1Quando propusemos revisitar — para não dizer celebrar — a efeméride da categoria pedaço, contribuição advinda das pesquisas que o antropólogo José Guilherme C. Magnani conduziu em boa parte da sua trajetória como etnógrafo urbano, não imaginávamos perambular por caminhos tão diversos, por vezes em emaranhados de sugestões que rapidamente brotaram como boas ideias, mas que conheceriam logo em seguida as dificuldades reveladas por algumas perguntas.
2Formalmente, pedaço veio a lume com a defesa da tese de doutorado de Magnani em 1982 (Magnani, 1982; Torres, 2016), ano que baliza os limites temporais desse texto que se embrenha pelas seguintes indagações: como e sob que circunstâncias nasce uma categoria antropológica? Seria prudente se ater à precisão de uma data comemorativa, atitude bastante conservadora em torno do algo que, em verdade, só pode ser melhor avaliado se levado em conta num tempo de duração das demandas e imponderáveis oriundos de seus usos em continuadas pesquisas?
3As perguntas persistem. Em se tratando de uma categoria etnográfica esparramada contextualmente, pedaço fez parte de sínteses negociadas na interlocução com os informantes de pesquisa e, nesse sentido, até que ponto se mantiveram os compromissos metodológicos de tais costuras em trabalhos posteriores, sobretudo entre aqueles pesquisadores entusiastas da temática urbana? Como fazer daquela experiência de campo irredutível um princípio ativo de método sem reificar a definição de pedaço? O fato é que pedaço evoluiu ou mais que se desdobrou em outras categorias de análise como atestou inúmeras vezes o próprio Magnani:
Desta forma, depois da categoria pedaço, trabalhei com as de mancha, trajeto, pórtico e, finalmente, circuito, categorias essas que me permitiram pensar a diversidade no campo, a heterogeneidade dos equipamentos e a criatividade dos atores sociais (Magnani, 2019, p. 20).
4Mas voltando às condições de captura desse momento fugaz de nascimento de uma ferramenta analítica, certamente algo ou muito desse processo tendeu a ser percorrido pelo pesquisador formando um caminho de metamorfoses que passaram das interações em campo à categoria, algo bastante problemático e identificado por autores como Fabian no neologismo alocronismo, temporalidade que se interpõe às relações entre sujeito e sujeitos “objetos” e que se impõe pela recusa deliberada ou alguma negligência em revelar os regimes coetâneos estabelecidos nas interações com os interlocutores em contexto de pesquisa de campo.
5Para o autor “anacronismo significa um fato, ou uma declaração do fato, que está fora de sintonia com um determinado período de tempo; é um erro, talvez um acidente”. (Fabian, [1983]2013, p. 68). Já alocronismo não seria exatamente um erro, mas a presunção de mecanismos retóricos, existenciais e políticos de negação do tempo compartilhado (coetaneidade). Se o autor denuncia o fato de que a experiência de um tempo intersubjetivo se apresenta muitas vezes escamoteada na etnografia, solapada pelas depurações relativistas e taxonômicas presentes nos modelos canônicos antropológicos, algo circunstancialmente diverso parece ter ocorrido e se mantido com a noção de pedaço.
6Tais processos de depuração conceitual em nome de parâmetros objetivistas, que tornam mais opacas as relações de coetaneidade (Fabian, [1983]2013) entre pesquisador e seus interlocutores geram variadas distorções de ordem política e epistemológica da práxis antropológica. A esse respeito se tornam mais do que sinceras as palavras de Magnani sobre o contexto que induziu a posterior produção de toda uma trajetória acadêmica em boa parte animada pela categoria pedaço:
Foi realmente um achado [grifo nosso], não previsto pelas hipóteses do projeto original da pesquisa, pois surgiu no contato com os pesquisados, foi sugerido por eles, e só se transformou numa categoria de alcance mais geral quando contrastado com outro esquema conceitual e aplicado em novos contextos, diferentes daquele em que fora encontrado” (Magnani, 2003, p. 86).
7Reavaliando o ímpeto inicial na proposição desse artigo procuramos mesmo assim condensar os resultados numa modesta empreitada, agora repactuada mais como exercício imaginativo traçado por uma categoria num diálogo aberto e menos replicante no que diz respeito a aplicabilidade de pedaço apenas como recurso ou ferramenta analítica. Abandonar qualquer esforço pretensioso de síntese e totalização de práticas em contextos urbanos em relação às contribuições teóricas e conceituais de pedaço foi uma maneira também de se afastar dessas escalas um tanto enganosas para avaliar sua boa e permanente contribuição à etnografia.
8Adiantamos que as pretensões nos usos de pedaço parecem fracassar se tomados puerilmente como explicações dedutivas ou espécie de conceito regulador de fenômenos. Pedaço não visa necessariamente explicar o quer que esteja em tela no horizonte da observação, mas sim implicar o observador numa tomada de decisão dentro de uma economia política de subjetivação diante das práticas ditas urbanas que se apresentam sempre negociadas com os interlocutores. E talvez aqui, como deixaremos mais explicitado somente ao final desse percurso, resida a maior fissura nos usos da categoria, quer dizer, não assegurar de antemão os princípios de coetaneidade que foram decisivos para sua forja no contexto de dinâmicas dialógicas interpretativas.
9Assumir a tarefa de esmiuçar uma categoria, jornada que se mostrou bem mais complexa e inconclusa do que a princípio imaginávamos, obrigou a retomar domínios já explorados inclusive pelo próprio autor em outras importantes contribuições (Magnani, 2002; Magnani, 2013), que ao revitalizarem permanentemente a referida categoria colocaram em discussão algumas perspectivas: uma primeira que denominamos de contexto institucional associado aos esforços pessoais de uma trajetória intelectual exitosa; segundo, uma abordagem de pedaço que acreditamos tenha sido menos explorada que a recoloca nas esferas relacionais de produção de dados, isso vale inclusive para contextualizar os autores desse artigo, posicionados relativamente de perto e de dentro de parte dos círculos retóricos de sociabilidade que cercaram e ainda cercam a trajetória do autor e seu carro-chefe categorial. E por último dar algum contorno para o modo como a categoria foi espalhada numa bibliografia antropológica. As sessões que seguem, nem sempre seguindo essa ordem, levarão em conta esses três movimentos entrecruzados.
- 1 Para mais informações, conferir Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em antropologia urb (...)
10Esquadrinhar uma categoria, objetivo desde artigo, exige, por certo, conhecer e revistar, até onde for possível dentro dos limites textuais que nos regulam, a trajetória e obra acadêmicas de José Guilherme Cantor Magnani, docente na Universidade de São Paulo (USP).1 Contudo, tal empreendimento exige retomar outras que estão vinculadas a elas na história e formação da antropologia urbana brasileira, desde a influência da Escola de Chicago, como veremos adiante, passando por Lévi-Strauss e a missão francesa na USP em São Paulo, a realização dos estudos de comunidade na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), até a atuação de duas professoras e pesquisadoras, Eunice Durham e Ruth Cardoso, importantes para o fortalecimento de uma antropologia dedicada a novos enfoques, investigações e reflexões teórico-metodológicas no contexto urbano ao trazer para o centro do debate o que estava então, em termos acadêmicos, às margens em tempos autoritários e desenvolvimentistas: migrações, movimentos sociais urbanos e periféricos, tempo livre e modos de vida das classes populares. Temáticas insurgentes nas periferias de contextos urbanos que se expandiam em termos espaciais e demográficos.
11Festa no Pedaço é incubado nesse momento de renovação de paradigmas e perspectivas no cenário institucional e acadêmico a partir da década de 1970, bem como de transformações na conjuntura política das grandes cidades brasileiras, em que diversos atores sociais passam a ser encarados como importantes sujeitos políticos, como os movimentos sociais urbanos e as lutas reivindicatórias das mulheres nos espaços cotidianos dos bairros periféricos por melhorias na infraestrutura urbana.
12A pesquisa de doutorado de Magnani, ao tomar como ponto de partida os circos-teatro e, de forma mais geral, as práticas de sociabilidade e lazer no tempo livre da classe trabalhadora nas periferias de São Paulo – o que era tido como temas “menos sérios” –, se amplia para além do enfoque inicial ao identificar as formas criativas de modos de vida que articulam os domínios lúdico e político. Contexto propício para o surgimento do pedaço, categoria etnográfica que aponta para uma perspectiva que articula relações de sociabilidade de pessoas com interesses e práticas compartilhadas aos espaços e equipamentos urbanos onde elas se dão nos bairros periféricos. Um ambiente de sociabilidade intermediário entre a casa e a rua, os parentes e os estranhos, domínio daqueles que são considerados “chegados”.
- 2 Atualmente Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana (LabNAU-USP).
13O que pode ser entendido até aqui como “linhagens antropológicas” da antropologia urbana no Brasil, quando visto a partir da capilaridade relacional de Magnani revela filiações de outra ordem. Já como professor da USP, Magnani cria e passa a coordenar o Núcleo de Antropologia Urbana2 em 1988, que não só reúne orientandos e orientandas, em diferentes momentos de formação, instigados a pesquisar práticas culturais, modos de vida, formas de sociabilidade e usos do espaço urbano (lazer, festa, religião, esporte, artes etc.) por grupos sociais espalhados pelas paisagens da metrópole paulistana.
14Mais do que isso, o NAU se coloca como um laboratório de experimentos etnográficos e trabalhos coletivos, desde 1989, sobre temas diversos (circuito neo-esotérico, jovens urbanos, surdos, cidades amazônicas, práticas museológicas, estudos cemiteriais) que se propôs a tensionar e alargar o particularismo da categoria pedaço e das práticas de sociabilidade circunscritas às redes de parentesco, vizinhança e amizade, transpondo e esgarçando-a em outros pontos do território urbano para além da abrangência dos bairros periféricos, como as regiões centrais da cidade. Trânsito que permitiu trabalhar com novas unidades de análise, formas de pertencimento e lógicas de apropriação do espaço urbano, levando à constituição do que ficou conhecido como “família de categorias” — mancha, trajeto, pórtico, circuito — para compreender outras esferas, movimentos e tramas da complexa dinâmica urbana.
15Ao estabelecer recortes urbanos, escapando de esboçar totalidades, e ao apontar para as regularidades na construção dos modos de vida e vínculos de sociabilidade, evitando assim fragmentações, tais categorias chegadas desvelam múltiplas cidades dentro de cidades, desestabilizando concepções fixas e apriorísticas baseadas sempre nas mesmas referências urbanas, o que demanda pensar outras cidades, em diferentes contextos e escalas, e novas paisagens etnográficas, como as pesquisadas recentemente pelo NAU, identificadas pelo descritor Etnologia Urbana, para refletir sobre a socialidade das populações indígenas nas cidades e as cosmopolíticas ameríndias em contextos urbanos.
16Os desdobramentos e inflexões, a partir da noção de pedaço e de uma posterior ampliação categorial, e para além de uma circunscrição autoral, revelam uma produção conceitual dilatada em um processo de constante reflexão coletiva e atualização das categorias frente as pesquisas etnográficas empreendidas por diferentes gerações de pesquisadores e pesquisadoras que, muito mais do que cruzamentos de trajetórias em linhagens antropológicas, estão inscritos em círculos retóricos de sociabilidade que têm no projeto etnográfico de Magnani seu feixe de relações.
17Denominamos de círculos retóricos de sociabilidade aquela dinâmica que ajudou a moldar os domínios institucional e intelectual na forma de experiências acadêmicas compartilhadas e nossa hipótese é a de que tais experiências estão umbilicalmente ancoradas, na verdade desde sempre, na expansão ou extensão da categoria pedaço para o interior do perímetro que delimita o trabalho artesanal acadêmico, impondo um peculiar ritmo de produção e reprodução do conhecimento acumulado. É como dizer que para se alcançar os fenômenos via categoria pedaço seria preciso organizar os protocolos da pesquisa dentro da lógica de pedaço.
18Desse modo, perde força dizer que pedaço constitui apenas ferramenta para se pensar “realidades”, uma vez que ao nosso juízo ele rompe com esse uso instrumental, embora esse aspecto também componha a saga ou trajetória da categoria, especialmente quando se expande para outros domínios afastados dos círculos retóricos de sociabilidade do autor.
19É evidente que em grande medida esses círculos foram estimulados ou induzidos pelo lugar institucional ocupado por Magnani, sobretudo em dinâmicas de trabalho presentes sejam nas rotinas de orientações e interlocuções mais individualizadas com orientandos, seja na condução ou posição hierárquica de professor amparando os esforços coletivizados na produção de dados etnográficos. Não obstante toda essa configuração mais ou menos ditada pelo mainstream acadêmico, enfatizamos que uma dinâmica de pedaço sustenta tanto a trajetória intelectual de seu proponente quanto as condições de produção de um ambiente favorável de pesquisa implementado há décadas, formando pesquisadores a cada novo ciclo e possibilitando não somente especializar (capacitar) profissionais antropólogos, mas espacializar um conhecimento relacional e aprendizado frutos dessa sociabilidade acadêmica impregnada por uma categoria matriz e ao mesmo tempo motriz que viu crescer ao redor de si uma espécie de cidadela de pesquisas e pesquisadores ao longo de mais de quatro três décadas.
20Se em princípio a categoria pedaço pode ser tomada como recurso analítico classificatório, seu ímpeto nomotético foi bastante relativizado na medida em que se transformou num instrumento analítico de averiguação permanente do próprio método etnográfico, reavaliando simultaneamente tanto os “objetos” externos quanto o processo de acercamento desses fenômenos numa escala de sociabilidade acadêmica regida em parte pela lógica de pedaço. E rompendo com a icônica e elitista imagem do trabalho de campo solitário que, todavia, ainda se sustenta como marco da organização do trabalho intelectual institucional, cujo produto se objetiva na invenção do conhecimento individualizado amparado num sistema meritocrático, a categoria pedaço ofereceu uma contrapartida, digamos, bem mais esparramada e crítica a respeito dos pressupostos que amparam essa imagem e metiér do antropólogo.
21Esse potencial um tanto onipresente e prepotente de integração conceitual de fenômenos, matriz retórica que na Antropologia já totalizou toda uma cultura na relação one-to-One (o pesquisador diante de uma Cultura), ao que parece foi abalado com as contribuições metodológicas na pós-modernidade, sobretudo por autoras como Marilyn Strathern (2004), evidenciando conexões e extensões parciais entre pessoas, coisas e sobretudo conceitos. É nessa tradição mais contemporânea e porque não dizer extemporânea à própria categoria pedaço que também podemos inserir mais uma extensão à noção de pedaço.
22Mas se de fato prevalece algum pendor classificatório na antropologia de Magnani, dadas suas matrizes institucionais e trajetória marcada pelas injunções históricas de sua formação, a lógica de pedaço transparece até mesmo em seu projeto de procriação de categorias simbólico-espaciais contíguas, definidas não por acaso de “família de categorias” (mancha, trajeto, pórtico e, sobretudo, circuito). Mas pedaço como categoria pivotante pode ser tomada também a partir dos experimentos resultantes de relações tanto permanentes quanto impermanentes em relação a essa “família” que, aliás, para os nossos propósitos são mais bem definidas formando um conjunto de categorias “chegadas”, já que rompem entre si com as relações mais essencialistas e taxonômicas que a metáfora de “família” parece evocar. Porque tais categorias também entram no regime de pedaço e podem ser associadas diferenciadamente numa espécie de relações de amizade entre si formando um pedaço categorial. Não abandonando seus próximos e chegados, pedaço, no entanto, foi aquela que mais migrou para além da Antropologia, oferecendo interlocução com outras áreas de conhecimento.
23Tal como orienta o decoro consuetudinário constitutivo da lógica de pedaço acadêmico implementado e estimulado por Magnani, cabe aos novos pesquisadores chegar devagar e pedir licença às regras de pertença dentro desse contexto para, agora contrariando até mesmo a terminologia empregada pelo próprio autor em descrição de sua trajetória intelectual (Magnani, 2012), pensar que institucionalmente talvez o seu maior legado na formação de recursos humanos tenha sido regido mais pela lógica de pedaço do que propriamente reiteração de uma linhagem acadêmica (Rodrigues; Rieth, 2018, p. 8) com pretensões agnáticas.
24Se as exigências das linhagens se impõem por algum virtuosismo que se insinua em formações estruturantes, a lógica de pedaço acadêmico parece romper com essa máquina de reprodução e se voltar justamente para as experiências interpessoais negociadas onde princípios hierarquizantes são secundarizados em benefício da partilha horizontalizada de novas experimentações trazidas pelo fluxo de “chegados” que se tornaram “de casa” na condução do trabalho coletivo acadêmico, o que revela também uma das facetas de uma experiência de coetaneidade acadêmica. O NAU, hoje LabNau (Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP), ao que tudo indica consolidou essas dinâmicas de categorias e pesquisadores “chegados”.
25Parte dessa imagem ou metáfora do ambiente acadêmico de produção de conhecimento não é estranha à dinâmica presente na gênese de formação da categoria pedaço, que desde então apontava para os regimes morais relacionais naquelas primeiras interlocuções que o pesquisador travou em campo, colocando saberes transversais em confronto para, em seguida, atestar ou não a possibilidade e a qualidade da sociabilidade etnografada. Diz o autor:
Solicitado a explicar quem era e o que fazia ali, tive de comprovar a história sobre o livro que estava escrevendo, com algum papel – a declaração assinada pela professora orientadora que atestava minha condição de pesquisador vinculado à universidade – cujo carimbo da secretaria e assinatura mereceram mais atenção que o próprio texto. Em seguida foi minha vez de examinar alguns documentos exibidos, particularmente a carteira profissional, gesto de reciprocidade que finalizava o rito e selava minha entrada no ‘pedaço’” (Magnani, 1984, p. 135).
26Nas próximas sessões focaremos algumas das translações da categoria pedaço, levando em conta que desde sua origem reteve vigor analítico sem abdicar da plasticidade imposta por usos estratégicos contextuais de acercamento, o que lhe conferiu status de ferramenta metodológica tanto quanto fora consolidado como categoria de análise.
27Pedaço pavimentou ou ofertou um norte para muitas pesquisas urbanas posteriores, conferindo maior apuro contrastivo entre o olhar do observado e as forças históricas e sociológicas impessoais que se colocavam como instâncias determinantes nas análises sobre dinâmicas e transformações urbanas. As escolhas cautelosas pelo ponto de vista do observado (Lévi-Strauss, 1989[1954], p. 404) cumpriu posicionar essa contribuição num jogo contrastivo de categorias das quais certamente pedaço foi devedora, tais como a longínqua noção de região moral proposta por Erza Park ou a mais imediata noção de casa, dimensão importante nas dinâmicas do parentesco em uma discussão antropológica que antecedeu os usos na antropologia urbana. Como se sabe, casa foi recontextualizada nos ensaios urbanos de Roberto DaMatta. Pedaço pode ainda dialogar com noções ulteriores, tais como a de lugar proposta por Marc Augé.
28Região moral foi e ainda se apresenta como noção de usos um tanto erráticos na Antropologia e Sociologia urbanas brasileiras. Com uma visão bem menos ecológica em relação aos aspectos da segregação social urbana sugerimos que Magnani difere pedaço de região moral justamente pelo fato de que esta última se instrumentaliza a partir de regiões naturais onde prevaleciam “códigos morais divergentes” (Park, [1916]1967, p.64). Pedaço, nesse sentido, não segrega diferenças, ao contrário, as agrega na produção de gramáticas simbólicas que flutuam por toda a cidade, ao menos em grande parte dela como mecanismo de produção de pertenças no sentido de que se trata de uma categoria mais fluida ou menos marcada por ordens identitárias, tal como se apercebe para o caso original de região moral.
29Ainda a respeito dessa categoria Hirata afirma que
Como [Park] enfatiza repetidas vezes, a região moral não é necessariamente um lugar ligado à criminalidade ou à anormalidade. Trata-se de um espaço onde um código moral divergente opera, sendo constitutivo da fragmentação da vida das cidades e a crise como condição do tempo presente. Somente a natureza humana aberta e indeterminada constitutiva destes tempos de crise possibilitariam o desenvolvimento de tantos códigos morais divergentes do meio urbano. (Hirata, 2010, p. 63).
30Nesse sentido região moral identificaria esse processo adaptativo frente as crises como espécie de criatividade reativa diante de códigos mais abrangentes (por exemplo, os processos de reorganização do mundo do trabalho), algo fora do escopo de pedaço na medida em que parte da crítica etnográfica em relação às macro determinações, reposicionando dicotomias como trabalho e lazer, centro e periferia, ou mesmo tradição e modernidade num contínuo dinâmico de apropriações simbólicas em que criatividade não seria apanágio de classe ou de qualquer cultura, seja hegemônica, seja vicinal.
31Já em relação às aproximações com a noção de não-lugar pedaço se coloca como categoria que atende a uma exigência epistemológica ao ser anunciada como “lugar antropológico” (Augé, 1994), tal como posteriormente discorreu Magnani a respeito das escolhas das unidades empíricas de análise, lugares vividos pelos interlocutores e concebidos pelo pesquisador que devem obedecer “simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa” (Augé apud Magnani, 2013, p. 57).
32De todo modo, interessa destacar menos o modo como a categoria pedaço se emancipou nas e das etnografias, revelando não raramente um certo automatismo que pode se revelar reducionista, mas avaliar uma outra potência a ela reservada que igualmente orientou sua expansão, ou seja, a capacidade de inventar novas etnografias e inventar a si mesma na produção de novas imagens sobre o meio urbano.
33Retomar a discussão em torno do contexto etnográfico original de onde sobressaiu a noção de pedaço exigiria prospectar seu potencial analítico na relação com as transformações urbanas daquele período, a passagem dos anos 1970 para os 1980. Além do mais, mencionar esse aspecto mais histórico de sua proposição exige que se deslize para dentro da política de sensibilidades, disputas institucionais e exigências epistemológicas que permearam a antropologia urbana, a brasileira de modo geral e, neste caso, aquela(s) produzida(s) nas instituições acadêmicas paulistas.
34Em relação a esse ponto, cabe dizer de modo muito sucinto que as investigações assim denominadas ou encapsuladas genericamente pelo descritor “meio urbano” cobriram paisagens etnográficas muitos distintas num período em que importantes guinadas temáticas, conceituais e metodológicas alcançaram as Ciências Sociais (Durham, 1973; Velho, 1973; Guedes, 1977 e 1982; Kowarick, 1979; Macedo, 1979; Montes, 1983; Caldeira, 1984; Zaluar, 1985; Oliven, 1985; Paoli, 1987), apontando de muitos lados para a crítica renovada da sociedade brasileira a partir de vários aportes, amálgamas teóricos e discussões acirradas na esteira de um movimento que revisitou ou problematizou os usos de um rol de conceitos totalizantes, tais como cultura, ideologia, hierarquia, indivíduo, pessoa, hegemonia. Muitos desses conceitos chaves e distintos entre si ingressaram na economia analítica da época associados aos jargões sociológicos de então, que diziam respeito aos temas à época mais candentes, tais como classes sociais, trabalhadores, pobreza, estratificação, desigualdade, consumo, política, identidade nacional, urbanização e em menores proporções gosto, estilo de vida e, notadamente para nossos propósitos, sociabilidade.
35Nesse sentido e de modo específico foi a noção mais plástica de sociabilidade (Frúgoli Jr, 2007; Toledo, 2021), atrelada ainda àquela mais genérica, cultura, quem melhor se aderiu à Antropologia urbana e ao método etnográfico em contexto citadino, sabidamente uma das contribuições da referida guinada antropológica dos estudos do meio urbano ou das sociedades complexas (Velho, 1987) do qual o volume Festa no Pedaço. Cultura e lazer na cidade (Magnani, 1984), e com ele a própria noção de pedaço, passaram à condição paradigmática de orientação metodológica no desvelar das condições das classes sociais subalternizadas, doravante renomeadas não sem óbices na antropologia de classes populares. A gênese do caráter relacional e de sociabilidade imbricados à categoria pedaço pode ser evidenciada nesse relato:
Quando comecei a pesquisa que serviu de base para o doutorado, sobre modalidades de lazer, cultura popular e entretenimento na periferia de São Paulo, a pergunta com a qual fui a campo estava fundamentada em leituras de Gramsci, Foucault e Lévi-Strauss, sobre as relações entre ideologia e cultura. No contexto dos estudos sobre os movimentos sociais urbanos e a emergência de novos atores sociais, questionava-se se a cultura popular era fator de libertação ou se era mero reflexo da ideologia dominante. Assim, com base nessa discussão, saí a campo para realizar a pesquisa etnográfica e, bem, não vou aqui relatar essa pesquisa, mas posso dizer que fui com uma determinada questão e a resposta que obtive dos moradores, surpreendente, apontou para outra direção (Magnani, 2003, p. 85).
36A visibilidade desses “novos sujeitos” (Sader, 1988) na cena pública, oriundos de uma movimentação política oxigenada a partir da sociedade civil nos estertores do regime militar, apreendida a partir dos inúmeros associativismos (CEBS, partidos políticos, movimentos populares e sindicais), trazendo à cena protagonistas oriundos do sistema fabril e da sociabilidade presente nos bairros, sobretudo aqueles notadamente mais periféricos e populares, constituiu uma rede entrelaçada de enfrentamentos diante das crises políticas e econômicas que despertariam sociólogos e antropólogos para uma nova sensibilidade, no caso aqui em tela, etnográfica, na qual se pode inserir as decisivas e pioneiras contribuições de Magnani.
37Notar o caráter de simultaneidade dessas produções em que pese diferenciarem repertórios conceituais, abordagens e formas de lidar com fenômenos e temáticas muito próximos. Eder Sader publicaria seu alentado volume, que aliás foi outra contribuição que marcou época nas Ciências Sociais brasileira, quatro anos depois de Festa no Pedaço (Magnani, 1984). Segundo a autora que resenhou a quarta edição de Novos sujeitos..., publicada em 2001,
A preocupação do autor [Sader] se volta a analisar não as estruturas econômicas, sociais e políticas, mas as experiências populares. É a partir do desenvolvimento de novas práticas e da politização do cotidiano criadas pelos novos sujeitos, que os mesmos são analisados. O espaço da casa tido como um espaço burguês e somente de reprodução da força de trabalho se apresentou para Sader como um espaço privilegiado para a compreensão de como os trabalhadores davam sentidos e significados a sua realidade (Sanfelice de Paula, 2013, p. 149).
38Observa-se que “o repertório marxista presente nos termos da análise em autores como Eder Sader, notados no excerto acima (“espaço burguês” e “força de trabalho”) passam a ser problematizados na chave de categorias apreendidas cada vez mais pela via etnográfica (no caso, aparece a noção de casa em destaque) presente num repertório que levaria muitas análises ao encontro da perspectiva antropológica” (Toledo, 2023). Interfaces e concomitância de perspectivas foram sintetizadas num outro volume festejado, A Aventura Antropológica, organizado por Ruth Cardoso (1986). Essa compilação foi muito representativa dos repertórios e abordagens observados ao longo deste período de consolidação do urbano e de seus grupos periféricos e populares como temas de interesse das Ciências Sociais.
39Uma noção que sobressaiu à época foi justamente a categoria casa, que retirada de sua condição etnográfica de locus da reprodução da classe trabalhadora e status socio-moral, levaria autores como Roberto DaMatta a abstraí-la numa projeção mais relacionada à tradição do pensamento social brasileiro, lugar caro das teorias mais totalizantes sobre o Brasil. Nessa medida, vale uma breve digressão a respeito da casa.
40A noção de casa com esfera antitética à esfera pública (a rua) vem de uma tradição de intelectuais brancos que tensionaram praticamente todo o campo daqueles que se reconheceram continuadores do pensamento social brasileiro. Ao mesmo tempo, e no contexto em que as ideias de DaMatta começaram a ganhar corpo no final dos anos 1979, sobretudo com as contribuições de Carnavais, Malandros e Heróis, um pensamento feminista negro se insurgia em parte contra o stablishment da academia brasileira.
- 3 Hoje há uma significativa retomada da literatura feminista negra nas Ciências Sociais e na Antropol (...)
41Sem dúvida que esse movimento de pensadoras feministas negras (brasileiras e estrangeiras) complexificaria o cenário das ideias que corriam pelos anos 80.3 Cabe citar notadamente pensadoras ativistas como Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzales. Esta última, por intermédio de uma prosa assertiva de estilo contundente apresentado num texto de 1979, mas publicado apenas em 1984 na Revista da ANPOCS (“Racismo e Sexismo na cultura brasileira”), colocaria a crítica epistemológica que alcançaria, inclusive, a noção de casa, que rapidamente se vulgarizava pelo modelo dilemático damattiano.
42No referido artigo de 1984, que investiu na crítica a autores canônicos como Caio Prado, a autora numa prosa até então pouco ambientada nos cânones narrativos da escrita antropológica/branca/acadêmica brasileira, procurou repensar epistemologicamente as teorias sobre cultura brasileira, inclusive buscando nas personalidades negras, tais como no contexto do futebol e do carnaval, exemplos problemáticos a respeito das teses do embranquecimento.
43Denunciando argumentos que investiam numa espécie de caráter pré-lógico das emoções das mulheres negras na condução da sexualidade dentro do contexto opressivo da escravidão e alhures, a autora severamente aponta para uma “neurose cultural”, que oculta os sintomas da dominação branca sobre as mulheres negras, tomadas por objetos (e seus filhos, suas famílias).
44Nota-se que aqui a noção de casa, e com ela os afetos experenciados nesse espaço de pertença, bem como a fruição da sexualidade vivida, a exposição à carência material, que alude à exclusão sobretudo dos pobres e pretos do mercado de trabalho, os arranjos familiares aparecem indexados à problemática da democracia racial, equação que a autora busca desmontar por uma via interdisciplinar, acionando até mesmo a psicanálise. Mulher negra, mulata, mãe preta conformam um conjunto de categorias que interpelam o conceitualismo descarnado pressuposto em noções intelectualistas de casa.
45Não obstante, pode-se dizer que a categoria pedaço tenha se beneficiado dessa releitura sistêmica da categoria casa realizada por DaMatta, mas que se propôs numa escala etnográfica mostrar também os riscos da sociabilidade, onde o que se ajusta para além da dicotomia analítica imperativa casa/rua seria toda uma dinâmica dos regimes de reciprocidade, que se colocam diante de toda sorte de conflitos latentes no cotidiano, afinal “Para além da soleira da casa, portanto, não surge o resto do mundo” (Magnani, 1984, p. 140).
- 4 Não abriremos aqui uma nova frente de debate, mas cabe apontar que, para além de uma comparação dos (...)
46Acrescenta-se que pedaço ao se colocar de maneira mais modesta e à margem do debate sobre o Brasil como totalidade, ou porque possivelmente tenha deliberadamente menor ambição heurística, uma vez que não reivindica filiação a uma tradição histórica arraigada ao pensamento social brasileiro, fez com que ela de maneira mais lábil pudesse ser reatualizada ou corrigida no fluxo de novas demandas e dinâmicas por reterritorializações de práticas cotidianas por espaços de pertença. Assim não nos parece despropositado pensar num pedaço delas, num pedaço LGBTQIA+, num pedaço negro, ainda que outras categorias, como as de territorialidade e/ou código-território (Perlonguer, 1987; 1992), têm alcançado as pesquisas urbanas mais contemporâneas (Puccinelli; Simões, 2022; Nascimento, 2014).4 Aliás, sugestão que se encaminhou e deu livre curso a pesquisas tão distintas, mas que dela se beneficiaram, tal como veremos em alguns exemplos pontuais mais adiante.
47Não obstante, e mantendo algum diálogo com o binômio “rua versus casa”, pedaço revelou um outro corolário de relações: enquanto casa seria o domínio hierárquico do conhecido e da parentela e a rua, espaço marcado pela igualdade e lugar do anonimato e dos estranhos, pedaço evidencia o plano dos “chegados” que, entre a casa e a rua, instaura um espaço de sociabilidade negociado. Assim, chegados desvela um campo de interações em que as pessoas se encontram, criam novos laços, manipulam diferenças e nutrem-se de redes de sociabilidade numa paisagem aparentemente desprovida de teleologia histórica lida preponderantemente na chave da pobreza ou da exclusão política. (Magnani, 2003, p. 86).
48Mas há outras consequências analíticas embutidas na categoria, pois pedaço ofereceu à etnografia a possibilidade metodológica de inaugurar abordagens que levassem em conta dinâmicas da intimidade cultural (Herzfeld, 2008), corroborando tanto para a percepção quanto aferição dos conflitos que reiteradamente deflagram variadas formas contextuais e poéticas da violência para além dos consagrados marcadores sociológicos até então conhecidos, sobretudo índices socioeconômicos associados à desigualdade ou novas propostas de inspiração etnográfica assentadas na noção de fronteiras porosas entre ilegal e legal.
49Gravitando em torno de pedaço não esteve mais somente em questão a violência da cidade ou da sociedade brasileira (essa totalidade problemática), mas tais e quais formas expressivas que puderam se insurgir em contextos de pedaço. E a despeito tanto das escolhas temáticas do autor quanto das análises sobre violência urbana contemporâneas à Festa no pedaço... e depois dele, mesmo que a categoria não tenha assumido a interpretação de alguns desses temas candentes relacionados à violência urbana, ela foi bem mais além de sua acepção como espaço ou rede de relações “comunitárias”, ainda que curiosamente pouco tenha frequentado uma importante bibliografia sobre violência urbana, que ganhou projeção sobretudo na segunda metade dos anos 2000 em diante (Feltran, 2008; Telles & Hirata, 2007; Cabanes; Georges; Risek & Telles, 2011).
50Tal fato decorre da óbvia constatação de que conflitos nunca estiveram ausentes mesmo nos regimes de maior camaradagem entre “chegados”. Nessa direção sustentamos, como veremos adiante, que pedaço também contribuiu metodologicamente para que uma percepção etnográfica a respeito das periferias e das dimensões mais dialéticas da noção de sociabilidade pudesse vicejar, colocando termos como amizade e inimizade, paz e conflito, espaços domésticos e públicos, relações de gênero, enfim, dentro de condições existenciais de trocas negociadas nos regimes de alteridade. Embora timidamente colocados numa nota de rodapé (1ª edição, nota de número 8) são agudos os desdobramentos analíticos da categoria pedaço a respeito da percepção de senso comum, onde a população se encontra “diante da sociedade e suas instituições”, que no modelo damatiano seria o
Lugar do ‘você sabe com quem está falando’ – fórmula violenta de transição entre o mundo da universalidade legal para o mundo das relações pessoais (Cf. Da Matta, 1979). No ‘pedaço’, porém, torna-se desnecessária esta interpelação, pois todos sabem com quem estão falando (Magnani, 1984, p. 138).
51Mas é claro que se quase “todos sabem com quem estão falando” em contexto de pedaço, isso não autoriza a categoria depreender que todos possam compartilhar da mesma linguagem ou defendam pontos de vista contíguos. Não obstante, a percepção apurada sugerida pela noção de pedaço permite avaliar a presença das formas cismogênicas (Bateson, 2008) que podem ser expressas pelas linguagens da violência, por exemplo, fenômenos associativistas que imprimem rivalidades lábeis em torno da economia das drogas interseccionalizados a outros fenômenos como o religioso, assunto presente numa bibliografia que se adensa em importância analítica (Silva, 2016). Nesse caso e em outros, enfatizamos, as investigações poderiam se beneficiar das noções gerativas de sociabilidade e “chegados” depreendidas da noção de pedaço.
- 5 Nesse contexto de virada dos anos 1970 para os 1980, cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo e Por (...)
52Para além de um movimento de renovação conceitual mais geral nas Ciências Sociais e na Antropologia das sociedades complexas, urbana em particular, o que se viu foi uma expansão menos radial ou concêntrica de contribuições, que foram se consolidando numa paisagem acadêmica plural. Essa partilha em muitas abordagens parece ter favorecido a própria antropologia urbana disposta em algumas escolas ou abordagens pelo país, presente de modo pioneiro em alguns centros de excelência.5
53De todo modo, e de lá para cá, o próprio autor se incumbiu abnegadamente de regar o pedaço com etnografias (da sua ou da lavra de inúmeros orientandos, colaboradores e pesquisadores), ampliá-la nos espaços acadêmicos e institucionais como chave comparativa, imbricá-la ao que ele mesmo denominou, tal como já apontado, a uma “família de categorias” e, sobretudo, colocá-la à prova de suas apropriações, transformações e metaforizações. É o que pretendemos verificar nos tópicos que seguem.
54 Num curto sobrevoo pelo Google Acadêmico orientado pela busca do termo “pedaço” encontraremos desde trabalhos que se utilizam da palavra na sua acepção mais ordinária ou singela àqueles trabalhos que fazem usos mais estritos do termo em sua chave propriamente categorial. Tomar ciência dessa mistura não deixa de revelar seu frescor e vigor como categoria nativa, que certamente sobreviveu à sanha categorial antropológica, uma vez que se oferece à possibilidade de novas metaforizações.
55No domínio do senso comum “pedaço” aponta para a condição mais subjetiva de pertencimento, ideia que será recuperada na chave analítica, porém como substrato de relações dentro de gramáticas simbólicas específicas. Nesse caso pertencer como qualidade da categoria pedaço implica pressuposto dedutivo.
56Se for levada em consideração somente a presença do termo nos títulos dos trabalhos buscados pode-se incorrer num equívoco em relação aos usos que de fato se espalham entre tomar pedaço como metáfora ou recurso analítico, lembrando que a categoria antropológica incorpora as metáforas nativas dando a elas um polimento contextual e comparativo mais controlado se tomadas apenas por metáforas expansivas da fala figurada.
57Como categoria analítica há um nítido uso mais disciplinado e estrito de pedaço recuperado nas definições oferecidas em vários textos. Apenas como exemplos elencamos alguns descritores e ou expansões da categoria em expressões algo sui generis que tensionam a categoria original, tais como “pedaço sitiado”; “pedaço despedaçado” (Mascarenhas, 2003, p. 137); “apropriação” e “efeito pedaço” (Barros; Duarte; Becker, 2012, p. 113), “afinidades” e afinidades secundárias”, “donos do pedaço” (Lira, 2018, p. 52); “roteiro” (Silva, 2003, p. 60).
58Não é o caso de recuperar mais detidamente essas remissões para avaliar o rendimento da categoria nesses casos, mas evidenciar alguns termos aos quais ela se agrega formando um conjunto criativo, conquanto crítico, de analogias em que vários contextos conexos podem estar associados a partir das evidências dos seus usos. Pedaço pode conectar várias instituições, não somente aquelas voltadas para o tema mais canônico do lazer e ou esportes (Machado, 2017), mas também subsidiou pesquisas cujos temas gravitaram em outras searas, tais como formas de religiosidade, apropriações políticas dos espaços urbanos e trabalhos que o vincularam às tradições sociológicas mais abrangentes como modernidade, mercado e globalização.
59É o caso do trabalho de uma orientanda de Magnani, Rosani Rigamonte, que discutiu a sociabilidade dos nordestinos na cidade de São Paulo associando perspectiva etnográfica às bases temáticas sociológicas mais canônicas, tais como os binômios tradição e modernidade, rural e urbano. Mas é Lilian Torres que depura a contribuição da categoria pedaço nos entremeios do texto da autora:
O Forró e a festa de São João, por sua vez, permitiram a Rigamonte refletir sobre as possibilidades do diálogo não só entre campo e cidade, mas entre o tradicional e o moderno, apontando ‘o que a cultura de massa reflete das tradições e o que a cultura popular absorve daquilo que é considerado moderno’ (2013, p. 33). O Forró do CTN e o das festas de São João do interior da Bahia guardavam entre si relações quanto às tradições perpetuadas e às influências provocadas pelo mercado fonográfico urbano, causadas pelo ‘ir e vir’ destes migrantes, que carregam consigo pedaços da cidade e pedaços do sertão, ‘contaminando’ ambos os lados da rede (2001, p. 241) (Torres, 2016, p. 215).
60Elencamos mais dois exemplos para atestar tais usos e apropriações criativas de pedaço. Associando lazer e religiosidade Costa (2015) propõe a expressão “pedaço crente”, e atento à linguagem metaforizada que se expande em contexto de “chegados”, quer dizer, de pedaço e em franco debate com categorias sociológicas englobantes assim a descreve
Pode parecer estranho recuperar aqui um termo que já foi largamente utilizado para identificar pejorativamente os evangélicos (Mariana, 1999, p. 187). No entanto crente é palavra que melhor expressa a intimidade exigida no pedaço. O termo já foi muito utilizado na identificação dos protestantes, como abreviação da expressão ‘crente em Cristo’. Com a inserção na mídia, o termo evangélico passou a ser mais utilizado e essa é a forma como os jovens com quem convivi se identificam quando questionados sobre qual a religião deles. Todavia, quando estão no pedaço, que é um espaço de lazer, encontro e sociabilidade é mais comum se chamarem de crentes (Costa, 2015, p. 33).
61Etnografando uma determinada avenida que centraliza as atividades do mercado do sexo travesti na cidade de São Carlos-SP, Rodrigues (2015) mobilizará pedaço associado a outras duas categorias (a enunciada dicotomia damattiana casa e rua e código-território de Néstor Perlongher, apenas esboçada anteriormente) a uma peculiar noção de “rua travesti” que nem se contrapõe exatamente à casa, mas também não seria exatamente um espaço intermediário “entre”. Pensando o “pedaço na rua” nessa peculiar configuração etnográfica, afirma o autor
A Rua apresenta possibilidades que extrapolam os limites colocados por alguns conceitos e categorias clássicas da antropologia urbana (Casa & Rua; Pedaço; Código-território). Contudo, faz isso sem negá-las; aliás, muito pelo contrário, contém nela, de alguma forma e em determinados momentos, [grifo nosso] aspectos de cada categoria já anunciada. E, se Magnani chamou o pedaço de terceiro domínio em relação à Casa e à Rua, de Roberto DaMatta, a Rua é uma espécie de “outro domínio”, algo que aponta para o além, que, se não quebra as categorias já exploradas, ao menos expande suas fronteiras e apresenta uma nova maneira de pensar as apropriações pelos sujeitos da e na cidade. (Rodrigues, 2019, p. 520)
62Essas acomodações e fluxos de significados imbricados a cada tentativa de mobilizar etnograficamente pedaço indica seu grande mérito, trunfo inextrincavelmente associado a atitude de Magnani que se deixou levar pelos fluxos analógicos da categoria, uma vez que a cada definição oferecida apareceram modulações a partir de três aproximações ou demandas.
- 6 Leveza é uma das características elencadas por Geertz (2001) para estabelecer a fala de senso comum (...)
- 7 Para uma verificação desse processo consultar Magnani (1999; 2000) e Torres (2016).
63Primeiro, como expressão oriunda de contextos nativos, revelada na atenção que Magnani conferiu às metaforizações presentes na fala, expressas pelo autor em definições leves6. Segundo, agregando novas temáticas, quando, na sequência dos usos da categoria, pedaço se pluralizou frente a realização de amplas pesquisas sobre novas práticas que deslocaram pedaço da periferia ao centro, descortinando e induzindo pesquisas sobre novas forma de lazer e na sequência expressões de religiosidade urbana enfeixadas na expressão Nova Era, e assim pedaço começa a perder força heurística para evidenciar duas outras categorias que também lhe serão caras, a saber, trajeto e circuito.7 Terceiro, como categoria analítica orientada pelas demandas colaterais em outras pesquisas, cumprindo as exigências de uma atualização mais à revelia do autor, tal como já apontamos acima.
64Para o primeiro fluxo, que revela a cozinha das pesquisas, o autor se utilizou, como dissemos, de vários termos leves ao dizer que pedaço foi um “achado” (Magnani, 2003, p. 86), “ideia nativa”, “termo comum” (Magnani, 2010), “trivialidade” (Magnani, 2019, p. 19). Para em seguida após comprovada sua dispersão em outras paisagens ser rebatizado como “noção”, “categoria” (Magnani, 2003, p. 86; 2009, p. 75); “instrumento de análise” e “unidade de sentido e inteligibilidade” (Magnani, 2014, p. 11).
65Certamente essa última expressão parece alcançar seu maior apuro metodológico dada a preocupação do autor em discutir pressupostos que tradicionalmente tensionam a disciplina, entre eles a noção de totalidade. Entretanto, pedaço como “unidade de sentido e inteligibilidade” ganha fronteiras mais lábeis sem abrir mão da ambição presente na economia conceitual do autor em manter filiações teóricas mais clássicas, quer dizer, procurar efeitos classificatórios como potência analítica na sua caracterização como categoria. Afinal, foi preciso um compromisso de conciliação, quer dizer, “escapar do plano de uma totalidade inabarcável, mas sem cair numa fragmentação sem fim” (Magnani, 2013, p. 56).
66Para arrematar essa sessão cumpre destacar que pedaço aparece com aspas (“pedaço”) em Festa no Pedaço (1984). Posteriormente e já liberto do contexto etnográfico original deixará de ser grafado dessa forma, embora não seja raro aparecer flexionado e com inclinações nativas em locuções adverbiais utilizadas em textos posteriores do autor, tal como “do pedaço” (Magnani, 2012, p. 88; Torres, 2016, p. 125). Em outros autores é mais comum encontrar a grafia “pedaço” demarcando filiação autoral, mas metonimizando o próprio autor, como se a categoria adquirisse autonomia ou fosse incorporada ao saber e imaginário acadêmico coletivo.
67De qualquer modo, o contraponto é justamente apontar para o fato de que pedaço cumpre desenvolver e testar novos contextos etnográficos, e se usado como um termo estável, de fora e de longe, acaba se prestando a produzir atalhos explicativos, algo que soa estranho ao fluxo auto-reinterpretativo da própria categoria, vocacionada a incorporar e não ocultar novos significados.
68Por isso é preciso ficar atento ao modo como outros termos são acrescidos pelo autor na tentativa de expandir seus usos e limites e, dessa forma, pedaço aparece como espaço intermediário (Magnani, 1984, p. 138; 1998, p. 116), experiência concreta (Magnani, 2002, p. 20), lugar (Magnani, 2002, p. 21), ponto de referência (Magnani; Torres, 1996, p. 13), rede de relações (Magnani, 1984; 2002, p. 21), sociabilidade (Magnani, 2012, p. 171) e prática [de sociabilidade] (Magnani, 2013, p. 55).
69Nuançar as definições de pedaço, disponibilizadas numa bibliografia espraiada, acarreta numa produtiva flutuação verificada em seus usos, que investigações futuras mais esmiuçadas poderão melhor avaliar. Entretanto, optamos por apresentar um panorama mais geral para, nessa última sessão, recuperar um outro pequeno conjunto de categorias que dialogam e por quê não dizer remetaforizaram e atualizaram a categoria naquilo que ela pode oferecer como inserção e diálogo entre antropólogos e outros interlocutores de pesquisa. Passaremos a focar algumas pesquisas antropológicas que nasceram sob o raio atrator de pedaço.
70A primeira desloca o pedaço da paisagem das periferias de São Paulo para uma favela do Rio de Janeiro. Em As Cores do Acari, Marcos Alvito (2001) descreve os arranjos originais e singulares de pedacinhos que compõem cada uma das quatro localidades diferentes da favela. Em uma lógica segmentar de oposições fragmentares, que não se reduz a uma mera questão de escala, a subdivisão em microáreas revela as diversas modalidades de diferenciação dentro de uma única paisagem, que podem ser observadas tanto nas diferentes origens que explicam as formas de nomeação das microáreas, quanto na valorização de suas localizações em relação ao asfalto (“mais pra fora” ou “mais pra dentro” da favela). Cada pedacinho compreende redes de relações marcadas por formas de pertencimento e de solidariedade a uma vizinhança restrita (algumas dezenas de casas e famílias) onde os vínculos de amizade são vigorados por amarrações de parentesco (consanguíneas e rituais), laços de procedência e formas de proceder.
71São nestas microáreas, cujas dinâmicas de retração e alargamento das redes de sociabilidade revelam processos de consolidação urbana das favelas e se abrem para contextos mais amplos (locais, interlocais ou supralocais), porém sem a mesma densidade relacional, que são agenciadas a formação de times de futebol, agrupamentos juvenis, namoros e casamentos, organização do tráfico de drogas e outras diversas atividades que se dão em um ambiente marcado por pertencimentos, reciprocidades, busca de consideração, horizontalidade das relações jocosas e memória compartilhada (acontecimentos, alegrias, tragédias).
72Assim como os pedacinhos de Acari, outras categorias utilizadas nos estudos urbanos preservam elementos da definição de pedaço acionada por Magnani – de uma rede de sociabilidade básica, porém densa, em um espaço intermediário entre a intimidade da casa e o anonimato da rua – para abordar os territórios relacionais dos bairros periféricos. A pesquisa de Alexandre Pereira (2005) com os pixadores na cidade de São Paulo, sob a orientação de Magnani, coloca em discussão a noção de quebrada, acionada de forma mais ampla por jovens urbanos, em sua maioria de bairros periféricos e ligados a certas práticas culturais, como pixação, rap, movimento hip-hop etc., para se referir às suas localidades e às experiências juvenis de morar nas periferias.
- 8 Proceder está relacionado tanto à origem (procedência) quanto ao saber se comportar (procedimento). (...)
73São experiências que remetem tanto ao pertencimento a espaços de socialidade de bairros periféricos, marcados por relações de proximidade e solidariedade, quanto a lugares associados, sobretudo para quem não é “chegado”, à violência, aos perigos e à carência. Para os chegados os códigos e normas do proceder devem ser respeitados com humildade, elemento relacional valorizado, em suas diversas formas de manifestação, nas relações de troca e aliança e nas dinâmicas de competição, rivalidade e conflitos.8
- 9 O fato de pessoas de quebradas diferentes da cidade se reconhecerem e compartilharem referências in (...)
74Ser de uma quebrada aponta para uma ideia mais ampla e, ao mesmo tempo, para uma “singularização da periferia” (Frúgoli Jr. apud Pereira, 2010a, p. 56) que sintetiza duas noções de quebrada: na primeira valoriza-se o bairro de origem e uma rede de relações mais particular com a qual se identifica, seu pedaço; na segunda, há uma ampliação da rede de relações para toda a periferia, sem territorialidade específica, que assume um pertencimento a regiões pobres e periféricas.9 Nestes dois movimentos a periferia surge como categoria afirmativa que desconstrói estigmas associados à referência espacial e conferem valor positivo à quebrada (Pereira, 2010a, p. 158).
75O próprio termo apresenta ambivalências relacionais e situacionais. A valorização da quebrada, tanto como referência à particularidade de um bairro quanto a uma noção alargada de periferia, convive com percepções negativas sobre seus lugares de moradia e pertencimento ou mesmo em relação à periferia de forma ampliada. Inclusive aspectos que poderiam ser considerados negativos podem ser valorizados, indicando atributos positivos de superação de várias adversidades em lugares assinalados por carências, criminalidade e violência. Portanto, a valorização da periferia, recorrente entre mobilizações culturais, artísticas e políticas de grupos que assumem uma visão local do que é ser da periferia, revela elementos de resistência, afirmação e pertencimento a um determinado éthos da quebrada (Magnani apud Pereira, 2010a, p. 56).
- 10 O que leva, inclusive, ao ocultamento de determinadas origens sociais e territoriais, pois estar li (...)
76Assim, ser da periferia confere status dentro das redes de relações de jovens moradores de bairros pobres e periféricos que se reconhecem como moradores de quebradas, com algumas referências comuns, o que os aproxima e fortalece trocas. Dois pichadores da cidade de São Paulo, sendo o primeiro de um bairro da zona leste e o segundo de um bairro da zona sul, desenvolvem vínculos pelo fato de ambos serem moradores de quebradas.10 Portanto, entender o modo como os contextos periféricos de moradia e socialidade são pensados e acionados por jovens ligados a diferentes movimentos culturais implica encarar a periferia como uma categoria identitária e não somente uma categoria espacial (Pereira, 2010b, p. 158). Um domínio relacional orientado por um modo de proceder próprio dos moradores de bairros periféricos que é pautado por certos códigos reconhecidos por aqueles que compartilham certas experiências urbanas.
77A maleabilidade conceitual que a noção de quebrada oferece para pensar a socialidade urbana, ao conservar e atualizar elementos do pedaço, pode ser observada, conforme Giancarlo Machado (2017), em pesquisa também orientada por Magnani, nos usos e sentidos conferidos à categoria pico no universo do skate paulistano, acionada tanto como referência a um equipamento urbano específico transformado em obstáculos para as manobras de skatistas (bancos, escadaria, corrimão) quanto, de forma mais ampla, para denominar espaços que reúnem vários equipamentos e que catalisam redes de sociabilidade e formas de pertencimento em tono da prática do skate. A Praça Roosevelt, em São Paulo, por exemplo, é um espaço de sociabilidade de skatistas (um pico) que, criativamente, circulam por diversos obstáculos (picos) em seu espaço de concreto. Percursos marcados por negociações e disputas pelas apropriações dos espaços com outras práticas que se dão nos vários cantos da praça, cada um com códigos que, a depender da situação, se desrespeitados, podem gerar tretas, ou seja, confusões e conflitos entre skatistas e outros frequentadores da praça.
78Nesse último sentido, a categoria pico, enquanto um espaço de referência para uma rede de relações sustentada pelo respeito a certas normas e compartilhamento de gostos e experiências, remete à noção de pedaço proposta por Magnani, mas de uma forma alargada e em movimento, pois abrange também outros picos: áreas que têm centralidade no universo do street skate paulistano, como a escadaria da Praça da Sé e os picos da Avenida Paulista; ou que tiveram sua importância diluída em meio aos constantes processos de reurbanização dos espaços da cidade, como os degraus do Vale do Anhangabaú; e picos que não se limitam às áreas centrais, pois se fazem presentes também nas áreas periféricas, como mostra Machado (2017), por meio de uma intensa circulação pela cidade, os rolês.
- 11 Point é o espaço de encontro entre pixadores de diferentes regiões para divulgação dos produtos e f (...)
- 12 Os rolês pelas quebradas de outros pixadores, principalmente aquelas mais distantes de seus bairros (...)
79Tal como outras experiências citadinas de atores e coletivos de diversas frentes (musicais, audiovisuais, artísticas etc.), que reafirmam pertencimentos às quebradas da cidade, a prática do skate permeia as dinâmicas cotidianas e mobilizações juvenis que atualizam, a todo momento, conceitos importantes para a antropologia urbana, como a noção de periferia. Uma prática citadina que se alimenta dos arranjos cotidianos, negociações e resistências que atravessam as arbitrariedades e relações de poder dos modos de governo dos espaços citadinos. É deste modo, dando seus rolês por entre picos, longe de qualquer enquadramento institucional, que os skatistas fazem e reinventam a cidade, assim como os pichadores e seus modos particulares de se deslocar pela cidade: de seus bairros para os encontros no point11 e destes contatos para outras quebradas.12
80Como revelam Pereira e Machado, os circuitos de pixadores e skatistas se tocam e conectam, em seus diversos pontos e espaços de encontro na cidade: points, festas, muros, picos e shows de hip-hop. Essa circulação dos jovens urbanos pela cidade, nas quebradas ou áreas centrais, não implica desterritorialização, ao contrário, promove uma contínua reterritorialização da periferia, pois “são as relações concebidas sobre e na periferia que estão sendo postas em ação” (Pereira, 2010b, p. 161). É assim, por meio deste amplo circuito, que coloca em diálogo outros diversos circuitos de mobilizações juvenis, que os jovens moradores e usuários de bairros periféricos, ao colocarem seu pedaço em movimento, reivindicam o direito à cidade, de suas partes e do todo, margens e centralidades, ao mesmo tempo reafirmando a identificação com as periferias (e suas particularidades) e expandindo os limites de pedacinhos, picos e quebradas.
81Ulf Hannerz, numa entrevista concedida à revista Mana em 1999 e problematizando sua própria trajetória de etnógrafo que, à época, migrava de uma perspectiva mais canônica presente na antropologia urbana euroamericana para uma antropologia transnacional dos fluxos, queixava-se dos alcances teóricos tímidos amealhados até então por aquilo que generalizava como tarefas da Antropologia urbana:
(...) estou um pouco desapontado com o fato de a antropologia urbana ter contribuído tão pouco para o pensamento antropológico mais geral. De meu ponto de vista, por exemplo, as cidades deveriam ser os lugares estratégicos para pensar a cultura em termos de uma organização da diversidade. Mas o que se verifica, em grande parte, da primeira fase da antropologia urbana é que esta se esquiva, buscando as menores e mais homogêneas camadas de vida na cidade, bairros étnicos etc., e percebendo-as isoladamente, em vez de imersas na diversidade. A antropologia urbana deveria ter-se concentrado mais em certos tipos de coisas que não são tão facilmente encontradas em outro lugar que não a cidade e, ao mesmo tempo, deveria ter tentado dar-lhes um sentido teórico (Hannerz, 2008, p. 154).
82Pouco antes desse diagnóstico pessimista que, ademais, é marcado por uma atmosfera ainda prenhe de um certo determinismo em relação às consequências inelutáveis do processo de globalização, o autor havia ponderado:
Evidentemente, na medida em que se considera o espaço, eu não negaria de forma alguma que processos locais ainda possuam um certo peso, uma vez que ainda gastamos muito do nosso tempo em um único espaço, que frequentemente abriga a maioria das pessoas realmente significativas para nós: parentes, amigos etc. (Hannerz, 2008, p. 151)
83A trajetória da categoria pedaço não deixa de reagir ou expressar os incômodos do reconhecido antropólogo sueco sem, ao mesmo tempo, afastar-se deles na medida em que pode, como evidencia Magnani, se colocar no exercício não somente de práticas, mas também do pensamento, ao menos dentro do espírito daquilo que autores como Bateson compreendeu por operações lógicas cognitivas dos nativos, o eidos (Geiger, 2008, p. 43). Pedaço, de fato, não existe fora das consciências espacializadas de seus praticantes, pois mesmo que, primeiro se revele como instância morfológica não pode ser tomado como mero substrato das relações por onde se travam regimes de sociabilidade. Pedaço também se efetua como expansão e extensão de relações, tal como evidenciam as noções colaterais de pedacinho e pico, em que processos agentivos com territorialidades e materialidades permanentemente atualizam modos de vida e noções de pessoa.
84A decisão metodológica e escolhas empíricas pelas espacialidades como traço constitutivo da categoria pedaço remete não necessariamente aos essencialismos ou determinismos ditados por localismos e ou mosaicos de modos de vida. A ambição teórica de pedaço não reside em renunciar ou alcançar interconectividades ou fluxos induzidos por processos universais (a globalização dos mercados, por exemplo). Afinal das contas, trata-se na consciência de seus interlocutores de um pedaço, ou seja, de algo que em alguma instância se projeta ou se supõe fazer parte de dimensões maiores sem necessariamente reivindicá-las, assim como a noção de quebrada implica que algo em algum lugar a ela interconectada possa se realizar como imagem que se projeta de algum inteiro.
85Tais níveis de pertença e pertinência estão assegurados pelo pensamento pedaço em “estilos intelectuais” que se impõe na elaboração permanente de categorias a ele conexas. Sem dúvida essas interpelações encontram o âmago da teoria antropológica não pela via do empirismo presente em noções como globalização e transnacionalização. Nesse sentido, os alcances teóricos da categoria pedaço passaram a gerenciar níveis de totalidade e, como dito, pertinência do ponto de vista de seus próprios agentes, aspectos sensíveis que Magnani e depois dele tantos outros evidenciaram de maneira variada e ou desigual no trato e experimentações etnográficas da categoria.
86Não obstante, e do ponto de vista etnográfico, conceber a categoria pedaço como fronteira analítica delimitadora de múltiplas experiências de sociabilidade autorizou posteriormente muitos outros autores a perspectivizar criticamente as noções de modo de vida, rede de relações e sociabilidade, termos rotinizados ou acomodados à categoria aqui em exame.
87Se a categoria pedaço foi metodologicamente concebida no e como processo de agenciamento e centralização espacial e simbólica de sociabilidades, se impondo como categoria de análise inclusiva e retendo experiências populares invisibilizadas na produção socioantropológica dos anos 70 e 80, que focava temas como processo produtivo, urbanização, trabalho, cultura política operária (Durham; Torres, 2009), nas décadas subsequentes novas temáticas e recortes empíricos ampliaram a necessidade de oferta de outras abordagens e, por que não dizer, imagens conceituais.
88Não necessariamente tributária da noção de pedaço, mas sem desconsiderá-la, ainda que passando a mantê-la em stand-by, a tarefa levada adiante por inúmeros pesquisadores se impôs pelo exame de experiências e dinâmicas de interações urbanas que responderam a outras formas de produção política e econômica de centralidades socioespaciais (Frúgoli Jr, 2000) e contra-usos dos espaços urbanos (Leite, 2004) em metrópoles marcadas por severas transformações num contexto e que índices e valores da globalização demandaram pela exploração e invenção de novos espaços, fluxos e territorialidades flexíveis (Arantes, 2000, p. 107).
89O próprio Magnani, acompanhando essas movimentações conceituais advertiria que seria
preciso (...) estar atento ao perigo que uma profusão terminológica e a multiplicidade de categorias podem acarretar: quando ainda presas no plano da metáfora, é possível que terminem apenas duplicando, como efeito de caleidoscópio, a heterogeneidade de seu objeto” e que o (...) desafio para todos os que têm a cidade contemporânea como tema de estudo é, pois, o de construir modelos analíticos mais econômicos que evitem o risco de se reproduzir, no plano de um discurso interpretativo, a fragmentação pela qual as grandes metrópoles são muitas vezes representadas na mídia, nas artes plásticas, na fotografia e em intervenções artísticas no espaço público (Magnani, 2001, p. 170).
90Em que pese a pertinência dessas recomendações o fato é que diante das transformações em curso o deslocamento analítico e espraiado da literatura acabou por interpor à categoria pedaço contextos de reiteração e produção continuada de demandas socioespaciais que interpelaram o direito e a coexistência de formas de subjetivação marcadas pelo exercício de muitos modos de experenciar a citadinidade (Agier, 2011; Machado, 2017; Frúgoli Jr; Spaggiari; Aderaldo, 2019).
91Soma-se ainda a essas abordagens sobre o espaço as análises voltadas para a crítica dos inúmeros mecanismos (estatais, privados) que despedaçam as formas de pertença (parentesco, vizinhança, pedaços) e que secretam lógicas urbanas permeadas pela invisibilidade, indiferença e negação à territorialização para parcelas significativas da população. Tais agendas políticas seguem impondo continuada “desapropriação de sujeitos” (Leite, 2004, p. 215) e produção compulsória de deambulações cotidianas (Machado Pais, 2015) de corpos vulneráveis e precários (Frangella; Rui, 2017) sobretudo nos grandes centros urbanos.
92É nesse sentido também que não se pode abster de inquirir a categoria pedaço naquilo que talvez seja sua maior fissura ou tensão analítica, o enfrentamento crítico dos regimes de diferença nos contextos urbanos. A pertinência metodológica e ancoragem no plano discursivo cotidiano como convencionalizações dessa ferramenta analítica, negociada coetaneamente pelo método etnográfico, se ressentiu nas últimas décadas da mesma volatilidade discursiva diferenciante que a gestou naquele contexto dos anos 80. A categoria pedaço foi ressubmetida no confronto com novas categoria no interior das dinâmicas vividas pelos agentes urbanos. Remetaforizada, tais como exemplificamos sobretudo para os casos das categorias pico e quebrada, pedaço não desapareceu do repertório conceitual popular, mas retraiu-se como instrumento de análise na bibliografia contemporânea possivelmente em função de novas demandas dos próprios interlocutores.
93Não obstante, como categoria etnográfica é possível que ainda possa ganhar fôlego para dialogar com aquilo que autores como Negri, ao redefinir a noção de multidão e de metrópole na contemporaneidade, aponta como sendo propriedades do “comum” o conjunto de singularidades ou de “multiplicidade de grupos e de subjetividades que dão forma (antagônica) ao espaço metropolitano” (Negri, 2008, p. 202).
94Se se pode valer de alguma leitura renovada de pedaço, à revelia de seu próprio autor que também a reposicionou em sua própria obra, há que se repensar o modo como a categoria constituiu territórios delimitadores de sociabilidades para reinserir suas melhores contribuições no exame das superfícies descontínuas de disputas materiais e simbólicas que erigem as dinâmicas citadinas mais contemporâneas. Foi dentro desses limites analíticos e na trajetória de sucesso amealhada pelos usos da categoria que o próprio Magnani (2005) lançou mão da categoria circuito para responder em parte a essas indagações, incorporando analiticamente as dinâmicas de pedaços em interação e em contraposição recíprocas na captura das dinâmicas dissonantes e sistemas classificatórios mais cambiantes e em fluxo.
95Embora a noção de pedaço projete na economia etnográfica alguns dos efeitos de contra usos provenientes da ação dos agentes sociais na negociação dos espaços urbanos há que se levar em conta a economia das táticas e estratégias (Certeau, 2005; Leite, 2004) que implica o contínuo desassentamento de pedaços e formas de sociabilidade, sobretudo populares. Se noções etnográficas como pedacinho (Alvito, 2001) descortinaram a multiplicidade da sociabilidade nas comunidades cariocas hoje processos de reconversão que partem de valores religiosos, modos de vida e rearticulação de poderes locais nesses espaços de pertença produzem sensíveis reconversões e instabilidades que não podem mais ser capturadas apenas pela lógica do pedaço ou dos pedacinhos.
- 13 Como revela a noção de projeto em Gilberto Velho (2003) e de etnografia da duração em Rocha e Ecker (...)
96Isso leva ainda a uma última questão que diz respeito à oclusão metodológica da temporalidade como grandeza classificatória na forja da categoria. Para se mensurar a natureza processual de produção contextual de novos pedaços há que levar em conta categorias de tempo13 que possam contribuir para divisar e prospectar as experiências e escolhas possíveis mais subjetivas de sociabilidade, que se despedaçam ou se reorganizam, cedendo lugar a outras dinâmicas simbólicas de mobilização e reterritorialização de contínuos regimes de pertença. Daí, e por fim, a trajetória contada em décadas da categoria pedaço cedeu lugar a noção de circuito, categoria que passou paulatinamente a ter uma maior agência criativa no contexto das pesquisas de Magnani e das pesquisas compartilhadas mais recentes que implementou. Categoria que por si só já mereceria um outro exame mais detido.