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De romeiras a rameiras: percursos entre gênero e cidade às margens da antropologia urbana

From pilgrims to streetwalkers: trajectories between gender and city on the margins of urban anthropology
Silvana de Souza Nascimento

Resumos

Este ensaio busca tensionar a relação entre gênero, cidade e diferença a partir de experiências de pesquisa que desenvolvi ao longo de mais de vinte anos, que se iniciaram no Núcleo de Antropologia Urbana, na Universidade de São Paulo, sob orientação de José Guilherme Cantor Magnani e que depois adentraram outros espaços institucionais e acadêmicos. É um texto que rememora uma trajetória etnográfica que percorreu relações entre rural, urbano e gênero, com trabalhos de campo em cidades de diferentes escalas, acompanhando trajetos e circuitos, inicialmente, de mulheres camponesas, entre o final dos anos 1990 até início dos anos 2000, e posteriormente mulheres trans e travestis, entre 2008 até os dias de hoje, que circulam por distintos territórios transnacionais.

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Entre o sertão e a metrópole

  • 1 O Divino Pai Eterno – uma imagem única que reúne o Pai, de um lado, o Filho, de outro e Virgem Mari (...)

1Centenas de barracas de camelôs invadem um terreno descampado no santuário de Trindade, em Goiás, e oferecem os mais variados produtos: utensílios domésticos, roupas, brinquedos, comidas, santinhos, crucifixos, velas, terços, tamboretes. Nos anos 1990, entre uma e outra missa nas duas igrejas, o som da música sertaneja, por exemplo de Tião Carreiro, podia ser ouvido nos acampamentos dos romeiros. Hoje, além do sertanejo, também pode-se desfrutar do funknejo ou do funk, como Kondzilla. As igrejas ficam abarrotadas de gente que vem de diferentes cidades e regiões para participar das festividades do Divino Pai Eterno1 em Trindade, a poucos quilômetros da capital Goiânia. Esta celebração também recebe, tradicionalmente, romeiros e romeiras que se dirigem ao santuário em carros de bois, antigos meios de transporte que emitem um som, o chamado chiado, em uníssono que é impossível passar desapercebido.

2Quando iniciei meus trabalhos para o mestrado em Antropologia Social pela USP, em 1998, o santuário de Trindade recebia 500 mil pessoas durante a festa. Hoje, com 90 mil habitantes, chega a receber dois milhões de devotos na primeira semana de julho, que chegam à cidade em diferentes meios de transporte: carros de bois, cavalo, a pé, carroças, carros e caminhões, ônibus e bicicleta. Vão para cumprir promessas, participar das missas, rezar, encontrar familiares e amigos e também fazer compras. Um dos grupos mais tradicionais são aqueles que chegam em carros de bois, os conhecidos carreiros, que tive a oportunidade de acompanhar durante anos, especialmente aqueles que vêm do pequeno município rural de Mossâmedes, área de produção de pecuária leiteira.

3Ao descrever esse cenário para José Guilherme Magnani, quando ingressei no mestrado, ele atentamente observou que, para além da centralidade da religiosidade católica, havia algo intrigante: práticas culturais urbanas que movimentavam famílias camponesas durante os processos rituais da festa de romaria. Havia elementos para pensar na perspectiva da antropologia urbana dentro de um ethos camponês. E, assim, seguindo suas orientações, a relação entre rural e urbano foi a questão que persegui ao longo de minha pesquisa de mestrado. O objetivo foi compreender como, durante a festa, os romeiros e romeiras, em um modo de vida camponês, dialogavam com dinâmicas urbanas por meio de práticas religiosas, de lazer e de consumo.

4Iniciei os trabalhos de campo no mesmo ano de meu ingresso no PPGAS/USP e pude acompanhar, desde então, os preparativos da romaria na zona rural e a viagem de ida e volta para a Festa do Divino Pai Eterno. Este campo inicial foi decisivo para minha incorporação na família romeira onde estava hospedada e também no grupo de romeiros como um todo. Ao observar o trabalho das mulheres na cozinha, percebi que, se ficasse apenas olhando passivamente suas atividades, eu levantaria informações apenas superficiais. Ofereci-me então para ajudá-las no preparo dos alimentos para a festa e iniciei a pesquisa intercalando trabalhos na cozinha e no caderno de campo. A posição que assumi terminou por se desdobrar para os demais momentos da romaria e também para fora do período da festa, realizando sempre algumas atividades femininas que me eram oferecidas. Um dos primeiros aspectos que me chamou a atenção foi o da importância do trabalho. Participar ativamente da romaria significava trabalhar em determinadas atividades antes, durante e depois da viagem. Além disso, esse trabalho estava dividido entre homens e mulheres, sem possibilidade de intersecções (Nascimento, 2022).

5Ao longo do mestrado, pude mostrar que, durante as celebrações, o santuário de Trindade transformava-se em um vasto acampamento, acolhendo devotos/as de diferentes municípios goianos e de outras regiões do país, oferecendo diversas formas de lazer e de serviços. Um imenso camelódromo ocupava uma grande área da cidade, um shopping popular à céu aberto, e era um dos lugares mais frequentados especialmente pelas mulheres. Procurei demonstrar também que a festa permitia a ampliação das redes de sociabilidade e propiciavam uma circulação urbana diferenciada pelo santuário. Romeiros e romeiras caminhavam constantemente em meio a uma multidão, participavam de shows, assistiam a missas, faziam compras e criavam laços com pessoas de outras cidades, etc. (Nascimento, 2000).

6Nessa época, comecei a fazer parte no NAU (Núcleo de Antropologia Urbana) da Universidade de São Paulo, que, em 2011, tornou-se o Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana (LabNAU). Aqui, pude aprender a importância essencial da etnografia e fazer relações entre a Antropologia Urbana, com seus pedaços, trajetos e circuitos (Magnani, 1984), e o meu objeto de pesquisa em Goiás. Minha participação no NAU revelou-se fundamental para o aprimoramento do problema teórico de minha dissertação e para a descoberta de que havia uma estreita relação entre o mundo rural e o urbano. Essa problematização só foi possível pela orientação cuidadosa de Magnani, que sempre lia e comentava todos os textos que produzíamos e compartilhávamos no NAU. E, evidentemente, sempre estimulava, de forma rigorosa, a realização de pesquisas de campo fazendo com que, nós estudantes, estivéssemos sempre atentos a acionar o “modo campo” de pensar e fazer antropologia.

O gênero da festa

7 Concluí a dissertação de mestrado em 2000 e na sequência ingressei no doutorado no PPGAS/USP. Já durante as arguições dos professores da banca, John Cowart Dawsey e Luciana Trindade de Aguiar Bittencourt, foram apontadas questões fundamentais para a elaboração do projeto de doutorado: minhas descrições etnográficas revelavam a predominância de uma regra social que separava homens e mulheres em espaços e formas de sociabilidade diferentes, uma homossociabilidade que organizava os encontros coletivos. Além disso, as dinâmicas familiares mostravam uma agência feminina que rompia, de certo modo, com um modelo de família patriarcal. Gênero era, portanto, um operador fundamental para a socialidade local.

  • 2 Ampliei meu campo de investigação para um circuito de festividades que incluíam, além da Festa do D (...)

8Assim, o objetivo principal da tese foi compreender a relação entre gênero e sociabilidade em Goiás por meio de um modelo de organização social que, de um lado, estava baseado na divisão sexual do trabalho e no casamento e, de outro, na homossociabilidade2. Desde as atividades domésticas nas fazendas até os mutirões, reproduz-se a regra de que, desde a infância, é preciso viver e conviver “homem com homem, mulher com mulher” (Nascimento, 2012). Essa regra estava presente em todos os encontros coletivos – trabalhos de ajuda mútua, comemorações familiares, rezas, romarias, festas de santo, rodeios, etc., criando laços de amizade e solidariedade entre pessoas do mesmo sexo e, ao mesmo tempo, uma segregação entre pessoas de sexos diferentes.

9Na tese, mostrei que a homossociabilidade e a segregação sexual não reproduziam necessariamente desigualdades de gênero, mas abriam espaços para a transformação social, como o fato de que, nos últimos anos, as mulheres tinham investido em sua educação formal em busca da formação superior, o que não ocorria de forma abrangente no universo masculino. Durante os trabalhos de campo, tive a oportunidade de presenciar um movimento precursor que se iniciou no final da década de 1990: a entrada de mulheres, que moravam em zonas rurais ou pequenas cidades, nas universidades públicas. O mesmo não se deu com os homens. Grande parte do público universitário, nessa região, era feminino, sem contar com o fato de que a escolaridade, em praticamente todos os níveis, era maior entre as mulheres. Frequentar a universidade e dominar os conhecimentos letrados mostravam-se como uma faculdade feminina, como o próprio nome de minha tese indicou “Faculdades femininas e saberes rurais”, defendida em 2006. O desenvolvimento dessa potencialidade implicava em uma série de etapas, entre elas uma intervenção cirúrgica no seu próprio corpo, a laqueadura, interrompendo o seu ciclo reprodutivo, em sua maioria, antes dos 25 anos (Nascimento, 2006).

  • 3 Além disso, na Unicamp, e com professoras integrantes do PAGU - Núcleo de Estudos de Gênero, pude a (...)

10Diferentemente de muitas antropólogas e pesquisadoras dos estudos de gênero, não elaborei o recorte da pesquisa por estar inserida dentro do feminismo e do movimento de mulheres. Na verdade, meus conhecimentos sobre esta temática surgiram do trabalho de campo e da perspectiva etnográfica, e que me permitiram atuar também dentro do campo ativista3. De certo modo, foi a partir da experiência antropológica – treinada pelos conhecimentos do Núcleo de Antropologia Urbana e de seu fundador – que me tornei uma estudiosa do campo dos estudos de gênero e da sexualidade e transfeminista.

11Naquele momento, os campos disciplinares da antropologia no Brasil passavam a ganhar contornos mais consolidados, fazendo com que algumas problemáticas se tornassem mais específicas a certas áreas e, em certa medida, os temas de gênero e sexualidade passassem a ser tratados em um campo delimitado e os temas voltados para cidades em outro, envolvendo juventudes, lazer, religiosidades, esportes, jogos etc.

Das romeiras às rameiras

  • 4 Atuei no curso de Graduação em Antropologia da UFPB, que foi o terceiro a ser criado no Brasil. O p (...)

12 Depois de defender o doutorado e de ter outras experiências de trabalho fora do mundo acadêmico, passei em concurso para docente da área de Antropologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em 2008, em um campus novo naquele momento, no Centro de Ciências Aplicadas e Educação (CCAE), na região do Litoral Norte, na cidade de Rio Tinto, há 50 quilômetros da capital João Pessoa4. Esse campus encontra-se na fronteira com uma das áreas indígenas Potiguara, localizadas dentro de Rio Tinto, e também de uma vasta Área de Proteção Ambiental (APA) chamada Vale do Mamanguape. A sede da universidade fica dentro das instalações de uma antiga fábrica de tecidos, a Companhia de Tecidos Paulista, de propriedade da tradicional família Lundgren.

  • 5 “Entre campos, mares e trajetos – experiências etnográficas no Litoral Norte da Paraíba” (Edital MC (...)

13Quando cheguei àquela região, instigada pela complexidade do cenário em que se encontrava o campus IV da UFPB, iniciei uma pesquisa que procurava dialogar diretamente com as questões trazidas pelo NAU5. A proposta era testar a família de categorias de José Guilherme Magnani (pedaço, trajeto, circuito, mancha, pórtico), que até então tinham sido problematizadas em contextos de grandes cidades na região Sudeste, em cidades de pequena e média de escala, desta vez em territórios paraibanos do Litoral Norte deste estado nordestino.

14A investigação acompanhou a formação do Guetu (Grupo de Pesquisa em Etnografias Urbanas), que depois incorporou também as pesquisas sobre cidades, movimento hip-hop, juventudes e relações raciais do Prof. Marco Aurélio Paz Tella e de seus estudantes. Quando eu estava na coordenação do Guetu, buscava propiciar espaços de interlocução acadêmica e elaboração de etnografias que promovessem o diálogo entre a Antropologia Urbana e os Marcadores Sociais da Diferença (corpo, gênero, geração, raça, etnia, etc.) e refletissem sobre a clássica relação campo-cidade, rural-urbano, comunidade-sociedade, socialidade-sociabilidade. Acredito que o Guetu continua, até hoje, a incentivar trabalhos etnográficos que envolvam essas problemáticas.

15Retomando às minhas pesquisas, o projeto inicial mencionado acima tinha como propósito analisar a dinâmica urbana em três municípios — Mamanguape, Rio Tinto e Baía da Traição — do ponto de vista dos equipamentos sociais, das sociabilidades, das formas de organização social, das construções identitárias etc. Além disso, pretendia problematizar modelos de cidade (Magnani, 2012) em lugares, tradicionalmente, qualificados como rurais ou indígenas.

  • 6 Como um desdobramento desta pesquisa iniciada no Litoral Norte, de 2011 a 2013, participei, como pe (...)

16A proposta do projeto foi, assim, apresentar uma perspectiva antropológica sobre o Litoral Norte da Paraíba a partir dos trajetos e da circulação de pessoas que não tinham visibilidade, à primeira vista, naquela região: mulheres e travestis que atuavam como trabalhadoras sexuais e ocupavam as margens da rodovia BR 101. Acompanhando essas protagonistas, pude constatar uma circulação que incluía desde municípios rurais e indígenas até a capital João Pessoa e outras cidades do país e do exterior. Foram mapeados três circuitos (Magnani, 2012) que se interconectavam e criavam tensões entre si: o da prostituição, o dos concursos de beleza trans e gay e o do movimento LGBT. A pesquisa mostrou que esses circuitos perpassavam municípios e cidades de diferentes escalas e possibilitavam pensar em deslocamentos urbanos e transitividades de gênero e de sexualidade. Na minha tese de livre docência (Nascimento, 2024), os resultados desta pesquisa, entre outros, foram apresentados, discutidos e reatualizados6.

17A Universidade Federal da Paraíba foi o lugar em que me tornei, integralmente, professora, orientadora e pesquisadora. Tive a oportunidade, desde os primeiros projetos, de realizar pesquisas de forma coletiva, com estudantes em diferentes etapas da formação acadêmica, com interesses e habilidades distintos, e fui compreendendo que o fazer antropológico, no meu modo de entender, era muito mais produtivo e criativo quando realizado em conjunto, compartilhado e engajado. Também pude apreender os meandros não somente dos processos burocráticos de uma universidade pública, mas das políticas públicas na área da educação, que puderam ser incentivadas e fomentadas durante as gestões do governo Lula e, posteriormente, serem sucateadas e deslegitimadas pelo governo de Jair Bolsonaro.

18A meu ver, o esforço intelectual empreendido pela antropologia permite atravessar diferentes modos de atuação que vão além da produção teórica e científica em si e possibilita construir projetos de intervenção social e política com movimentos sociais, políticas públicas, organizações etc. Na verdade, penso a antropologia como uma ciência engajada, e daí a importância da interconexão entre pesquisa, extensão e ensino.

19Na Paraíba, também me deixei afetar pelo multiverso sexual, afetivo, estético e político de pessoas transfemininas e travestis que me abriram as portas para um mundo que eu desconhecia e que, aos poucos, tornou-se também meu próprio mundo e de um amplo leque de pesquisas e atividades acadêmicas que venho desenvolvendo ao longo de mais de quinze anos.

As cidades-desejo

20Ingressei no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em junho de 2013, em novo concurso, na área de Antropologia Urbana. Vinha de uma universidade com um corpo docente bastante jovem, que havia feito sua formação entre os anos 1990 e 2000, provenientes de diferentes universidades do Brasil, que se propuseram a investir na criação de um novo curso de graduação e de pós-graduação em Antropologia, na tentativa de construir uma proposta acadêmica e pedagógica que não reproduzisse as hegemonias dos grandes centros localizados no Sul e Sudeste.

21De um espaço mais livre e emergente, reingressei em uma universidade de longa tradição e de uma organização muito mais hierárquica e piramidal. Demorei algum tempo para me readequar e encontrar um lugar onde pudesse dar continuidade às minhas pesquisas, ministrar aulas e construir um espaço coletivo, com estudantes, de forma mais horizontal, sem abandonar o prazer de estudar e fazer antropologia. Ainda que tivesse sido parte do NAU durante o mestrado e o doutorado, a problemática do gênero e da sexualidade agora estava concentrada em outro núcleo de pesquisa, o NUMAS (Núcleo de Marcadores Sociais da Diferença), e os trânsitos e diálogos entre áreas não eram tão simples. Ainda havia certas resistências de pensar na articulação entre gênero e cidade como constitutivas do campo da antropologia urbana feita no Brasil.

22Desde minha entrada na USP, assumi a coordenação administrativa do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana, tendo em vista a aposentaria de José Guilherme Magnani (que se tornou professor sênior) e, ao mesmo tempo, formei meu próprio grupo de pesquisa – o CÓCCIX (Estudos indisciplinares do corpo e do território) – com temáticas voltadas para a articulação entre os estudos urbanos e os marcadores sociais da diferença (ver Fiori e Nascimento, na apresentação ao dossiê neste número).

23Em relação às pesquisas, tenho desenvolvido, desde então, projetos que estão na interface entre cidades, corporalidades, gênero e transfeminilidades. Como herança do NAU, grande parte dos meus trabalhos são realizados com a participação coletiva de estudantes em diferentes etapas de sua formação acadêmica e penso que a antropologia que faço e penso se dá, sobretudo, em diálogo com múltiplas vozes, nos textos, com minhas interlocutoras, ativistas, intelectuais, na rua e na universidade, com estudantes e colegas.

  • 7 A pesquisa contou com a participação de estudantes de graduação em Ciências Sociais (Alexandre Mart (...)
  • 8 No mesmo ano de início da pesquisa “Cidades-devir”, em 2015, implementei um projeto de extensão com (...)

24Em 2014, depois de um ano como docente USP, entre adaptações e entendimentos dessa instituição que eu começava a conhecer não mais como estudante, apresentei um projeto de pesquisa à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para poder dar continuidade às minhas pesquisas: “Cidades-devir: deslocamentos entre fronteiras, pessoas, lugares”7. O projeto foi aprovado em 2015 e teve como objetivo desenvolver experimentos etnográficos em cidades que apresentassem escalas diferenciadas, de pequeno porte a metrópoles, e observar deslocamentos e trajetórias de mulheres trans e travestis. Com a intenção de desdobrar as pesquisas que desenvolvi na Paraíba, propus ampliar o território do trabalho de campo para a capital João Pessoa, onde não tinha desenvolvido pesquisas mais sistemáticas com a prostituição travesti, para a cidade de São Paulo8 e para a região do Alto Solimões, na tríplice fronteira amazônica, entre Brasil, Peru e Colômbia (Oliveira e Nascimento, 2016).

  • 9 Margarita Chamorro já tinha realizado a primeira visita no NAU/USP, em 2013, onde tivemos a oportun (...)
  • 10 Nesta estadia, de 9 a 19 de novembro de 2014, participamos do seminário “Amazonia contemporánea. Di (...)

25A proposta de realizar uma comparação com uma região localizada no Norte do país pretendia apresentar um contraponto etnográfico bom para pensar novos modelos urbanos e cidades-devir. Também acompanhava as novas linhas de pesquisa que estavam sendo desenvolvidas no Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana (LabNAU), particularmente no Grupo de Etnologia Urbana (GEU), que realizava investigações sobre a presença indígena em cidades amazônicas. Em 2014, eu já havia realizado uma breve visita ao Alto Solimões, na cidade de Letícia, do lado colombiano da fronteira, para participar de um seminário organizado por Margarita Chaves Chamorro9, antropóloga e pesquisadora do Instituto Colombiano de Antropologia e História (ICANH), que também contou com a participação de diferentes integrantes do LabNAU10. Durante nossa estadia, pudemos observar a diversidade de paisagens, línguas e culturas que compõem essa região; a centralidade dos rios; a forte presença indígena e suaa multiplicidade étnica; e, especialmente, a intensa mobilidade e trânsito entre pessoas, fronteiras e lugares.

26Em diálogo com José Miguel Olivar, na época pesquisador do Núcleo de Estudos de Gênero da UNICAMP (PAGU) e atualmente professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, que tem realizado pesquisas sobre prostituição e mercados do sexo nessa região há vários anos, identifiquei novas possibilidades investigativas, que pudessem, de certo modo, dialogar com o universo pesquisado na Paraíba. Desde então, José Miguel tornou-se um parceiro de pesquisas, de aulas, de seminários e de outros projetos de pesquisa realizados até agora.

  • 11 Não custa lembrar que o Brasil é o país que mais assassina travestis e mulheres trans no mundo pelo (...)

27Nessa pesquisa, pudemos realizar trabalhos de campo nessas três regiões e, especificamente na cidade de São Paulo, optamos por centrar nossas observações no entorno da Cidade Universitária, no bairro do City Butantã, território tradicional de prostituição feminina, cisgênera e travesti (Nascimento, 2014; Nascimento, 2019). Essa pesquisa, somada aquela feita na Paraíba, foi apresentada na tese de livre docência, defendida em fevereiro de 2024 e será em breve publicada: Errantes Magníficas e suas Epistemologias Transfeministas. Nesta tese, ofereço uma viagem em oceanos profundos na companhia de errantes magníficas, travestis e mulheres trans, que atravessam rodovias, estradas, avenidas, portos, rios, mares, e fazem sexo, cidade, corpo, gênero e política em diferentes cantos do Brasil. De perto, de dentro e ao lado, com elas, faço uma antropologia implicada que se deixa atravessar por experiências transfemininas que navegam entre espaços urbanos, de diferentes escalas, e produzem cidades, corpos, gênero e conhecimento. Ao traçarem caminhos singulares, de nordeste a sudeste do país, compõem urbanidades que não estão localizadas em uma cidade específica e se fazem por meio de mobilidades territoriais, corporais, sociais, econômicas, sexuais, afetivas, políticas. Movimentam-se e, nesse deslocamento, constroem e descontroem feminilidades outras que desvelam as ruínas de um patriarcado mestiço11. Assim, pretendo tornar visível feminilidades transitivas em busca de reconhecimento e de sobrevivência que tecem cidades e corpas e, por meio delas, elaboram epistemologias próprias, que tiveram sua origem nas pistas e nos palcos, entre o gozo e a blasfêmia.

Sexo, gênero e cidade, uma relação antiga

28 Se observarmos a relação entre sexo, gênero e cidade, ou de forma mais ampla, cidade e diferença, notamos que ela está presente desde as teorias precursoras da antropologia urbana, a partir da Escola de Chicago e ao mesmo tempo faz parte da própria constituição dos diferentes modelos de cidade ao longo da história, desde pelo menos a polis grega (Sennet, 2014). A ideia de região moral, por exemplo, de Robert Park (1979), já apontava para territórios nos espaços metropolitanos onde pequenos mundos eram construídos por meio de afinidades sociais, sexuais, culturais, econômicas, etc. Eram regiões construídas por distâncias morais, resultantes das restrições e permissões da vida citadina. Uma dessas regiões eram os clássicos guetos gays, que foram muito estudados no campo dos estudos queer e da sexualidade.

29Sobretudo na antropologia feita no Brasil, as problemáticas que envolvem as cidades, de um lado, e aquelas que abarcam corporalidades, sexualidades, gênero e outros marcadores da diferença, de outro, desenvolveram-se de maneira apartada, em um jogo alternado de figura e fundo. Felizmente, Nestor Perlongher (1987) foi um dos primeiros que fez esse cruzamento. Sua pesquisa, nos anos 1980, no centro de São Paulo, fez uma discussão tanto no campo da antropologia urbana quanto dos estudos sobre homossexualidades. Ele justamente se propunha a pensar no rendimento que o conceito de gueto gay tinha no contexto da prostituição masculina, dos michês. Para Perlongher, a circulação dos michês pelo centro de São Paulo não estava delimitada a um único território, com fronteiras fixas, mas se construía entre o nomadismo e o sedentarismo. Reterritorialização e desterritorialização em busca de prazer e dinheiro. Ele mostrava que os michês – classificados por diferentes categorias êmicas – se constituíam no movimento entre diferentes lugares, uma deriva orientada na qual as redes de relações não eram fixas, mas tinham um propósito, produziam lugares de encontro e de sociabilidade e classificavam, de forma circunstancial, corpos de acordo com a sua localização e seu desejo. Territórios de fuga e captura. Fluxos de desejo e de dinheiro.

  • 12 A noção de gueto também foi bastante problematizada na antropologia urbana também pelas pesquisas d (...)

30Assim, ao invés de confirmar a teoria do gueto12, e da formação de um grupo autocontido, o autor propôs pensar na ideia de micro redes relacionais, multilocalizadas e fluidas que tinham na metáfora da boca uma expressão singular desse território como emissão de fluxos, fazendo alusão à própria “Boca do Lixo”. Não uma boca que recebia o lixo, mas que possibilitava a abertura para o imprevisto, que dava prazer e comia com muito apetite aquilo que a rua lhe oferecia. Podemos pensar então que se a Boca do Lixo era uma zona segregada, território para diferentes experiências de ilegalismos, prostituição e práticas sexuais dissidentes, também permitia uma perambulação que abria para outros espaços corporais e urbanos. Perlongher indicava que essa região moral possibilitava pensar, mais do que o tema da marginalidade, nas possíveis centralidades urbanas e na presença de territórios marginais em diferentes lugares do centro. Além disso, apontava para um deslocamento da reflexão sobre a classificação de categorias identitárias para fluxos do desejo. A partir de Perlongher, diversas pesquisas foram realizadas pensando na articulação entre sexualidades e cidades no Brasil (ver Franch e Nascimento, 2020) e sua obra segue até hoje uma referência primordial nesse campo de estudos.

31Se adentrarmos as brechas das cidades, encontraremos inúmeras redes de sociabilidade e de lazer que movimentam fluxos do desejo, práticas sexuais e produções corporais que pouco refletem, de forma estanque, uma cidade desencarnada, sem corpo e sem sexo. A decisão propositiva em dialogar, acompanhar, negociar, compreender, respeitar e seguir pessoas e coletivos nas suas diferentes práticas e trajetórias produz, necessariamente, uma ruptura do encapsulamento dos muros metropolitanos e, por consequência, uma aproximação afetiva e corporal. A etnografia urbana, embrenhada nas esquinas, ruas, parques, casas, lojas, bares, cabarés, calçadas, barracos, cortiços, motéis, bancos, galerias, bairros, ônibus, trens, possibilita articular a cidade, o corpo e os marcadores sociais da diferença. E é preciso, para tal perspectiva, incluir a corporalidade da própria pessoa antropóloga nesse mosaico de relações e de territórios.

32Se acompanharmos o movimento errático travesti, como tenho feito em minha trajetória de pesquisa, sua presença nos interstícios das cidades, em um jogo de visibilidade e invisibilidade, contesta não somente os projetos urbanísticos e arquitetônicos e seus modelos de cidade moderna, mas as normas generificadas e racializadas que os constituem. De um lado, há um investimento para que seus corpos se tornem visíveis, reconhecidos e desejados; de outro lado, há uma política de extermínio que as quer invisíveis (Nascimento, 2018).

33Segundo a arquiteta Paola Jacques, a experiência de corpos que erram remete a ideia do Labirinto. “A ideia do Labirinto é a do estado labiríntico, relacionado não necessariamente à forma do labirinto, mas, sobretudo, à experiência de nele penetrar” (Jacques, 2003, p. 93). O estado labiríntico possibilita um transitar não linear que cria cartografias próprias que resultam da experiência do percurso, seguindo os movimentos de transformação da paisagem. Produz um movimento de desorientação e de desterritorialização que também cria sua própria temporalidade, que tem a ver com a negação da velocidade do mundo contemporâneo e da possibilidade da construção de outras temporalidades, em diálogo com a figura do “homem lento” de Milton Santos (1994). Esta cartografia ambulatória, remete, para a autora, à ideia de cidade-mato, de rizoma, que não para de se proliferar.

34Nas experiências travestis, a ideia da desorientação, na verdade, pode ser pensada como processo de circulação que não estaciona em algum ponto fixo de uma cidade específica. Pode-se pensar em mobilidades que transpassam territórios heterogêneos. Quando elas estão paradas em algum ponto da cidade, também estão em movimento físico e simbólico, impulsionadas pelos desejos por homens e por dinheiro, pelos sonhos de viagens e passagens por diferentes lugares, pelos projetos de modificação e transição corporal.

35Assim, a despeito dos projetos urbanísticos que pretendem estabelecer vias de circulação específicas para determinados corpos, criam-se fraturas nessa suposta estabilidade. Para Jacques, essas experiências são constitutivas das cidades-mato, que não tem forma precisa e se ramificam. A meu ver, nas experiências travestis, em meio aos processos de geminação rizomática, há um desejo de destacar-se, de magnificar-se, deixar aparecer um corpo que contesta a paisagem hegemônica, e, ao mesmo tempo, propõe sua própria magnificação. É como se fossem momentos de brotos molares em uma dinâmica molecular (Deleuze e Guatari, 1980).

36Desse modo, elas transformam as cidades e são transformadas por elas, o que me leva ao encontro de teorias produzidas por geógrafas e urbanistas feministas. São elas que afirmam, de forma pioneira, a partir dos anos 1980 e 1990, como a perspectiva de gênero é essencial para pensar o planejamento urbano, a gestão das cidades, a ocupação dos seus espaços e as relações de poder que estão aí engendradas. Mais do que isso, mostram como essas relações de poder determinam os espaços desiguais para a produção de conhecimento tanto na geografia quanto no urbanismo e na arquitetura, que só recentemente passam a reconhecer a imbricação entre cidades e seus marcadores da diferença, como gênero, raça, classe, geração, sexualidade, nacionalidade, etc.

37Na geografia, em linhas gerais, desde as produções de Doreen Massey (1994), Beatriz Colomina (1992) e de Linda McDowell (2000), por exemplo, o espaço urbano é compreendido a partir de uma divisão social desigual entre doméstico e público que invisibiliza o papel das mulheres na construção das cidades. Essa organização espacial, que privilegia a dominação masculina e o modo de produção capitalista, também invisibiliza marcadores de sexualidade, classe, raça, idade e região.

38Doreen Massey, em seu clássico Space, Place and Gender (1994), apresenta como as cidades modernistas, ao celebrarem a centralidade do espaço público e das mobilidades urbanas, confinam as mulheres aos espaços privados e domésticos. São cidades dos homens. Na Paris de Beaudelaire, não há lugar para a flaneuse. O flaneur é uma figura masculina que observa apenas aos outros, nunca a si mesmo, e exalta sobretudo lugares onde não existe a presença feminina. O que a autora quer demonstrar é que o advento das cidades modernas e do capitalismo se faz por meio da reprodução da divisão sexual do trabalho, da desvalorização contínua do trabalho reprodutivo e da precarização do trabalho feminino assalariado. Consequentemente, reforça-se o modelo vitoriano da família conjugal e da indústria do casamento monogâmico e heterossexual. Para Massey, a constituição das cidades modernas se faz às custas das desigualdades de gênero. Por sua vez, resumidamente, para McDowell (2000), o lugar pode ser pensado como um conjunto de relações que se cruzam em uma escala espacial, sendo que estas relações são sempre generificadas. Assim, a forma na qual um corpo se apresenta em relação aos demais depende do lugar em que ocupa, ou seja, o corpo, como um lugar, define-se pelo espaço em que habita e suas relações. Desse modo, pessoas que se encontram em um mesmo espaço podem estar em lugares diferentes, em relações de distanciamento ou proximidade.

39Como demonstra também Anne McClintock (2010), desde a Escola de Chicago, a produção de conhecimento sobre a modernidade produz um olhar que replica uma lógica de dominação colonial no qual a figura do flaneur se camufla por trás da ideia de explorador urbano. O desejo por se perder na multidão e ir em busca do desconhecido nas grandes metrópoles, movimento, por exemplo, que Edgar Alan Poe descreve no conto “O homem na multidão”, mostra, para além de um conhecimento sobre uma certa heterogeneidade cultural no espaço urbano, a presença de uma linguagem da descoberta que aproxima as colônias das classes trabalhadoras. Desse modo, a lógica da “exploração” e do “desbravamento de terras virgens” se refaz na produção de conhecimento sobre as cidades e sua diversidade. McClintock mostra que esta lógica se materializa, por exemplo, na fotografia, onde visualizar se torna sinônimo de compreender. Por meio de uma tecnologia panóptica, a fotografia, ao lado das exposições, dos museus, das grandes galerias, desloca a autoridade da linguagem impressa para a linguagem do espetáculo e produz imagens exotizadas sobre grupos minoritários, pessoas, lugares, paisagens.

40Nesse sentido, e pode parecer óbvio, cidades e corpos possuem gênero e fazem sexo, ora de forma dominadora, ora de forma solidária e compartilhada. Pensando ainda com Doreen Massey, as noções de espaço e de lugar refletem e afetam o modo pelo qual o gênero é construído e compreendido. Assim, essa relação entre gênero, espaço e lugar permite repensar a ideia de que o espaço remeteria a algo universal, geral e abstrato (e masculino) e lugar a algo mais localizado, específico e concreto (e feminino). Pelo contrário, tanto espaço como lugar, por serem generificados e relacionais, não podem ser definidos de antemão e precisam ser desnaturalizados.

  • 13 A proposta política do urbanismo feminista, segundo o coletivo Punt6 (2019), de Barcelona, por exem (...)

41No urbanismo, de forma mais recente, coletivos feministas têm demonstrado a importância de valorizar a vida cotidiana para a elaboração dos planejamentos urbanos, em detrimento da produtividade e do lucro, enfatizando o trabalho reprodutivo das mulheres e as atividades de cuidado, que continuam não sendo levados em consideração na forma pela qual as cidades são gestionadas pelos poderes públicos e privados. Ainda, procuram trazer de volta o corpo feminino à cidade e reivindicam a produção de espaços compartilhados e ecológicos em que se estimule a co-dependência e não a divisão sexual do trabalho13.

42Assim, as cidades estão constantemente en/gendradas, para usar a expressão de Elisabete Dória Bilac (2012). Para a autora, por meio da padronização industrial do casamento e do modelo familiar monogâmico e heterossexual, as cidades modernas confinam as mulheres ao espaço doméstico, condição que se torna uma forte pauta de certos movimentos feministas. Por sua vez, como demonstram intelectuais negras, como Angela Davis (2016), essa pauta não afeta do mesmo modo aos feminismos negros, já que mulheres negras sempre trabalharam, como escravizadas e exploradas, e não puderam permanecer em casa para se dedicar aos filhos e ao trabalho doméstico. Mantendo as devidas diferenciações entre os feminismos, a ideia de cidade moderna, assim, evidencia processos de generificação e de racialização.

43Se as cidades modernas, do ponto de vista do urbanismo hegemônico, patriarcal e neoliberal, invisibilizam a presença feminina e suas vidas, que se fazem muito mais pela valorização da vida cotidiana, das redes de solidariedade e de cuidado, nos espaços domésticos e fora dele, elas também procuram escamotear a presença de mulheres trans e travestis. De certo modo, estas se encontram do outro lado da domesticidade cisheteronormativa, dos homens que as pagam por seus serviços sexuais e por suas companhias, mas que não podem ser reconhecidas pelo trabalho que realizam nem por suas existências. Elas estão construindo as cidades pelas suas beiradas e, como não podem permanecer nelas, por correrem o risco de serem exterminadas, movimentam-se de um espaço a outro em busca de um lugar. Quais seriam as cidades mais favoráveis e seguras para elas?

Corpos/as da diferença habitam as cidades

44 Propostas de geógrafas e de urbanistas, ainda que estejam voltadas, sobretudo para mulheres cisgênero e, em alguns momentos, incluam outros grupos minoritários, como LGBTQIA+, colaboram para pensar em outros modelos urbanos que não reproduzam o clássico e antigo pensamento binário (masculino/feminino; público/privado; fora/dentro; trabalho/lazer; produção/consumo; poder/falta de poder). E assim pode-se adentrar às cidades pelas suas brechas por meio da perspectiva travesti, corporal, de gênero, de sexualidade, racial, de classe, etc. Nessas brechas, não há mais “ou”, onde um termo exclui o outro, mas “e”. Esse conector poderia ser retomado para pensar na importante conexão entre antropologia urbana e marcadores sociais da diferença nos contextos das cidades contemporâneas.

45Como explica Teresa Caldeira (2000), as regras que organizam o espaço urbano se constroem por meio de padrões de diferenciação social, segregação e separação. São princípios que estruturam a vida pública e organizam sua ocupação e circulação. A autora enfatiza que esses princípios de segregação social e espacial criaram o que ela chamou de “enclaves fortificados”, produzindo espaços privatizados exclusivos para certas classes sociais, também atravessados pela segregação racial. Esses muros também permitem a construção de elaboradas linguagens da violência e criaram o que ela chamou de cidade disjuntiva. Certas vezes, a meu ver, esses muros também foram replicados para os campos de estudos urbanos.

46Pensando com Caldeira, nessas cidades disjuntivas, negros e negras, putas, travestis, bichas, trabalhadoras domésticas, babás, pessoas em situação de rua – “os lixos”, como diria Lelia Gonzalez (1984), são corpos incircunscritos e possuem seus direitos continuamente violados. E essa violação está materializada nos corpos que parecem não ter sua fronteira respeitada. São corpos percebidos pela “Família do Homem” (McClintock, 2010) como passíveis de várias intervenções e manipulações, lugar da punição e da sujeição. E essa violência, imbricada no corpo da cidade, se torna uma linguagem inequívoca que não pode ser deixada de lado para ser pensar cidade e diferença.

47Apesar de os estudos urbanos no Brasil terem deslocado seus focos de atenção para outras problemáticas, reflexões sobre a presença de zonas, bocas, pistas e fluxos necessitam de mais pesquisas atreladas a uma perspectiva interseccional (Collins, 2019) que leve a sério as presenças próximas que balançam os berços, conduzem os carrinhos de bebês nos parques, aguardam os clientes que não querem se identificados, catam os lixos, lubrificam a libido e limpam os banheiros alheiros. Essas presenças estão nos centros das cidades. Nada melhor, como diria Magnani, do que uma “boa etnografia” para descrever e compreender essas presenças e centralidades corporais que envolvem, há séculos, sexo, gênero e cidade.

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Bibliografia

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Notas

1 O Divino Pai Eterno – uma imagem única que reúne o Pai, de um lado, o Filho, de outro e Virgem Maria, no meio, coroada por uma pomba branca que representa o Espírito Santo – é celebrado, todos os anos, no mês de julho, no santuário de Trindade, há 26 quilômetros da capital Goiânia, comandado pela ordem redentorista.

2 Ampliei meu campo de investigação para um circuito de festividades que incluíam, além da Festa do Divino Pai Eterno, a Festa do Divino Espírito Santo, a Festa de Santos Reis, rodeios e exposições agropecuárias.

3 Além disso, na Unicamp, e com professoras integrantes do PAGU - Núcleo de Estudos de Gênero, pude ampliar meus conhecimentos sobre os estudos de gênero e de sexualidade, oportunidade que se mostrou fundamental para o aprofundamento da minha formação.

4 Atuei no curso de Graduação em Antropologia da UFPB, que foi o terceiro a ser criado no Brasil. O primeiro foi implantado na Universidade Católica de Goiás, mas só completou uma turma e não teve continuidade. O segundo foi criado na Universidade Federal do Amazonas, no campus de Benjamin Constant.

5 “Entre campos, mares e trajetos – experiências etnográficas no Litoral Norte da Paraíba” (Edital MCT/CNPq n. 06/2008 – Jovens Pesquisadores).

6 Como um desdobramento desta pesquisa iniciada no Litoral Norte, de 2011 a 2013, participei, como pesquisadora, de outra investigação coordenada pela Profa. Loreley Garcia, socióloga do departamento de Ciências Sociais do Campus I da UFPB. O projeto “Nas armadilhas do desejo” voltou-se para a prostituição feminina em municípios próximos a Mamanguape, como Baía da Traição, incluindo aldeias indígenas, Guarabira, Sapé e Mari (Garcia e Nascimento, 2016; Garcia e Nascimento, 2014a; Garcia e Nascimento, 2015).

7 A pesquisa contou com a participação de estudantes de graduação em Ciências Sociais (Alexandre Martins, Beatriz Rossi Martin, Lucas Vecchi, Maria Iachinski, Natália Corazza e Sabrina Damasceno), pós-graduandes em Antropologia (Letizia Patriarca, Lux Ferreira Lima e Thiago de Lima) e docentes colaboradories (Flávia Mello da Cunha /UFAM e José Miguel Olivar/USP).

8 No mesmo ano de início da pesquisa “Cidades-devir”, em 2015, implementei um projeto de extensão com a ideia de realizar aproximações com o espaço urbano da Cidade Universitária e foram feitos mapeamentos etnográficos que pudessem colaborar para a compreensão dos bairros localizados no entorno do campus. Em 2016, continuamos nossas incursões e nos centramos, sobretudo, nos territórios ocupados por trabalhadoras sexuais. Sempre de forma coletiva, foram realizadas caminhadas, conversas com as interlocutoras e produções de fotografias, inclusive com a participação de uma fotógrafa, a Bianca Vasconcellos.

9 Margarita Chamorro já tinha realizado a primeira visita no NAU/USP, em 2013, onde tivemos a oportunidade de conhecer suas pesquisas e planejar o encontro que foi realizado no final de 2014.

10 Nesta estadia, de 9 a 19 de novembro de 2014, participamos do seminário “Amazonia contemporánea. Diálogos Brasil-Colombia” (ICANH/UNAL), na sede da Universidade Nacional da Colômbia (UNAL), em Letícia, onde pudermos compartilhar investigações realizadas no Brasil e na Colômbia com pessoas vinculadas a distintas universidades em ambos países. Na equipe colombiana, pude entrar em contato com as pesquisas de Andres Salcedo Fidalgo, professor da UNAL, em Bogotá, que tem se debruçado sobre as relações entre fronteiras urbanas e corpo.

11 Não custa lembrar que o Brasil é o país que mais assassina travestis e mulheres trans no mundo pelo 15º ano consecutivo, em sua maioria negras. E, ao mesmo tempo, o que mais consome pornografia travesti.

12 A noção de gueto também foi bastante problematizada na antropologia urbana também pelas pesquisas de José Guilherme Magnani. É gueto ou não é? É tribo urbana ou não? Dá pra pensar em fechamento ou é melhor pensar em circuitos, por exemplo?

13 A proposta política do urbanismo feminista, segundo o coletivo Punt6 (2019), de Barcelona, por exemplo, é colocar a vida no centro das cidades, reconhecendo suas diferenças e desigualdades de forma sustentável. Busca-se uma mudança de prioridades que desloque a preocupação da produção capitalista e neoliberal para a vida cotidiana e para as necessidades das pessoas em seu dia a dia, sobretudo o trabalho reprodutivo e de cuidado liderado por mulheres.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Silvana de Souza Nascimento, «De romeiras a rameiras: percursos entre gênero e cidade às margens da antropologia urbana»Ponto Urbe [Online], 32 | 2024, posto online no dia 25 outubro 2024, consultado o 17 fevereiro 2025. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/16818

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Autor

Silvana de Souza Nascimento

Professore livre docente do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Coordenadore do Cóccix — Estudos indisciplinares do corpo e do território.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5661-4915

Email: silnasc@usp.br

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