1Intervenções estéticas mobilizadoras de agência política vem ganhando destaque no modo como diferentes populações articulam ações coletivas, reivindicações, e representações alternativas num mundo atravessado por crises diversas. A crescente importância das práticas artístico-culturais como instrumento de protesto e mobilização por uma vida mais justa contraria a ideia de alienação (ou despolitização) da sociedade atual. Este, aliás, é um rótulo que recai particularmente entre aqueles que dispõem de uma cidadania precária por serem jovens, pobres, negros, imigrantes, moradores de bairros segregados ou detentores de corpos, ou talvez antes, corpas, considerados indesejáveis. A partir de mobilizações artístico-ativistas, produções culturais ou dispositivos digitais, sujeitos em situação de subalternidade constroem sociabilidades, visões de mundo e estéticas engajadas capazes de promover identidades positivas, contrariar estereótipos e revelar vivências invisibilizadas na cidade. Pensando na relevância desses debates, neste dossiê buscamos refletir sobre a agência política e a construção de narrativas dissidentes a partir de influentes circuitos musicais, audiovisuais e digitais; das práticas culturais juvenis que ocupam o espaço público; do artivismo que reclama o “direito à cidade”; da performatividade interseccional e de estratégias metodológicas experimentais como espaço de enunciação e produção de memória e conhecimento sobre a cidade. Trata-se, sobretudo, de refletir sobre formas de resistência nem sempre implicadas num confronto direto com o sistema capitalista e a sociedade de mercado, mas que envolvem disputas de sentido e desestabilizações nas políticas de representação hegemônica. Num momento de atualização das agendas de luta e emergência de novas possibilidades de participação cidadã, importa não reduzir o campo político ao ato de votar ou às estruturas tradicionais de organização (partidos, sindicatos, associações etc.) sob pena de captarmos uma diminuta faixa de cidadania potencialmente ativa. Até porque há uma descrença ou, pelo menos, um desinvestimento na crença na eficácia das eleições e da representatividade eleitoral na democracia moderna como algo fundamental na ação política, nomeadamente entre as novas gerações. Não é por acaso que alguns autores chamam a atenção para a necessidade de descortinar domínios de participação política mais fluídos, individualizados e espontâneos (Bennett; Segerberg, 2011; Campos; Sarrouy, 2020), em que as esferas do lúdico, dos estilos de vida e da criatividade ocupam uma posição central (Soep, 2014; Street; Inthorn; Scott, 2013).

2O campo das culturas juvenis tem sido particularmente profícuo na compreensão das práticas artísticas e simbólicas para o exercício da cidadania e da contestação política (Hall; Jefferson, 1976), quando ações moleculares de resistência urbana são construídas através de experiências estéticas modeladoras de formas de estar no mundo. Paralelamente, as transformações no campo das tecnologias comunicativas vieram alargar as possibilidades de engajamento político, abrindo novas possibilidades de intercâmbio de conhecimentos e construção da insurgência entre populações alijadas do poder. É neste sentido que novos modos de participação política e interpelação crítica das injustiças sociais são encontradas em performances artivistas (Júnior, 2022; Raposo, 2022a), tours de street art (Raposo, 2023), ocupações de unidades de ensino (Barreto, 2018; Corti; Crochik, 2021), ou difundidas por jovens de camadas populares através de conteúdos musicais, dispositivos digitais e videográficos (Pardue, 2015; Aderaldo; Raposo, 2016; Garrido; Raposo, 2020). Parafraseando Rys Farthing, “para muitos jovens a política é o agora, eles não votam a mudança; mas fazem a mudança” (2010:189). A criatividade desempenha um papel fundamental nesse processo, ampliando a participação política por meio de pautas levantadas pelas micropolíticas do cotidiano e gerando dissenso através de uma criatividade artística e uma inventividade reativa às desigualdades sociais, raciais e de gênero (cf. Blanes et al. 2016). Embora haja uma captura do senso da criatividade pela racionalidade neoliberal – em que esta passou a ser vista tanto como um produto ao serviço da cidade criativa (Landry, 2000; Florida, 2002) quanto um recurso de resolução de problemas sociais (Richard and Marques, 2012; Yúdice, 2013) e governamentalidade comunitária (Raposo, 2022b) –, vale a pena problematizarmos esse conceito a partir do uso crítico de alguns autores. A ideia de improvisação cultural proposta por Hallam e Ingold (2007) vai de encontro com a perspetiva desse dossiê, justamente por contrariar o paradigma de mercado, e chamar a atenção para uma criatividade cotidiana enraizada nos domínios da vida social. Jean Burgess, por outro lado, utiliza o termo “criatividade vernacular” (2006) para valorizar os aspetos não elitista e popular das práticas do dia a dia que ensejam uma cidadania cultural, mas que, em geral, não são consideradas como criativas. Ambos os conceitos trazem várias contribuições epistemológicas para a reflexão sobre as novas maneiras de “fazer política” e ressignificar a realidade, cuja dinâmica de subversão se faz no ritmo do cotidiano e nos encaixes criativos potenciados pela arte e as novas tecnologias.

3Já há longo tempo que no campo da antropologia, autores como James Clifford e George Marcus (1986) haviam chamado a atenção para o que definiram como as poéticas e políticas da representação na cultura, e fizeram-no sobretudo no sentido de romper com as lógicas convencionais e com os cânones clássicos estabelecidos do texto etnográfico e das realidades culturais neles reproduzida. Quer o corpo, quer a dimensão performativa da cultura, os elementos cinestésicos e sensoriais foram sendo convocados de forma não apenas descritiva ou etnográfica, mas mesmo epistemológica e metodologicamente e, digamos, alicerçada nas rupturas teóricas pós-modernas, pós-estruturalistas e fenomenológicas que se foram processando, sobretudo, no campo disciplinar da antropologia.

4Por outro lado, pensando junto com Roger Sansi (2014), Arnd Schneider e Christopher Writght (2006), apenas para referir alguns daqueles que mais se têm debruçado sobre este assunto, todos eles abordam a “virada social” na arte contemporânea, situando e explicitando como o trabalho entre artistas e antropólogos, para além da relação entre arte e antropologia, tem produzido diálogos transversais muito estimulantes. Estes autores defendem que as práticas artísticas e antropológicas se entrelaçaram a partir de interesses mútuos e visões do mundo, e, dessa forma, propiciaram aproximações entre práticas etnográficas e métodos artísticos, potenciando formas de produzir engajamentos sociais e coletivos. Quer na produção artística contemporânea quer nas etnografias, torna-se, assim, recorrente uma atenção especial à participação e à colaboração, em uma relação possível, mas também frequentemente mediada pela efemeridade e pelo acaso.

5Sansi e Strathern (2016) explicam como os antropólogos e os artistas procuram performar a vida cotidiana nos seus processos ambíguos de representação poéticos e políticos da cultura. Paralelamente a este movimento dialógico de cruzamento de campos disciplinares, a intensa intersecção entre arte e política tem gerado um conjunto de noções que, sobretudo no campo das ciências sociais, nos ajuda a compreender as diversas formas de estéticas engajadas na produção de discursos contra-hegemônicos e nos processos de transformação social. Um dos conceitos mais amplamente empregues é o de “artivismo”, um neologismo que busca enfatizar a relevância da arte para amplificar ativismos e resistências (Sandoval; Latorre, 2008; Raposo, 2015, 2022; Garrido; Raposo, 2019).

6Recentemente, Ribamar Junior (2022) procurou estabelecer uma síntese da emergência deste termo, trazendo o trabalho de diversos autores. Diz ele que Rui Mourão (2015) defendia que o termo “artivismo” teria emergido a partir da primeira década do século XXI, em pequenos círculos de meios artísticos e acadêmicos norte-americanos e depois europeus, mas que esse processo de emergência confluiu e se interseciona com os chamados protestos políticos dos “novíssimos movimentos sociais”. No cenário do Brasil, Junior (2022) refere que tanto André Mesquita (2008) quanto Alexandre Vilas Boas (2015) pontuam que foi em uma reportagem da Folha de São Paulo de 2003 que surgiu pela primeira vez o termo “artivista”. Ribamar Junior (2022) conclui ainda que tal como sugere João Trevisan (2018), numa pesquisa em torno da homossexualidade, o artivismo terá ganho ainda mais fôlego com as chamadas Jornadas de Junho (2013), nas quais se revelaram como novos (e velhos) coletivos “se organizaram para transformar a participação cidadã em uma experimentação estética em ritmo de guerrilha cultural” (Junior, 2022, p. 11). Por fim, Julia Ruiz di Giovanni (2015) refere que existe uma fluidez e uma abertura comunicativa entre práticas que transitam entre arte e ativismo a partir dos anos 1990, associadas à emergência de formas de ação e organização política através de modos de fazer comuns a ativistas e artistas, e à dimensão poética e performática das ações coletivas por eles desenvolvidas. Essas práticas artísticas e ativistas – ou seja, o neologismo conceitual “artivismo”, instável tanto no campo das Ciências Sociais como no campo das Artes, como sugeria Raposo (2015) – implicam, dessa forma, processos de experiência subjetiva que criam espaços políticos de experimentação, onde se atualizam gestos políticos e se potenciam eventuais transformações sociais.

7Neste dossiê, pensamos, todavia, que, por um lado, podemos distinguir níveis diferenciados de disputas e escalas distintas de intervenção sobre a cidade através de práticas artísticas. Digamos que o artivismo envolve claramente um engajamento político com alto grau de comprometimento em causas sociais, em que a criação artística está em confluência com a reivindicação, a dissidência e o confronto direto com as instâncias de poder e, por essa razão, com fortes ambições de transformação social. A estética insurgente, por sua vez, não tem necessariamente como finalidade um projeto de transformação social, remetendo para um engajamento flexível, individualizado (ou de coletivos efémeros) e menos imediato daquilo que são os desejos de mudança – embora a possa vir a desencadear. Por outro lado, destacamos ainda as novas formas de participação cívica e lutas pela cidade protagonizadas por aqueles que vivem em áreas socialmente periféricas (Caldeira, 2012; Holston, 2013), em que as intervenções estéticas são instrumentos privilegiados para deslocar disposições de poder e vincular representações a partir da perspectiva daqueles que são marginalizados pela atual ordem neoliberal. Como referido noutro lugar, estéticas insurgentes “(...) quer chamar a atenção para o potencial de certas expressividades estéticas – de índole artística, cultural, lúdica e criativa – em gerar ações mobilizadores capazes de desconstruir as representações hegemônicas sobre si próprios e os seus lugares de origem” (Raposo; Sedano; Lima, 2020).

8Num momento em que os espaços públicos urbanos e as suas fronteiras (físicas e simbólicas) vêm se tornando alvo contínuo de múltiplas formas de uso, representação política, dissidência e possibilidade criativa, surgem novas indagações que, por sua vez, exigem maior aprofundamento analítico. Tendo em vista o atual contexto de precarização das relações laborais, pandemia do covid-19, crise económica-ambiental, ataque ao direito à diversidade e avanço de modelos ultraliberais e autoritários na geopolítica internacional, este dossiê pretende gerar um espaço de partilha de experiências de pesquisa de cariz interdisciplinar que enfoquem novos significados e dimensões vinculados a artivismos e estéticas insurgentes que fazem da cidade um palco privilegiado de disputas políticas.

9Nosso dossiê abre com o artigo “Contra-en(cantar) o bairro. Poéticas da paisagem do rap kriolu na Área Metropolitana de Lisboa”, de autoria de Gabriela Leal. Neste trabalho, a antropóloga nos apresenta parte de sua etnografia realizada com mulheres rappers na cena de rap kriolu em Portugal. Ao refletir a respeito do rap kriolu enquanto poética da paisagem e tecnologia de contra-encantamento capaz de desestabilizar arranjos espaciais hegemônicos e provocar fraturas em narrativas coloniais, a autora aponta para ferramentas dissidentes de imaginação espacial e política constitutivas das formas de habitar e de inventar fronteiras urbanas em diáspora na contemporaneidade.

10O artigo de Renata da Silva Melo, que tem como título “‘O Rio de Janeiro é mais que a cidade do Rio de Janeiro’: circuitos urbanos e coletivos audiovisuais da Baixada Fluminense”, apresenta um relato etnográfico acerca de dinâmicas de sociabilidade e processos de disputa e imaginação da cidade do Rio de Janeiro que se dão a partir de intervenções estéticas e da linguagem audiovisual. Desafiando a centralidade de certos espaços da cena cultural carioca, bem como a representação hegemônica da periferia como paisagem monótona, cinzenta e “sem cultura”, a autora mostra de que modos tais circuitos atuam na produção de novas representações e formas de circulação pelo espaço urbano, e que incidem na ressignificação da Baixada enquanto potência criativa nos modos de imaginar e de fazer cidade.

11Em “Experiência urbana gay afeminada e modos de resistência na cidade contemporânea”, Victor Hugo Belarmino, Magda Dimenstein e Jáder Ferreira Leite tratam da micropolítica cotidiana que homens gays autodefinidos afeminados desenvolvem como expressão de autoafirmação, confrontamento e desobediência normativa sobre as expectativas de gênero e sexualidade na cidade de Natal/RN. Entendendo a afeminação como um fator de vulnerabilização dos sujeitos no espaço urbano, particularmente atrelado a outros marcadores da diferença como raça e classe, os autores e a autora buscam compreender os modos de opressão vivenciados, bem como as estratégias de resistência que modulam corpos-cidade. Desse modo, chamam atenção para práticas de desobediência e performances que reivindicam o direito a cidade e fazem “contra-usos” que combatem as barreiras invisíveis das dinâmicas de controle social e marginalização, transformando espaços originalmente moldados para o consumo, em espaços políticos de visibilidade pública e contestação.

12No artigo “Caminhadas e itinerários entre Rio de Janeiro e Lisboa. Artistas e ativistas urbanos entre sociabilidades e formas de resistir”, Caterine Reginensi e Paulo Raposo propõem a caminhada e os itinerários enquanto experiências teórico-metodológicas para pensar expressões artístico-ativistas e o contexto urbano. A partir de pesquisas de campo situadas entre Rio de Janeiro e Lisboa, com duas artistas graffiteiras e com a associação cultural de ativistas negros Batoto Yetu, pesquisadora e pesquisador deixam-se conduzir pela prática, pela performance, pela política. Por entre itinerários da arte urbana e da visibilização da presença africana, por entre disputas narrativas e de lugares de memórias, os sujeitos e as sujeitas da pesquisa tornam-se guias e direcionam os caminhos, elaborando uma reflexão crítica das tantas existências urbanas marginalizadas e invisibilizadas nos contextos das cidades neoliberais, enquanto fazem mundo.

13O texto “‘Enquanto eu dormia, cavaram uma cova no fundo do meu peito’: Mineração, deslocamento compulsório e pichações nas ruínas de cinco bairros fantasmas” (Maceió-AL) é de autoria de Luiza Souza, Aissa Petronilho e Carlos Eduardo e tem como pano de fundo o desastre socioambiental na cidade de Maceió/AL, devido à exploração de sal-gema pela petroquímica Braskem S/A. O trabalho etnográfico apresenta uma reflexão a respeito das pichações e conjuntos de imagens, enquanto formas de denúncia e protestos sobre ruínas dos bairros atingidos, condenados e abandonados. Ao considerarem tal desastre como um evento crítico, nos termos de Veena Das, que produz a aniquilação material e subjetiva de um mundo compartilhado, as autoras e o autor interpretam as intervenções nos muros da cidade como formas de denúncia da violência e das desigualdades, mas também enquanto formas de experienciar o luto e elaborar uma memória coletiva.

14Em “‘Banho de Sangue’: expressões corporais, artísticas e políticas nos espaços urbanos de Teresina”, Eliane Couto e Mariane Pisani dão relevo para as disputas políticas em torno das lutas por moradia urbana, e das lutas antirracistas e feministas na cidade. Tomando como cena etnográfica a performance e protesto político “Banho de Sangue”, idealizada e realizada por Luzia Amélia Marques, encenada em distintos espaços da cidade, as autoras refletem a respeito do artivismo enquanto um movimento entre experimentação política e estética que se dá no fazer coletivo. Igualmente, ressaltam a interseccionalidade como categoria incontornável para pensar formas de subalternização e de opressão racial, de classe e de gênero, que atravessam o cotidiano da população da cidade de Teresina/PI, enunciadas pela performance, cujos desdobramentos produzem inúmeros embates, observados, particularmente, através das mídias sociais.

15O trabalho de Letícia Galvão e Frank Marcon traz como título “Práticas culturais juvenis e a cidade como lócus de ação política e disputa de sentidos sobre o espaço público” e se desdobra sobre a produção artística e os estilos de vida de grupos juvenis, na cidade metropolitana de Aracaju/SE, enquanto formas de comunicação política e reivindicação de direito à cidade. Com base no acompanhamento de distintos coletivos vinculados especialmente ao punk e ao hip hop, ao slam poetry, à prática do skateboarding e ao grafitti, autora e autor refletem a respeito das tensões que permeiam o debate público sobre a relação entre juventude, ação cultural e política nos modos de ocupação da cidade.

16Por fim, para fechar o nosso dossiê, apresentamos o artigo “Exercer o direito à cidade: o Canto do MARL como possibilidade de um fazer artístico popular em Londrina, Paraná”, de autoria de Giovanni Cirino e Laís Vieira, o qual tem como objetivo analisar como se dá a gestão pública no que diz respeito aos serviços e bens culturais para as populações que estão nas margens da cidade. Como estudo de caso, a pesquisa trata da “okupação” realizada pelo Movimento dos Artistas de Rua de Londrina/PR para refletir sobre o papel das políticas de cultura nas formas de fazer-cidade.

17O conjunto de trabalhos presentes neste dossiê se destaca pela diversidade temática, privilegiando contextos de pesquisa variados no cenário brasileiro e fora dele. Do mesmo modo, prezamos pela diversidade institucional e pelo diálogo interdisciplinar. Agradecemos aos autores e às autoras que participam neste dossiê permitindo diversificar situações, espaços e problemáticas em torno das estéticas engajadas em contexto urbano e desejamos a todos, todas e todes uma leitura estimulante.