racistas - que recaem sobre si e sobre seus iguais. A mulher negra que dança rompe com a alienação e o desconhecimento, pois reafirma e reconhece a si mesma – e aos seus - como sujeitos de direito.
56Considerando ainda as transformações descritas por Luzia em seu processo de reconhecimento de si enquanto mulher negra, como por exemplo parar de alisar os cabelos, ela acrescentou que “Ser mulher negra trouxe o reconhecimento do meu trabalho e atuação política no campo da dança. Por muito tempo, não tive consciência disso” (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021). Mais uma vez as relações entre raça e gênero são colocadas em evidência e a interseccionalidade aparece nesse contexto.
57Sobre o conceito de interseccionalidades recorremos ao livro de Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge (2020), onde elas apontam que as categorias de raça e gênero - entre outras possíveis como classe, deficiência, sexualidade, geração – devem ser vistas em relação. Assim, a interseccionalidade deve ser compreendida como uma categoria analítica e teórica que envolve a compreensão dos sujeitos como seres multifacetados. Isso significa que não é suficiente analisar situações sociais apenas a partir de uma perspectiva, seja de gênero, raça/etnia ou classe social. É necessário considerar que as pessoas trazem consigo todas esses marcadores e que em conjunto, ao se interseccionarem, geram uma ampla variedade de experiências que podem ser distintas entre si. A ferramenta da interseccionalidade nos ajuda a problematizar as experiências de Luzia, bem como as motivações que a levam realizar o “Banho de Sangue” nos quatro momentos anteriormente apresentados.
58No que diz respeito às experiências individuais de Luzia, podemos resgatar os ataques sofridos por ela nas redes sociais. A frase “merece 20 chibatadas! Pode me criticar! Falta do que fazer e muita! Pergunta se ajuda a mãe em casa?”, parte de um discurso violento que intersecciona as categorias raça e gênero para construção de uma situação de hierarquização do corpo de Luzia. Além da violência de raça, ela também sofre violência de gênero, em um primeiro momento ela é classifica como “desocupada” e, posteriormente, aponta-se que deveria encontrar um serviço doméstico para realizar. Neste caso, há uma tentativa de inferiorização da mulher negra a partir da tentativa de recolocá-la “em seu lugar”. Ainda sobre a frase “Merece 20 chibatadas!”, Luzia enfatizou que o comentário lhe causou revolta e a fez refletir sobre a questão sobre quais corpos podem circular nos espaços públicos e o que tais corpos podem ou não fazer nesses espaços.
59Ainda nesse sentido, podemos afirmar que os ataques sofridos por Luzia se aproximaram das relações de poder teorizadas por Michel Foucault (1988), sobretudo quando este se refere aos processos de docilização dos corpos. Foucault nos mostra como os corpos são cotidianamente submetidos aos dispositivos que os regulam, constroem e constituem. Partindo da ideia do autor, podemos inferir que a frase proferida nas redes sociais tem como objetivo ridicularizar a performance de Luzia e regular seu corpo e comportamentos para um padrão que emule docilidade e subserviência.
- 6 Outras autoras como, por exemplo, Françoise Vergès, Jota Mombaça, Luciana Ballestrin ou Silvia Cusi (...)
60Já na frase “tantas formas de fazer um protesto legítimo e faz uma palhaçada dessas para sujar a imagem de mulheres que engajam decentemente pelos nossos direitos”, Luzia sofre novamente violência de gênero. A frase contém, ainda que de maneira implícita, a ideia de superioridade entre mulheres, ou seja, existem as mulheres que se engajam “decentemente” e existem aquelas, como Luzia, que são “sujas”, “degeneradas”, “depravadas”, “indecorosas” e/ou “imorais”. Para a teórica Oyèronké Oyewùmí (2021), é a partir da colonização europeia que um modelo hierárquico, entre homens e mulheres, é imposto nas sociedades de origem africana, assim para autora as hierarquias de gênero e as violências advindas dessas são produtos coloniais. Sabemos a partir das leituras de Gonzalez e hooks6, que esse modelo também se aplica às relações entre mulheres negras e mulheres brancas e, não por acaso, o comentário analisado é proferido por uma mulher branca. A partir de nossas experiências, nós autoras, uma mulher negra nordestina (autora) e uma mulher branca sulista (coautora) refletimos sobre situações que geram violência de raça e gênero, e isso nos ajudou no decorrer da escrita do artigo.
61Perante a situações referentes à produção de violência de gênero, Pisani alerta para “a naturalização do processo de formação de homens e mulheres” (Pisani, 2015) dentro das instituições educacionais. Ou seja, ao naturalizamos os papéis de gênero, podemos cristalizar as desigualdades e reproduzir violências e preconceitos.
São os educadores e as educadoras que vão indicar, explicar, desconstruir e transformar os modos de olhar e viver no mundo. Uma vez que o processo de aprendizagem e formação dos sujeitos circunscreve uma estreita relação com os valores vigentes na nossa sociedade (Pisani, 2015, p. 51).
62Luzia nos relatou “foi na escola que aprendi as piores lições sobre raça” (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021). De alguma forma esse relato corrobora a ideia de Pisani e nos leva a afirmar que as violências de gênero e étnico-racial são dispositivos de controle, construídos socialmente que desvelam relações hierárquicas de poder (Foucault, 1988).
63No tópico anterior apresentamos e discutimos alguns aspectos pelos quais o “Banho de Sangue” pode ser analisado pela categoria de interseccionalidades. Vamos apresentar como a cidade de Teresina a partir dos espaços urbanos onde o “Banho de Sangue” é realizado, pode ser problematizada enquanto lócus privilegiados para disputas políticas que envolvem as lutas por moradia urbana, bem como lutas antirracistas e feministas. Raquel Rolnik (1988) descreve a cidade como um imã, que atrai e concentra aglomerados de pessoas, na qual são protegidas e compelidas ao mesmo tempo. E é diante do cenário desordenado da cidade que o “Banho de Sangue” acontece.
64Deste modo, o “Banho de Sangue” visa ocupar mais que o espaço físico, mas espaços de troca com os espectadores, isso pode ser pensado quanto a leitura do público diante da performance. Para a artista, o espaço público e o privado apresentam respostas diferentes quando na realização da performance. Diante disso, consideramos que dependendo de onde os espaços estão localizados nos centros urbanos, e de quem os ocupa, refletem comportamentos e respostas diferenciadas.
65Por tratarmos do conceito de espaço a partir de diferentes visões, consideramos importante resgatar nesse artigo alguns autores(as) que o problematizam, sobretudo porque as intervenções causadas pelo “Banho de Sangue” propõem ações que implicam nas possibilidades de reações, sejam elas diretas ou indiretas, por parte dos seus espectadores. O espaço se mostra como um elemento importante diante de sua construção, pois é escolhido por apresentar uma relação simbólica com o contexto que motivou a sua realização.
66Luzia afirma que é um espaço qualquer e que vai continuar sendo somente um espaço, mas que no momento da realização do Banho de Sangue ele é determinante e só faz sentido se for naquele lugar. Fazendo gestos com as mãos, Luzia narra: “Ali ninguém vai usar [...] existe uma coisa assim de tirar do tempo, desse tempo do cotidiano [...] aquele espaço vai virar um grande desastre”.
67Da Matta (1997) nos diz que o espaço é par, complemento, aparece como elemento interativo diante de nós. Para o autor “o espaço é como o ar que se respira. Sabemos que sem ar morreremos, mas não vemos nem sentimos a atmosfera que nos nutre de força e vida. Para sentir o ar é preciso situar-se, meter-se numa certa perspectiva” (DaMatta, 1997). Lefebvre afirma que “na rua, e por esse espaço, um grupo (a própria cidade) se manifesta, aparece, apropria-se dos lugares, realiza um tempo-espaço apropriado” (Lefebvre, 1999). Teresa Rocha (2016) nos diz que o espaço é complemento e aparece como elemento interativo. Para Giddens (1991), o “espaço” é uma palavra utilizada de forma genérica para designar um lugar. É Wagner Barja (2018) quem define espaço com maior precisão. Espaço para o autor é:
receptor não fixo e não passivo, mas variável e de caráter transitório, um multiplicador capaz de trazer ao projeto de intervenção um alto grau de visibilidade e interatividade com seus componentes espaciais e humanos, tendo-se em conta elementos primordiais como: os indivíduos, o fluxo urbano coletivo, o trânsito, a arquitetura, a paisagem, o clima, a cultura e os demais fenômenos ocorrentes nesse espaço público onde tal intervenção se inscreve (Barja, 2008, p. 213).
68A partir dessa afirmação, Barja (2008) reforça a ideia de que o espaço urbano – que é composto por indivíduos, coletivos, trânsito, arquitetura, paisagem, clima e cultura - deve ser compreendido enquanto elemento constituinte e participante na ação artística. Além disso, afirma que as “características híbridas da linguagem da intervenção urbana são capazes de ultrapassar, inclusive, as fronteiras da própria arte, projetando-se na vida cotidiana” (Barja, 2008). Dessa forma passamos a compreender a ação artística enquanto possuidora de formatos e características muito específicas que objetivam, por sua vez, ressignificar e transformar os espaços a partir da atribuição aos mesmos de novos usos, funções e propriedades, bem como projetar-se na vida cotidiana. Assim podemos inferir que arte e espaço urbano aproximam-se e alteram-se mutuamente.
69Luzia nos fala que para a realização da performance e da dança ela utiliza todos os elementos e equipamentos, sejam eles bancos de praça, pilastras, corrimão, caixas de supermercado, que estejam seu alcance no local e no momento da realização do “Banho de Sangue”. No entanto, para ela, o espaço público e o privado se mostram de formas diferenciadas no que diz respeito à condução da performance.
70Por um lado, no espaço privado, como foi o caso do supermercado Extra, houve um desconforto inicial de Luzia e uma necessidade maior de solicitar proteção por parte dos ativistas que foram assisti-la. Contudo, como ela bem frisa, o “Banho de Sangue” teria que ser naquele local, pois foi em um Extra que o jovem negro foi asfixiado até a morte, logo não faria sentido realizar a performance em qualquer outro lugar. Por outro lado, apesar do espaço público oferecer mais liberdade para a realização do “Banho de Sangue”, nas escadarias da Prefeitura de Teresina ela afirma ter sentido um incômodo, sobretudo pelo fato dos guardas e seguranças estarem posicionados de maneira ostensiva a sua frente, como que fazendo oposição à performance. Para ela, era como se dissessem que a porta da Prefeitura não era seu lugar.
71No “Banho de Sangue”, o espaço se mostra como um elemento importante na construção da performance, pois é escolhido por apresentar uma relação simbólica com o contexto que motivou a sua realização. Os espaços urbanos nos quais as performances do “Banho de Sangue” são realizadas são minuciosamente escolhidos por Luzia. Dessa forma as rua, as praças, as escadarias ou os estabelecimentos escolhidos devem possuir estreita relação com a violência a qual a performance se reporta.
Locais onde os “Banhos de Sangue” aconteceram
Fonte: Autoras, 2023
72No primeiro protesto contra o feminicídio, foi escolhido o trecho da rua que fica em frente ao Palácio Karnak, atual sede do governo do Estado do Piauí. Para Luzia, é o governo do estado que deve ser o principal responsável pelo fomento de políticas públicas voltadas para garantir a segurança das mulheres piauienses. Já para a realização do segundo protesto, contra a desapropriação dos moradores da Boa Esperança, utilizou-se as escadarias da Prefeitura Municipal de Teresina, principal responsável pelo projeto Lagoas do Norte que visava, entre outras medidas, a remoção dos(as) moradores para a duplicação da via. O terceiro protesto, contra o genocídio do povo negro, aconteceu dentro do Supermercado Extra, levando em consideração a situação vivenciada por Pedro Gonzaga, jovem negro de 19 anos, que foi sufocado até a morte dentro de um supermercado, de mesma franquia, no estado do Rio de Janeiro. E por fim, no último protesto contra as vítimas da pandemia de Covid-19 e a remoção da população dos moradores da Boa Esperança, escolheu-se a praça onde está a escultura do bandeirante Domingos Jorge Velho, responsável pelo extermínio de boa parte da população indígena do estado do Piauí.
73É importante ressaltar que todas as ações performáticas aqui descritas são realizadas da mesma maneira, apesar dos distintos contextos e espaços. Nelas, Luzia se banha de sangue, explorando o lugar e fazendo movimentos corporais nos planos alto, médio e baixo, começando sua dança em ritmo lento e produzindo movimentos leves, que se intensificam e aparecem de forma mais agressiva ao final da performance. Para tal movimentação, Luzia se aproveita de sua larga experiência em dança, como bailarina, coreógrafa e performer, além da sua trajetória acadêmica sobre pesquisas voltadas para a área da dança, onde é especialista, mestra e doutoranda. Ao realizar protestos a partir de sua expressão corporal, Luzia ocupa espaços de enfrentamento que habitualmente não são ocupados por mulheres negras.
74Luzia afirma que se inicialmente esses espaços estão desprovidos de sentido e temporalidade, afinal configuram-se apenas enquanto pontos de passagens para os transeuntes e citadinos, a partir do momento em que o “Banho de Sangue” acontece, eles passam a fazer sentido.
Ali [é um espaço] que ninguém vai usar. Existe uma coisa assim, de tirar do tempo, desse tempo do cotidiano. [Com o Banho de Sangue] aquele espaço vai virar um grande desastre (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021, complemento nosso).
75Nesse sentido, o espaço é ressignificado, uma vez que se transforma em palco para uma performance de contestação e revolta. Assim, Luzia apresenta sua performance em espaços simbólicos atrelados de alguma forma às situações de violência que são catalisadoras para realização de cada “Banho de Sangue”. Ela evidencia seu descontentamento através do seu corpo e corporifica sua oposição e revolta frente aos opressores. Sendo assim, a rua é o palco de sua performance.
76Consideramos ainda que é importante, para o desenvolvimento deste artigo, abordar as formas pelas quais acontecem a participação dos espectadores que ocupam os espaços urbanos. Kátia Canton nos diz que:
No emaranhado disperso da vida cotidiana procuramos o eu através do outro, rastreamos nossas histórias e abrimos nossos diários íntimos na tentativa de oferecer verdadeiramente para o mundo. É essa troca genuína de memórias e de sentimentos que buscam os artistas contemporâneos (Canton, 2009, p 35).
77É a partir de olhares, toques, atitudes e expressões que os citadinos interagem com as expressões artísticas nos espaços urbanos. A partir da fala de Luzia Amélia, percebemos que a performance “Banho de Sangue” visa ocupar mais que apenas os espaços físicos da cidade de Teresina. O objetivo é estabelecer trocas com os espectadores e assim provocar reflexões que ensejem uma mudança significativa no que diz respeito às violências vivenciadas cotidianamente por parte da população. O “Banho de Sangue” torna-se, então, o momento para apropriar os espaços urbanos, reunir pessoas para protestar, improvisar movimentos corporais e buscar soluções para tais situações de violência na cidade. É nesse interstício que Luzia concretiza a performance escancarando suas aflições diante das violências cometidas contra corpos subalternos, Spivak (2010).
78Richard Schechner afirma que “com raras exceções, festivais atuais e carnavais não são inversões da ordem social, mas espelhos dela mesma” (Schechner, 2012). Nessa perspectiva, os espaços urbanos emergem como os locais “alvos” de Luzia, pois é neste espaço que uma multiplicidade de pessoas, olhares, opiniões, flashes, holofotes e muitas vezes a junção de tudo isso, alcançarão a internet e espalharão a performance “Banho de Sangue” para além do espaço físico pré-estabelecido. A recepção e a audiência do público, ou de transeuntes no caso de Luzia, são de fundamental importância para que a performance cumpra seu papel de contestar e enfrentar questões relacionadas ao sexismo, racismo e machismo. Ainda nesse sentido, para Schechner:
Uma grande parte da celebração está experimentando a transformação do espaço de trabalho, ou espaço de trânsito, ou algum tipo de espaço oficial em um campo de jogos. Nos últimos 30 anos, experimentadores da performance, um ramo da arte da cultura não oficial, têm se utilizado de espaços ao ar livre - pátios, ruas, muros, praias, lagos, topo de telhados, praças e encostas de montanhas - para um número de propostas que se encaixam - estética, pessoal, ritual e politicamente (Schechner, 2012, p. 159).
79Para Schechner (2012), em seus estudos sobre a performance, o autor discorre sobre a importância da rua, ou dos espaços escolhidos para manifestações performáticas, na qual apresenta um elevado valor simbólico, e em muitas vezes mostra-se enquanto espaço operacional e/ou de poder. Schechner (2012), reitera que pessoas ganham as ruas quando se deparam com a insatisfação causada pela opressão do poder oficial. Segundo o autor, é na rua que acontecem grandes “shows”, ou performances protagonizadas pela humanidade, justamente quando percebem o enfraquecimento do poder vigente. O autor afirma que “as ações revolucionárias urbanas não são previsíveis porque há, no mínimo, dois resultados desejados: um, ou mais, procurado pelo povo que vai às ruas, e outro pelas autoridades” (Schechner, 2012).
80A partir do que foi exposto até o momento, é fácil perceber que o “Banho de Sangue” não é realizado em um espaço artístico privado convencional. O mesmo acontece em espaços urbanos de exposição pública e não se trata apenas de uma dança para o entretenimento das pessoas que a observam, interagem ou simplesmente passam pelo local.
81Luzia relata alguns receios de expor seu corpo nos espaços escolhidos. Da mesma forma, teme comentários maldosos e ataques físicos. Luzia afirma que já respondeu alguns comentários que lhe causaram sofrimento, principalmente aqueles ditos por mulheres nas redes sociais. Ainda sobre as interações com o público ela relata:
Tem gente que quer se aproveitar, tem gente que olha para a calcinha, tem gente que diz que eu estou querendo... Teve aquela história que a menina disse que eu estava querendo, é, como é? “Lacrar”. Eu acho que cada um vê o que está na sua alma, cada um vê [em mim] o que está dentro de si. E aí eu tento me tranquilizar (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021, complemento nosso).
82Além disso, ela relata que vez ou outra, reações que denotam medo, nojo, malícia e/ou racismo acontecem durante a realização do “Banho de Sangue”. Segundo ela, isso ocorre porque performances como a dela não são elementos corriqueiros no cotidiano da cidade de Teresina. Nesse sentido, Luzia nos relatou uma cena na qual um homem idoso, ao ver o “Banho de Sangue”, parou sua bicicleta para perguntar o que havia acontecido. Aquilo lhe chamou a atenção, pois ficou imaginando se ele já havia tido contato com alguma performance artística na rua.
83Diante das adversidades Luzia diz que busca tranquilidade e proteção a partir da espiritualidade de sua mãe e de Maria Lúcia. Como nem tudo são agruras, Luzia também nos fala sobre o que a satisfaz durante a performance “Banho de Sangue”:
Eu vou ali no chão, eu vou para a rua, eu vou dançar do lado da Mariazinha [...] Eu dancei junto com moradores, junto com gente [...] pra mim, mudou a minha vida. Eu dançar pelo seu Raimundo, eu dançar pela Lúcia, pela dona Davina, eu dançar pela Miúda. Eu vou pra lá... Eu acho que isso aí foi um diferencial pra eu me entender como uma artista de rua (Luzia Amélia, em entrevista no ano de 2021, complemento nosso).
84Lembrar das companheiras e dos companheiros da comunidade Boa Esperança, com quem e por quem dançou nas escadarias da Prefeitura Municipal de Teresina e no monumento que homenageia o bandeirante Domingos Jorge Velho, faz com que ela se emocione. Ela continua a falar do companheirismo e do acolhimento que este público lhe oferece, principalmente, demonstrando preocupação com seu bem-estar físico. Para Hannerz (2015) as redes na qual o “Banho de Sangue” se conecta, é formada por diversos círculos sociais, de forma a gerar redes, pois para o autor, a cidade é entendida como uma rede de redes no qual as pessoas se conectam, para além de outras atividades, apropria-se de espaços. Nessas redes os relacionamentos sociais são ligados uns aos outros, na qual há uma relação entre grupos diferentes.
85Segundo Luzia, o “Banho de Sangue” a aproxima de pessoas de vida simples que a incentivam para que continue denunciando as violências a partir de seu corpo e de sua coragem. Ela dá destaque ao apoio dessas pessoas e enfatiza a importância da comunidade Boa Esperança no contexto da performance. Por fim, Luzia expressa que nunca quis que o “Banho de Sangue” tivesse apoio de quaisquer partidos políticos, e nem que mulheres deste meio prestem algum tipo de apoio, pois para ela o governo não tem contribuído com as causas que atingem os desfavorecidos.
86O objetivo deste artigo foi discutir e apontar, a partir de quatro apresentações da performance “Banho de Sangue”, ocorridas entre os anos de 2018 a 2020, e realizadas pela bailarina teresinense Luzia Amélia Marques, quais foram os espaços da cidade de Teresina que se transformaram em palco para desvelar processos de violência e disputas políticas e sociais. A partir da realização dos “Banhos de Sangue”, constatamos que em cada um desses espaços, as ações foram motivadas dentro de um viés artístico, político e social, onde Luzia Amélia utilizou seu corpo como meio para fazer denúncias de violências partindo em defesa de corpos subalternos. Os espaços escolhidos para a realização das ações performáticas mostraram-se como espaços de suma importância por apresentar alto valor simbólico diante da estreita relação com os acontecimentos de violência expostos por Luzia e explanados neste artigo. Por meio da arte performática, a artista posicionou-se em lugares de poder protagonizando o centro das atenções, revertendo e transformando cada espaço ocupado.
87As redes sociais tiveram um papel relevante na divulgação da performance e apresentação ao público virtual, levando instigação e questionamentos além das pessoas atingidas pelas violências aqui descritas. O meio virtual, tal qual as publicações de Luzia, nos proporcionou a realização da pesquisa. Constatamos ainda que Luzia Amélia movimentou suas redes sociais para além dos ativistas e moradores da Boa Esperança que a acompanhavam. Os impactos ocasionados pela performance foram explicitamente percebidos pelas atitudes racistas repercutidas nas redes sociais e em outros veículos de comunicação, mas isso não impediu que Luzia ganhasse seguidores, em sua maioria, mulheres negras, que seguem a artista em projetos atuais.
88Com suas ações, Luzia incomoda a esfera pública teresinense, na qual não se manifesta em nenhuma das performances e se comporta de maneira velada diante do incômodo que Luzia provoca. Por suas atitudes de enfrentamento social e político, Luzia Amélia ocupa uma posição de respeito na esfera artística da cidade, tal qual com a comunidade da Boa Esperança, fazendo-se representar situações adversas através de sua dança. O uso das imagens, entrevistas, e textos publicados nas redes sociais foram de grande valia para o nosso artigo
89Diante dos dados apresentados neste artigo, bem como das teorias levantadas, o “Banho de Sangue” é realizado a partir do corpo de uma mulher negra que atua em oposição ao sistema; assim, as relações interseccionais de poder atuam diante das diferenças sociais e políticas onde Luzia consegue, a partir de sua performance, dar visibilidade a violências expostas por ela em diferentes pontos da cidade, impactando quem assiste ou provocando reflexões diante de problemas sociais vivenciados em Teresina. Sendo uma artista ativista, Luzia dançou em espaços da cidade que atuaram como palcos das ações artísticas e ativistas mostrando inversão nas relações de poder e tais potencialidades do corpo enquanto meio para o fazer artístico, político e social atuaram como arte impulsionada pela transformação do espaço e de pessoas. Por este lado, Luzia tinha como objetivo mudar o espaço, sujar espaços de sangue para mostrar seu inconformismo e raiva ao público teresinense.
90Dessa forma, concluímos que as práticas do “Banho de Sangue” mostram-se enquanto artivismo, pois a partir da arte da dança, a performance foi compreendida como um momento destinado aos protestos de cunho artístico, político e social que reivindicam o fim das violências contra as mulheres, negros e populações tradicionais na cidade de Teresina. Portanto, no “Banho de Sangue”, a capital piauiense foi percebida enquanto espaço privilegiado para disputa política e social que envolve a luta por moradia urbana, bem como lutas antirracistas e feministas. Dessa forma, constatamos que os quatro espaços da cidade de Teresina mostrados neste artigo transformaram-se em palcos para fazer conhecer os processos de violência e disputas políticas e sociais, a partir da realização da performance “Banho de Sangue”.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 2. Ed. Tradução de Sonia M.S. Fuhrmann. – Petrópoles, RJ : Vozes, 2007. ISBN 978-85-326-3327-9