1O presente artigo tem por objeto o conjunto de pichações feitas nos escombros e em torno de cinco bairros fantasmas, arruinados em consequência de um desastre socioambiental em curso no território urbano da cidade de Maceió, capital do estado de Alagoas. O desastre, que veio a público em 2018, é resultado de quatro décadas de mineração de sal-gema do subsolo da cidade pela gigante petroquímica Braskem S/A, desencadeando um processo acelerado de afundamento e um leque de efeitos deletérios sobre o território urbano. A destruição dos cinco bairros - Pinheiro, Bebedouro e Mutange em sua totalidade, Farol e Bom Parto parcialmente - teve como consequência o deslocamento compulsório de cerca de 60 mil pessoas que viviam e trabalhavam no território arruinado, além da deterioração das condições de existência dos que habitam as fronteiras do desastre.
2Desde o recorte dos escritos e desenhos nos muros e paredes, nosso interesse é compreender como os atores sociais respondem ao crime socioambiental a partir das pichações em suas residências e comércios, considerando-as como parte da produção de novas subjetividades em espaços em transformação. As pichações são analisadas a partir da interseção entre as materialidades e formas de resistência e existência, considerando que os atores se articulam mediados pelas estruturas que os cercam ou por sua ausência.
3Os processos de deslocamento compulsório, despossessão, demolição e fechamento parcial dos bairros produziram uma paisagem de ruínas, reconfigurando as vidas e projetos de futuro das pessoas que deixaram suas casas ou passaram a viver no entorno dos chamados “bairros fantasmas”. A imagem drástica de bairros abandonados, com fins anunciados, é inseparável das pichações e grafites que encontramos nos muros e paredes remanescentes das construções degradadas. Tais intervenções acionam memórias, frustrações, denúncias e reivindicações dos moradores frente à impossibilidade de permanecer nos bairros onde construíram suas trajetórias de vida.
4O artigo está dividido em cinco seções, a começar por uma breve explanação metodológica. Em seguida, apresentamos algumas considerações de cunho teórico em diálogo com a literatura antropológica. Apoiamo-nos na noção de evento crítico (Das, 1995, 2020) para compreender os efeitos subjetivos desta violência aniquiladora de um mundo compartilhado. As reflexões de Das nos dão subsídios para analisar as pichações como um recurso expressivo que permite aos sujeitos falar sobre as perdas materializadas na paisagem espectral dos bairros fantasmas. Articulamos essa discussão com a literatura sobre graffiti em contextos críticos, destacando o conceito de catastroffiti, de Hagen et al. (1999), como contribuição para o campo incipiente. Tal diálogo nos permite fazer uma leitura das pichações na chave da mobilização popular e da formação de comunidades políticas. Por fim, a partir da literatura sobre ruínas, apresentamos as convergências entre as preocupações compartilhadas pelo campo teórico, enquanto objeto para pensar temporalidades e memórias, e as temáticas manifestadas em meio ao arruinamento dos bairros pelos próprios atores sociais por meio das pichações.
5Contextualizamos o crime socioambiental da Braskem em Maceió, compreendendo o desastre enquanto processo em curso, e retratamos o processo de deslocamento compulsório dos moradores e o arruinamento dos bairros. Introduzimos as imagens de pichações e interventores locais, incluindo projetos fotográficos do qual fazemos parte, na capacidade de enunciadoras do desastre e de seus efeitos sociais, assim como de transformadores da paisagem. Desde a experiência etnográfica, localizamos as intervenções desde suas materialidades e em diálogo com os processos de arruinamento, demolição das propriedades e encolhimento da vida social na região, considerando que elas permitem materializar o processo crítico em curso.
6Na seção seguinte, argumentamos que destruição do cenário físico e da tessitura social e cultural da vizinhança gerou a fragmentação da memória histórica e coletiva compartilhada pelos moradores, a destruição da arquitetura do cotidiano e dos sistemas de significados a ela associados. As pichações feitas por moradores e ex-moradores nas paisagens de seu cotidiano roubado podem ser compreendidas como formas de recodificar e expressar a experiência inenarrável de perda e empobrecimento frente à violência sofrida. Por fim, analisamos dois temas centrais identificados nas pichações para compreender os impactos do desastre na emergência de novas subjetividades.
7Este artigo foi escrito a várias mãos. Os três pesquisadores que colaboraram para a construção deste trabalho são vinculados a programas de pós-graduação distintos, participam de grupos de pesquisa diversos e frequentam universidades em diferentes regiões do Brasil (sudeste, centro-oeste, nordeste). Conduzimos trabalhos de campo etnográficos independentes entre si, variando em duração e início das investigações (2022, 2021 e 2018 até o presente), repertórios técnicos privilegiados de cada antropólogo, redes de relações cultivadas com interlocutores, interesses específicos de pesquisa, posturas e posições relativas ao contexto empírico. A catástrofe, o território por ela marcado e suas fronteiras, seus habitantes expulsos e remanescentes são motes comuns às três pesquisas. Em outubro de 2022, enquanto realizávamos investigações etnográficas simultâneas em Maceió, nós três convergimos por intermédio de contatos previamente estabelecidos em campo. Cooperamos presencialmente em algumas ocasiões, agregando nos esforços de pesquisa e na construção de dados por meio de observação participante, entrevistas semiestruturadas e percursos fotoetnográficos.
8A fotoetnografia, em especial, é um recurso privilegiado na produção do terceiro autor deste artigo. O antropólogo é criador e coordenador do projeto Cotidiano Fotográfico, que objetiva registrar o dia a dia da cidade de Maceió para além de sua imagem turística, e acompanha os desdobramentos do desastre desde suas primeiras manifestações. Voltaremos a tratar do Cotidiano Fotográfico em um momento posterior do texto, situando o projeto, assim como a própria prática antropológica, no mesmo nível de realidade compartilhado por todo o conjunto de atores que conformam o campo empírico em questão. Por ora, adiantamos que o acervo do projeto foi um material primário de análise neste trabalho. Os registros compilados ao longo dos últimos cinco anos incluem 71 instâncias de pichações e grafites singulares em muros externos e paredes internas de imóveis na região dos bairros fantasmas e seu entorno. Além deste acervo e dos dados etnográficos produzidos pelas duas autoras, trabalhamos com análise documental de registros de jornais locais, documentos jurídicos produzidos no contexto da investigação encabeçada pelo Ministério Público Federal, e materiais publicitários produzidos e divulgados pela Braskem S/A. Faremos menção a esses dados ao longo do texto na medida em que contribuem para avançar a análise. Este artigo é, em suma, um retrato compósito de investidas etnográficas, dados primários e secundários, experiências de trabalho individual e conjunto, diálogos e negociações entre os três antropólogos que o assinam.
9Nos últimos anos, a literatura antropológica tem somado publicações na linha de uma incipiente antropologia do desastre no Brasil (Taddei, 2016; Ribeiro, 2020), que se volta principalmente para contextos críticos consequentes dos efeitos deletérios das mudanças climáticas e/ou para a gestão de riscos em sistemas sociotécnicos. Uma definição comum de desastre implica a desorganização da ordem social, cultural, econômica e política de uma coletividade; Taddei (2016) argumenta que, longe de excepcionais, as catástrofes estão praticamente embutidas nas formas de organização econômica e política brasileiras.
10Este trabalho não compartilha do propósito de contribuir para a construção de um conceito unificado de catástrofe. Antes, nos interessam os modos de conhecer a catástrofe a partir da convivência cotidiana, e a prática etnográfica nos sugere que esse registro de saber é inaugurado pela crua dificuldade. Como entender, então, de que formas essa violência é absorvida na vida das comunidades? Como a experiência vivida da catástrofe é expressa, suportada ou sublimada? Que tipo de socialidade é reconstituída no rescaldo da desagregação? Ou, nos termos de Veena Das (2022), como a vida é refeita por meio das éticas e estéticas do cotidiano?
11O conceito de evento crítico elaborado por Das (1995, 2020) nos dá subsídios para pensar as interpenetrações entre a catástrofe, em sua brutalidade extraordinária, e os registros semânticos da vida cotidiana que tornam a experiência tangível e inteligível sob diferentes recursos expressivos. Por evento, entende-se, a princípio, um constructo histórico que constitui uma ruptura com o ordinário. Essa noção torna-se mais complexa na medida em que os eventos se entremeiam no cotidiano ao longo do tempo. Traçar fronteiras em torno de um evento qualquer não é uma tarefa simples; mapear quando um evento começa e termina, como diferentes eventos em uma cadeia de conexão se mimetizam uns aos outros, como o evento pode se remeter e se fixar ao cotidiano de modos específicos, e como o que aparece como fruto da contingência absoluta pode, em uma análise mais detida, revelar rastros da socialidade cotidiana.
12No limite, o evento torna-se uma instância sempre ligada ao ordinário. O que delimita as fronteiras entre um e outro é o fracasso da gramática do ordinário (2020, p. 30) em lidar com as circunstâncias inauguradas pelo evento. Esse fracasso da gramática, que implica no fim dos critérios estabelecidos, é o que a autora vê como a violência aniquiladora do mundo. Na elaboração de Das (1995), o evento crítico é um evento por excelência, pois inaugura uma nova modalidade de ação histórica que não estava inscrita no inventário da situação. Após o evento, novos modos de ação passam a existir, redefinindo categorias tradicionais, e uma variedade de grupos políticos assume novas formas (idem, p. 5). Isto posto, interpretamos as pichações como expressões características da nova gramática do cotidiano em vias de constituição.
13A literatura especializada nos fornece subsídios para apoiar e ampliar esta interpretação. Carastathis e Tsilmpounidi (2021) afirmam que os muros de cidades se tornam telas de resistência diante de contextos críticos ao comunicarem e amplificarem discursos contra múltiplas formas de violências e desigualdades. Considerando as variações terminológicas para as múltiplas formas de escrever e marcar os muros e demais aparatos urbanos da cidade, entendemos que a atual diferenciação realizada entre street art e graffiti na literatura de língua inglesa equivale, em certa medida, às posições do grafite e da pichação no Brasil. Enquanto o primeiro é hoje vinculado à ideia de painéis elaborados realizados no tecido urbano, inclusive com inserção no mercado da arte, entende-se por pichação os escritos realizados de forma rápida e clandestina em muros e edificações da cidade (Souza, 2007). As pichações, ou graffiti, surgem tanto por meio de tags com pseudônimos dos pichadores quanto por frases escritas, frequentemente de caráter contestatório e com viés político, denominado por political graffiti (Pavoni; Zaimakis; Campos, 2021). A partir da difusão destas práticas por cidades de todo o mundo, interessa-nos discutir a relação entre eventos críticos e a aparição do political graffiti, aqui nomeado enquanto pichação, no tecido urbano.
14A pichação apresenta-se como possibilidade de reação e construção de narrativas alternativas no espaço público diante de um cotidiano marcado, cada vez mais, por um “estado permanente de emergência, precariedade e incerteza” (idem, p.1). Tal relação remete à própria ascensão do graffiti enquanto prática disruptiva junto ao movimento hip-hop em cidades norte-americanas marcadas por desigualdades sociorraciais na década de 1970 (idem). Os autores argumentam que tais práticas ativistas e artísticas se unem em formas visuais de protesto que desafiam o consenso existente e transformam a aparência da paisagem urbana.
15O surgimento das pichações em tais contextos permite acessar reivindicações dos atores sociais que frequentemente não aparecem em narrativas predominantes, como de mídias tradicionais (Sharaf, 2015). Carastathis e Tsilimpounidi (2021) argumentam que, por esse motivo, as autoridades são perspicazes em controlar e eliminar grafites e pichações desde a justificativa de depredação do espaço público. A partir do conceito de direito à cidade de Lefebvre, Zieleniec (2020) compreende as pichações como possibilidade de usufruir e produzir o espaço urbano, ainda que de forma temporária. Em meio a práticas homogeneizantes do planejamento urbano, comércio e da extensa regulamentação e crescente policiamento dos espaços públicos, tais intervenções permitem disputar narrativas nas paisagens urbanas a partir do plano material.
16Enquanto formas alternativas de compreender experiências locais, a pichação se estabelece em contextos críticos como indicador de interações, prioridades e políticas especializadas dos atores sociais (Haworth et al., 2022). A espacialidade de tais intervenções pode representar os caminhos realizados pelos remetentes, como “pegadas” de manifestações políticas em espaços centrais das cidades (Di Filippo, 2016), com o objetivo de estabelecerem discursos de resistência e reivindicação no espaço do cotidiano urbano. Além disso, pichações em contextos de repressão e violência também apoderam-se de espaços com o propósito de denúncia e homenagem às vítimas, revelando indignação e impotência enquanto estabelecem um diálogo com aquele ao qual querem homenagear (Medeiros, 2014).
- 1 O trabalho de Teixeira (2018) menciona mensagens anônimas escritas nas ruínas de Bento Rodrigues ap (...)
17A associação entre contextos de catástrofes e o surgimento de pichações é, entretanto, escassa na literatura das ciências sociais1. Hagen et al. (1999) sugerem que o tema deveria ser mais explorado por acadêmicos devido à profusão de escritos e desenhos em muros em contextos de desastre, indicando o termo catastroffiti para abordar tais cenários. Os autores consideram que estes escritos possibilitam a criação de um discurso comunitário, no qual os moradores podem expressar suas frustrações, tristezas, esperanças e sobrevivências (idem, p.155). Em oposição à relação do pixo com o anonimato citadino e a formulação de pseudônimos (Campos, 2009), o catastroffiti é realizado frequentemente na própria residência ou estabelecimento comercial pelos seus donos. A associação da literatura sobre grafites e pichações enquanto táticas de subversão frequentemente associadas a ações de vandalismo também não ocorre em relação aos catastroffitis (Alderman; Ward, 2008)
18Ao se fazerem presentes no próprio território atingido pelo desastre, os catastroffitis ocupam por vezes o mesmo espaço de outras intervenções no aparato urbano realizadas por parte das autoridades, servindo como resposta que subverte as narrativas burocráticas e estanques sobre os processos de preparação ou recuperação de um desastre (Hagen et al., 1999). Nessa mesma linha, Alderman e Ward (2008) evidenciam os usos das materialidades utilizadas para prevenir-se de furacões como aparato para a execução de catastroffitis. A partir de pedaços de madeira compensada em janelas, úteis para a proteção de ventos fortes e detritos voadores, moradores utilizam-os como suporte material tanto para mensagens de sobrevivência e alerta, quanto mensagens que focam em aspectos psicológicos, como desespero, fé e esperança.
19Como um segundo conjunto de estudos analisados, a literatura antropológica sobre ruínas se mostrou conciliável com o caso devido aos temas abordados pelos pesquisadores e sua confluência com os conteúdos das pichações analisadas. Identificamos como as principais temáticas abordadas na literatura o fato de que a reflexão sobre ruínas permite a) argumentar sobre processos de declínio e desestruturação de sistemas sociais a partir da materialização de sua decadência, b) discutir passado, presente e futuro, incluindo as possibilidades de recuperar ou não o esquecido, agir sobre o presente e imaginar futuros e c) analisar o (não) uso desses territórios e as materialidades que constituem o cotidiano. Junto a esse debate, incluímos indagações referentes a extrativismos, compreendendo que o arruinamento de espaços afetados por crimes socioambientais não ocorre sem uma série de atravessamentos econômicos e políticos.
20 Os registros das ruínas a partir de sua associação com processos de decadência e desestruturação de sistemas sociais têm como referência os escritos de Walter Benjamin. O autor analisa as ruínas enquanto a materialização das tendências destrutivas do capital e que, por consequência, permitem perfurar a retórica capitalista em relação às narrativas sobre progresso (Dawdy, 2010). As casas e ruas abandonadas em Maceió tornam visíveis e concretos os efeitos da mineração desenfreada, que teve como justificativa e expectativa desde sua implementação o desenvolvimento da região, a inserção de Maceió e Alagoas no mercado e geração de empregos e renda (Vieira, 1997 apud Martins; Ribeiro, 2016). Dentre os gêneros abordados pelos grafites nos bairros abandonados, aqueles dirigidos à Braskem expõem as contradições referentes ao processo de exploração de sal-gema nos muros dos territórios atingidos pelo afundamento do solo [Figura 1].
Pichação: BRASKEM SEU LUCRO É SANGUE
Fonte: Cotidiano fotográfico, Bairro do Pinheiro, Maceió, 2021
21Como segundo aspecto, a relação entre ruínas e temporalidades surge a princípio pela marca do passado e pelo que “um dia já foram” (Gankó, 2019, p.246), remetendo a discussões sobre memória e luto. Reyes Herrera et al. (2014) as consideram enquanto uma fragmentação entre o passado como lembrança do que já não existe, o presente em ruínas e o futuro marcado pela incerteza e sentimento de abandono, de modo que a própria vida no presente é refém da potencial violência que representa o futuro, como aponta Schafers (2016). As intervenções realizadas pelos moradores por meio das pichações evidenciam justamente esse lugar da memória e luto pela casa e pelo bairro, como veremos nos tópicos seguintes.
22Por fim, a inscrição das ruínas no cotidiano surge a partir dos (des)usos do território e de seus materiais. Gankó (2019) e Schafers (2016) entendem que a separação entre os usos comuns de áreas urbanas e os de áreas ocupadas por ruínas se dá tanto pelo medo e insegurança que essas áreas promovem a partir do seu esvaziamento quanto pelos potenciais riscos que a estrutura e território oferecem. Archambault (2021), Dawdy (2010) e Pusca (2010) argumentam, nesse sentido, como os materiais que compõem as ruínas adentram o cotidiano por meio de usos comerciais, quando os objetos que compõem casas e edifícios se tornam interesse de comércio, reciclagem e reuso, assim como é aproveitado o abandono desses espaços para a realização de atividades clandestinas.
23 Compreendemos que os temas analisados na literatura sobre ruínas apresentam-se, pragmaticamente, para os próprios atores sociais por meio da análise das pichações que realizam no território. Desse modo, a experiência do arruinamento de suas casas e bairros levam os moradores a se manifestarem em relação às tendências destrutivas do desenvolvimento capitalista em seus efeitos locais por meio de críticas à empresa e à ruptura das temporalidades, e ampliam a discussão sobre usos e desusos do território a partir das intervenções, como discutiremos nos tópicos seguintes.
24A história da extração de sal-gema em Maceió teve início nos anos 1940. No processo de prospecção de petróleo em uma área próxima à Lagoa Mundaú, ao sul de Maceió, foi encontrado um leito de sal-gema sob a cidade. A descoberta imprevista do mineral demonstra, contudo, que a dinâmica de exploração de recursos minerais já se fazia presente na região, como argumenta Ticianeli (2015). O primeiro complexo industrial de exploração de sal-gema em Maceió foi estabelecido em 1967, composto pelas empresas Salgema Indústrias Químicas S/A e Salgema Mineração S/A. Em poucos anos, o complexo recebeu investimentos vultosos do BNDES e, em seguida, da Petrobras Química S/A (Petroquisa).
25O contexto de instauração dessa indústria em Alagoas, em meio à ditadura civil-militar, evidencia a dinâmica característica das relações de cooperação entre Estado e empresariado à época do “milagre econômico”, que resultou na falta de regulamentação para a atividade extrativista e na omissão de riscos sociais e ambientais do debate público. Ainda assim, o histórico de contestação popular dos impactos gerados pela extração mineral se fez presente desde os planos de fundação da empresa, como evidenciado por registros das intervenções urbanas da época [Figura 2].
26O grupo Odebrecht entrou com um investimento minoritário no complexo industrial Salgema em 1981, quando a exploração do minério de sal começou a gerar lucros, e adquiriu controle em 1995, aproveitando-se do processo de privatização do setor então em andamento. Em 2002, a Braskem S/A foi fundada, resultado da fusão de vários empreendimentos da Odebrecht e de mais algumas grandes aquisições do grupo no setor. A gigante petroquímica Braskem é uma empresa transnacional de capital aberto, cujos acionistas majoritários são o conglomerado Nonovor (antiga Odebrecht) e a Petrobras. Em Alagoas, a empresa possui quatro unidades, duas em Maceió e duas na antiga capital Marechal Deodoro, que pertence à Região Metropolitana de Maceió. Três destas unidades são plantas químicas, incluindo a unidade do Pontal da Barra, e a quarta, localizada nos escombros do bairro do Mutange, é responsável pela administração das 35 minas de sal perfuradas pela Braskem em vários bairros de Maceió, hoje oficialmente desativadas e em processo de preenchimento.
PONTAL É VIDA, SALGEMA É FOME
ONDE VOCÊ VAI MORAR SE O PONTAL ACABAR?
Fonte: Vieira, 1997
27Ao longo de mais de quatro décadas, a exploração de sal-gema para a produção de PVC e soda cáustica gerou uma série de acidentes que atingiram tanto trabalhadores quanto moradores de bairros próximos à indústria, como é o caso do Pontal da Barra (Vieira, 1997). Entretanto, pouco se sabia sobre a extensão das cavernas que eram cavadas sob os bairros da cidade. As inseguranças e violências vivenciadas pelos moradores dos bairros atingidos alcançaram níveis desmedidos a partir de fevereiro de 2018, com os primeiros indícios de afundamento do solo no bairro do Pinheiro a partir do surgimento de crateras e rachaduras nos imóveis e ruas do bairro, e a consequente evacuação dos primeiros moradores.
- 2 Os bairros do Pinheiro e do Farol eram caracterizados enquanto bairros de camadas médias, ainda que (...)
28No decorrer dos últimos cinco anos, as ruínas dos cinco bairros consumidos pela mineração de Salgema se constituíram sobre os escombros de mais de 14 mil imóveis, avançando sobre uma área de 300 hectares do território urbano de Maceió (Fragoso, 2022). Desde que as primeiras rachaduras foram noticiadas, o território adentrou um processo de transformação contínua e assumiu diversas feições, nenhuma delas definitiva. Se antes os cinco bairros contíguos possuíam características espaciais e sociais particulares2, distintas entre si e interrelacionadas de formas plurais, este evento crítico (Das, 1995) os unificou em sua desfiguração, condensando-os em uma presença espectral no coração da cidade.
29O percurso etnográfico nos bairros em processo de abandono e arruinamento em Maceió nos coloca em confronto com o que está bruscamente desaparecendo, da contínua demolição das propriedades ao encolhimento da vida social na região. A preocupação do registro diante do que está em transformação é uma discussão que remete à origem da antropologia, considerando a então perspectiva de que seria necessário registrar culturas diante de seu aparente desaparecimento (Malinowski, 1984), ocultando processos coloniais violentos inscritos nesses processos.
Antes e depois da Ladeira do Calmon, Bebedouro
Fonte: Google Street View (2012) e Luiza Fonseca (2022)
- 3 Como se vê na Figura 3, a Ladeira do Calmon, no bairro do Bebedouro, ainda é utilizada como via alt (...)
30O registro fotográfico de ruínas, objeto que representaria por excelência os vestígios de algo que deixou de existir, é também tema de discussão. Millington (2013) considera como representações fotográficas e jornalísticas sobre as ruínas reforçam a dicotomia entre o cotidiano e os espaços ocupados por ruínas, enfatizando como a natureza que ‘invade’ os terrenos e construções é destacada nas representações à parte da vida cotidiana e das dinâmicas urbanas, resultando na invisibilização daqueles que habitam e convivem nesses território. No caso analisado, compreendemos que o arruinamento dos bairros é acompanhado de diferentes manifestações de vida social, ainda que profundamente alteradas pelo deslocamento compulsório de moradores e comerciantes3.
31Fazer-nos presentes enquanto pesquisadores diante de tal contexto demanda, portanto, um posicionamento ético diante da conjuntura, construído a partir do diálogo com os atores sociais em campo, tanto moradores quanto demais agentes que se empenham em dar visibilidade ao caso. Com o intuito de desenvolver sobre as pichações no território, incluímos a pesquisa e duas iniciativas de projetos fotográficos e interventores locais enquanto esforços de registrar o cotidiano e a ruptura, categorias que dão nome aos projetos fotográficos, frente às transformações drásticas que ocorrem no território.
32O projeto Cotidiano Fotográfico, de um dos autores do presente artigo, surgiu como iniciativa de fotografar o dia a dia na cidade de Maceió, renegado diante das imagens turísticas da cidade litorânea. Desde as primeiras manifestações do desastre em curso, o cientista social e fotógrafo se dedica a registrar os bairros em afundamento considerando a pouca visibilidade do crime socioambiental no cenário local e nacional. Suas fotografias compreendem as transformações constantes nos bairros atingidos pelo afundamento do solo, compondo o maior acervo fotográfico referente ao desastre, com mais de 5 mil fotos dos cinco bairros atingidos desde o ano de 2020.
33O projeto Ruptura, idealizado por Andréa Guido, reúne fotógrafos da cidade de Maceió, alguns dos quais foram deslocados compulsoriamente de suas casas ou ainda vivem nos bairros atingidos. Além das fotografias disponibilizadas em suas redes sociais, o projeto participou de exposições fotográficas no Complexo Cultural do Teatro Deodoro, em Maceió. Destacamos também duas intervenções realizadas pelo projeto em Maceió. Em novembro de 2021 o coletivo realizou uma intervenção na orla da praia de Pajuçara com o título “Finados bairros”, em que foram impressas fotografias do projeto em lenços e, a partir de suas vendas, o dinheiro foi doado para o asilo de Bebedouro. Como segunda iniciativa, foram feitas colagens em lambe-lambe com fotografias em um prédio no Bebedouro [Figura 5], em frente a praça Lucena Maranhão, e outra no Pinheiro, em edifício que foi demolido pela Braskem em março de 2023.
O lambe-lambe (Projeto Ruptura) e a demolição do edifício no dia 25 de março de 2022
Fonte: Luiza Souza (2022) e Cotidiano Fotográfico (2023)
- 4 A ação faz parte do Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação iniciado em 2020 após T (...)
34Ainda que estudos sobre graffiti e pichações considerem a natureza efêmera dessas intervenções (Lima et al., 2022; Victoria; 2023), o caso aqui apresentado tem como particularidade o fato da maioria das intervenções serem feitas em locais que estão sob controle da empresa e destinados à demolição. A indenização aos moradores é feita a partir da compra de seus imóveis pela Braskem, de modo que a empresa passa a ter controle de grande parte do território atingido pela mineração4. Por consequência, as intervenções também são rapidamente cobertas ou derrubadas pela empresa ou por companhias terceirizadas contratadas, de modo que as fotografias realizadas ao longo dos últimos cinco anos são essenciais para manter um acervo das pichações e registrar as súbitas transformações da paisagem.
- 5 Aqueles que seguem morando em suas casas em áreas majoritariamente inabitadas também questionam par (...)
35Os fotógrafos que compõem o Cotidiano Fotográfico e o Projeto Ruptura relatam que em suas incursões pelos bairros são reiteradamente abordados por seguranças de uma empresa privada contratada pela Braskem. A vigilância dos bairros ocorre a partir de câmeras e drones; quando são identificadas pessoas fazendo registros ou mesmo andando pelos bairros, servidores da empresa logo aparecem questionando o que está sendo feito e fotografado, reiterando que as pessoas estão sendo gravadas e que é proibido entrar em imóveis abandonados, propriedades da Braskem. Durante o processo de campo, em conversas com uma interlocutora do Projeto Ruptura, a questão da “segurança” realizada pela empresa terceirizada foi questionada. Ela relata que a empresa exerce uma vigilância meticulosa em relação aos imóveis desocupados e à área ao redor, o que não ocorria com os moradores e suas residências enquanto nelas viviam5.
36Em meio a esse cenário de controle e vigilância, as pichações analisadas não surgem como única marcação nos muros de imóveis abandonados. Códigos grafados pela empresa e pela Defesa Civil indicam os imóveis condenados por meio de X vermelhos e números de série. São estes inclusive os primeiros símbolos a marcar os muros de imóveis quando ainda são ocupados pelos moradores. Ao apropriarem-se dos mesmos locais que os signos tecnocráticos do desastre, as pichações disputam a narrativa sobre o crime socioambiental, tal qual aponta a literatura sobre catastroffiti.
QUANTO CUSTA A MINHA HISTÓRIA?
Fonte: Cotidiano Fotográfico, Bairro de Bebedouro, Maceió, 2020
37A materialidade sobre as quais as intervenções são realizadas também é pertinente pois revela a temporalidade das mesmas em relação ao arruinamento. Na Figura 6, as pichações em vermelho ocupam exclusivamente o espaço do muro da casa. O tapamento de tijolos é realizado por terceiros contratados pela Braskem após a remoção dos moradores, quando estes costumam retirar portas, janelas e telhas para reutilizar ou revender. O concreto marcado pelas pichações, e único material não reaproveitável, compõe as imagens de arruinamento junto à natureza que toma os espaços (Archambault, 2021). Essas pichações, mais comuns, ocorrem portanto antes ou durante o período em que o morador está sendo removido. Já na figura 7, podemos ver inscrições em vermelho feitas pelas Braskem e Defesa Civil no muro azul do imóvel e a pichação “Minha família morou aqui” feita sobre o tapamento de tijolos, significando que aqueles que realizaram a pichação retornaram ao local posteriormente.
MINHA FAMÍLIA MOROU AQUI
Fonte: Cotidiano Fotográfico, Bairro do Pinheiro, Maceió, 2021
38As intervenções urbanas e seus respectivos registros fotográficos possibilitam materializar o processo crítico do crime socioambiental enquanto ele se inscreve nos espaços e na vida cotidiana (Mbembe; Roitman, 1995). Ao tomarmos os grafites, pichações e demais intervenções enquanto um dos enunciadores do crime socioambiental e de seus efeitos sociais, entendemos que as estruturas em ruínas sobre as quais eles estão inscritos dão existência material ao luto e às reivindicações dos moradores dos bairros.
39A estética da catástrofe é artificialmente unívoca. Por todos os lados vê-se esqueletos de alvenaria barricados por tapumes de aço galvanizado, recobertos por vegetação invasiva. Edificações verticais e horizontais arruinadas, sem portas, sem janelas, sem telhados, tapadas e remendadas repetidas vezes por tijolos de concreto. Uma quantidade crescente de lotes vazios terraplanados e ruas de acesso interdito, vigiadas noite e dia por funcionários terceirizados a serviço da Braskem, rondadas por cachorros e gatos abandonados. E, ubíquas como os escombros, as pichações. Como forma de intervenção urbana, tão estética como política, manifestam uma série de disputas que ocorrerem no âmbito dos processos de deslocamento compulsório e arruinamento que reconfiguraram o espaço urbano dos ditos bairros fantasmas e suas adjacências. Antes, no que há de fundamental, as pichações são testemunhos da aniquilação de um mundo.
Casas abandonadas sem telhas, portas e janelas no bairro de Bebedouro
Fonte: Cotidiano Fotográfico, Bairro de Bebedouro, Maceió, 2021
- 6 Veena Das (2020) argumenta que a voz não é idêntica ao discurso, tampouco se opõe à escrita – a voz (...)
40Tal como a entendemos, a violência destrutiva da catástrofe escapa a qualquer narração. Sempre faltam palavras para expressar a devastação irreversível de um mundo compartilhado, a perda de uma forma de vida singular e insubstituível. A expropriação dos bairros afundados foi um grande acontecimento que aniquilou um mundo no sentido propriamente material e engendrou, em seu esteio, uma aniquilação subjetiva. A ruptura com a memória histórica e afetiva compartilhada entre moradores, a extinção da socialidade cotidiana da vizinhança, dos arranjos de moradia entre gerações de parentes e afins, a fragmentação das manifestações culturais e religiosas tradicionais celebradas em espaços que não existem mais, a destruição dos trajetos, da própria arquitetura do cotidiano e dos sistemas de significados a ela integrados – são muitas as imagens de perda e empobrecimento associadas às ruínas. Para entender os efeitos subjetivos de toda essa metafísica da perda, voltamos nossa atenção para as condições sob as quais se torna possível falar da experiência, e encontramos nas pichações uma maneira de expressá-la e recodificá-la na voz6 das vítimas, reocupando os signos da destruição.
ENQUANTO EU DORMIA CAVARAM MINHA COVA NO FUNDO DO MEU PEITO
Fonte: Cotidiano Fotográfico, Bairro de Bebedouro, Maceió, 2021
41O processo de deslocamento compulsório dos moradores foi inscrito no inventário do evento como uma morte social coletiva. O mote da morte em vida aparece, por vezes, de maneira explícita. Na ladeira do Calmon, um trecho de Bebedouro já arruinado mas ainda muito transitado, lemos um verso no muro: “Enquanto eu dormia, cavaram minha cova no fundo do meu peito” [Figura 8]. Essa e outras intervenções incorporam e rearticulam certos códigos culturais de luto, tomando, no geral, a forma de lamentos. O trabalho desempenhado por esses lamentos de luto começa por tornar pública a perda. É pertinente reiterar que, assim como no caso dos catastroffitis, as pichações que encontramos nas ruínas dos bairros fantasmas têm autoria explicitamente reivindicada por moradores e ex-moradores. De fato, há um gênero amplamente difundido de pichações que basicamente registra e declara os nomes dos antigos moradores nos destroços de suas casas demolidas, projetando a história particular da família na esfera pública [Figura 9].
Árvore genealógica entre códigos de série no bairro do Pinheiro
Fonte: Cotidiano Fotográfico, Maceió, 2021
42Os lamentos são dirigidos à própria família, aos antigos vizinhos, aos possíveis transeuntes, aos bairros destruídos, às autoridades públicas, à Braskem, a Deus. Em todos os casos, a autoria expressa os pontos de vista simultâneos de vítima e testemunha, e a mensagem se destina a um receptor que é, ele mesmo, também testemunha da violência perpetrada. Em meio às ruínas, a violência é palpável, audível e visível. As pichações, aqui, operam não apenas no registro gráfico da palavra escrita, mas como gestos – elas apontam para o ambiente que as circunda, demandam a apreensão de todo o contexto de devastação em que estão imersas, e gritam a gravidade irreparável do dano. As pichações, como símbolos e como gestos, mostram a dimensão inenarrável da perda por meio da objetivação do sofrimento no espaço.
43Identificamos dois temas centrais que atravessam o conjunto de pichações que registramos e analisamos no espaço dos bairros fantasmas: amor e crime. Em seu contexto empírico, esses temas com frequência se entremeiam nas mesmas mensagens. Para fins de análise, contudo, discutimos os temas separadamente.
44Que tipo de tema é o amor? Inefável, indefinível, fugidio, não o perseguiremos em suas definições, mas em suas manifestações cotidianas. Aqui, vemos o amor em expressões de saudade – do bairro, do casa, dos vizinhos e amigos, da história que a família construiu no lugar. Nos muros de diferentes casas, lemos as seguintes frases: “Aqui morava uma família feliz”, “fomos felizes aqui!”, “bons amigos se reuniam aqui” “saudades eternas do Pinheiro”, “saudade Bebedouro”, “posso até sair daqui, mas esquecer jamais”, “gratidão, Pinheiro, por acolher nossa história por mais de 30 anos”, “família Nascimento, 70 anos de história nessa casa”, “55 anos deixados para trás!”, entre muitas outras. Várias pichações evocam memórias de um passado próximo, mas já nostálgico, que, à maneira de um ente querido velado, é relembrado por suas melhores qualidades.
45Encontramos, por todos os lados, imagens que recuperam cenas comuns do cotidiano perdido. A Figura 10 retrata uma delas: nos azulejos remanescentes na parede de uma casa de esquina, o desenho de três dominós conectados em sequência, à semelhança de uma cruz. Uma das autoras foi levada até essa casa por uma interlocutora, que tinha uma relação afetiva com os antigos moradores. Essa interlocutora chamou atenção para o desenho e contou a história por trás dele: no pavimento térreo daquela casa funcionava um pequeno comércio de administração familiar, enquanto a família residia no primeiro andar. Todas as tardes, durante anos, o pai daquela família armava uma mesa na calçada e jogava dominó com os vizinhos e amigos enquanto cuidava do comércio junto com a esposa e, ocasionalmente, com a filha adulta.
Pichação de Peças de Dominó em Formato de Cruz
Fonte: Aissa Petronilho. Bebedouro, Maceió, 2022
46Após a expulsão dos moradores daquela rua de Bebedouro, em 2021, a família não encontrou na cidade um imóvel que comportasse todos os parentes que coabitavam na antiga residência, tampouco um que pudesse reproduzir o mesmo arranjo de comércio/moradia. Tanto o auxílio aluguel como o valor final da indenização proposta pela Braskem nos parâmetros do Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação foram insuficientes para assegurar a reprodução da forma de vida daquela família, considerando o profundo impacto da catástrofe no mercado imobiliário de Maceió (Angelo, 2021).
47O pai da família, descrito por nossa interlocutora como um senhor de certa idade, sofreu imensamente a perda da comunidade, da interação diária com amigos e vizinhos que não conseguiu se restabelecer no bairro em que hoje reside, além, evidentemente, da fonte de renda da família. O desenho dos dominós é, portanto, um monumento erigido à socialidade da vizinhança, um testemunho da importância dos laços afetivos que foram rompidos ou fragmentados. Para a família, esse é o símbolo mais representativo das memórias queridas de sua vida passada.
48Em contraste, um tema pungente que atravessa o conjunto de pichações que analisamos refere-se à natureza criminosa do desastre. Entendemos que o processo de exprimir e alocar a culpa pela perda é parte importante do trabalho do luto. Aqui, a culpa é invariavelmente atribuída à Braskem; ademais, é elaborada de maneira específica e estratégica. As pichações expressam sentimentos de revolta e indignação, estampando as ruínas com acusações: “Braskem criminosa”, “Braskem ladrona”, “#ForaBraskem”, “Xô Braskem”, “Braskem destruiu o Pinheiro”, “Braskem, seu lucro cheira a sangue”, “dinheiro de lágrimas”, “bando de ladrão e assassinos”, “Braskem destruidora de lares e famílias”, “Queremos justiça!”, “Somos vítimas da Braskem”, “Fora Braskem, Pague o povo” [Figura 11]. Aqui, a culpa é invariavelmente atribuída à Braskem; ademais, é elaborada de maneira específica e estratégica. Ao caracterizar o afundamento dos bairros como crime, os moradores estão tomando parte em uma disputa semântica em torno do enquadramento jurídico do desastre.
Pichação FORA BRASKEM PAGUE O POVO
Fonte: Luiza Souza, Pinheiro. Maceió, 2022
49É um fato amplamente conhecido na região que os termos de acordo firmados entre o Ministério Público, a Defensoria Pública – ambos em suas instâncias federais e estaduais – e a Braskem em 2020 (Brasil, 2020) permitem a completa evasão de responsabilidade por parte do conglomerado petroquímico. No primeiro acordo firmado para “apoio na desocupação nas áreas de risco” (2020), consta a seguinte cláusula:
CLÁUSULA 32ª. Todas as obrigações assumidas pelas PARTES neste TERMO não (sic) importam em reconhecimento de responsabilidade da BRASKEM pela desocupação das pessoas das ÁREAS DE RISCO ou pelos (sic) IMPACTOS PBM e não poderão ser interpretadas neste sentido (Brasil, 2020).
- 7 Ver Nascimento e Sobrinho (2022) para uma discussão mais detida sobre as estratégias de comunicação (...)
50Na redação do documento, o termo “impactos PBM” foi cunhado para designar a destruição que consumiu por inteiro os bairros do Pinheiro, Bebedouro e Mutange, dando um semblante de tecnicidade ao argumento. O acordo imputa obrigações à Braskem mas, ao abrir mão do nexo causal já estabelecido por peritos da CPRM, desonera a empresa de qualquer agravante associado à responsabilidade criminal. Assim estabelecido, o acordo deixa o caminho livre para os mais extravagantes reposicionamentos de marca que o departamento de marketing da gigante petroquímica possa conceber. Desde já, vemos que as peças publicitárias da Braskem apresentam o evento como um “fenômeno geológico”, projetando seus desdobramentos desastrosos para o domínio semântico da natureza7.
- 8 A concepção de atingido empregada nos acordos judiciais e outros documentos oficiais pertinentes ao (...)
51A insistência dos moradores em caracterizar a destruição dos cinco bairros como um crime, rejeitando veementemente a leitura da subsidência do solo como um “desastre natural”, exerce uma pressão sobre a construção narrativa do evento. Devolve-o, portanto, ao domínio da história, dos conflitos sociais. No lugar do sujeito “atingido” ou “afetado” pelo desastre, uma construção técnico-jurídica que domina os documentos oficiais8, encontramos a figura da vítima. “Somos vítimas da Braskem”, declara a pichação nas ruínas do Pinheiro. É a partir da condição compartilhada de vítimas de um crime ambiental que os novos sujeitos coletivos se constituíram e se organizam politicamente no rescaldo deste evento crítico.
52A importância da nomeação da violência perpetrada pela mineradora é evidente para os próprios movimentos contestatórios: em 2020, lideranças populares provenientes de grupos e associações comunitárias dos cinco bairros afundados convergiram para fundar o Movimento Unificado de Vítimas da Braskem, com o objetivo de unir as pautas das comunidades e trabalhar em torno de um projeto comum. Desde então, o MUVB tem sido uma das frentes organizadas mais atuantes em prol das reivindicações dos moradores, ex-moradores e comunidades vitimadas pelo grande empreendimento extrativista.
53O trabalho de nomear a violência da mineração feito por meio da intervenção urbana não reflete apenas lutas semânticas. Nas palavras de Das (2020, p. 274), o ato de nomear reflete o ponto em que o corpo da linguagem se torna indistinguível do mundo; constitui uma enunciação performativa. Nesse sentido, compreendemos que as pichações não apenas ilustram ou descrevem as ruínas dos bairros fantasmas, são parte constituinte delas. Estão ali presentes ao lado de uma miríade de outros códigos: registros gráficos de uma vida cotidiana que não existe mais, códigos de série estampados para identificar imóveis condenados (ver Figura 9), placas de sinalização de risco, perigo e rotas de fuga instaladas pela Defesa Civil, e inúmeros anúncios publicitários da Braskem, demarcando o território como propriedade da empresa. As pichações nas estruturas arruinadas dos bairros fantasmas expressam a dor da perda e a injúria do crime, e são, em igual medida, uma forma de reapropriação do espaço tomado. Como testemunhos, elas evidenciam como o trabalho do luto abre espaço para a ação coletiva e para a criação de uma comunidade política.
54Caracterizamos o arruinamento dos bairros como um evento crítico (Das, 1995, 2020) para dar ênfase à ruptura com os modos cotidianos de apreensão da realidade, que ensejou novos modos de ação política e novas subjetividades no esforço de habitar novamente esses espaços devastados em um gesto de luto e protesto. Não foi nosso intuito prover uma lista exaustiva de novas subjetividades individuais e coletivas inauguradas a partir deste marco; todavia compete chamar atenção uma última vez para a tríade de figuras que se destacaram na nossa leitura do evento a partir das pichações nos bairros fantasmas: a vítima, o perpetrador e a testemunha. A figura da vítima supõe a do perpetrador. Diferente do sujeito jurídico do atingido, produzido nos documentos oficiais, ela obriga o reconhecimento da violência fundadora desse novo estado de relações. A categoria de testemunha, por sua vez, é polissêmica e multissituada, como indicamos anteriormente. Enquanto pesquisadores, também assumimos a posição de testemunhas da violência colossal que foi cometida, e a assumimos como um imperativo ético de compromisso com nossos interlocutores na relação de pesquisa.
55O testemunho do deslocamento compulsório nos cinco bairros de Maceió atingidos pelo afundamento do solo, produto da mineração de sal-gema, é materializado na paisagem dos bairros abandonados. Enquanto nosso objeto de análise, as pichações revelam, em meio aos escombros, um discurso comunitário que expressa, por um lado, o luto e memória coletiva, e por outro, as demandas e reivindicações dos atingidos por um crime socioambiental. Ao considerarmos as mudanças aceleradas no território, abruptamente descaracterizado pelo seu arruinamento, entendemos que o registro das pichações e ações interventoras de projetos fotográficos locais permitem atravessar as fronteiras de espaços controlados pela Braskem e atingir novos circuitos, assim como fronteiras temporais ao preservarem registros de espaços e signos expostos à destruição. A transposição da imagem das pichações, seja para outros bairros de Maceió ou em circuitos digitais, aciona uma tomada política a partir dessa movimentação, incluindo novos agentes no esforço pela coletivização do crime socioambiental.
56A partir da interposição entre estudos sobre graffiti e pichações em contextos críticos e a literatura sobre processos de arruinamento, entendemos que o presente trabalho colabora com ambos campos teóricos. Em relação ao primeiro, por incluir pichações e grafites dentre as ferramentas de luta e espaço de luto acionados por atores sociais em contexto de deslocamento compulsório, reapropriando do próprio espaço que lhes é negado para expor seus lamentos e reivindicações. Já no que se refere ao segundo campo, reconhecemos que as principais temáticas teóricas abordadas pela literatura sobre arruinamento se apresentam pragmaticamente nas manifestações realizadas pelos atores sociais em espaços de arruinamento.