1Em 1955, Lévi-Strauss escreveu uma reflexão sobre o trabalho etnográfico que hoje já se tornou citação recorrente daqueles que tratam sobre este tema. Nela, o autor indicava que a experiência de campo estava intimamente conectada com a antropologia em sua dimensão profissional, mas, também, e fundamentalmente, em sua dimensão pedagógica. Para Levi-Strauss, o trabalho de campo representava “um momento” da educação do antropólogo, “antes do qual ele poderá possuir conhecimentos descontínuos que jamais formarão um todo e, após o qual, somente, esses conhecimentos se prenderão num conjunto orgânico e adquirirão um sentido que lhes faltava anteriormente”. (Lévi-Strauss, 1991: 415-416).
2É curioso que essa reflexão tenha vindo justamente de um antropólogo que se notabilizou mais por suas contribuições teóricas do que pela pesquisa de campo. No entanto, Levi-Strauss fez etnografias e, dessa experiência, emergiu uma de suas obras mais interessantes, “Tristes Trópicos”, escrita a partir de suas pesquisas realizadas nas grandes e médias cidades, e nos territórios indígenas brasileiros.
3Anos antes, Evans-Pritchard também havia relatado, em uma palestra transcrita eapresentada como epílogo do livro “Bruxarias, oráculos e magia entre os Azande”, que, antes de ir à campo pela primeira vez, chegou a conversar com alguns de seus professores e colher os mais diversos conselhos (como o de beber a água dos locais visitados para criar imunidade a seus patógenos). Nessa situação, considerou a sugestão de Malinowski - “não seja um maldito idiota” - válida, porém insuficiente. Mais tarde, já como professor, Pritchard considerava que deveria ajudar os novos pesquisadores a compreenderem as dinâmicas da pesquisa de campo, uma vez que, para ele, a etnografia era indissociável do fazer antropológico.
4Diversos outros autores mais contemporâneos, como Tim Ingold e Marilyn Strathern, poderiam ser citados entre aqueles que apontam o aprendizado da etnografia como um fundamento do trabalho do antropólogo. O desenvolvimento da Antropologia como disciplina pode ser visto em paralelo ao desenvolvimento, crítica e experimentação com o método etnográfico. De fato, ao longo dos séculos XX e início do XXI, são muitos aqueles e aquelas que refletem e procuram explicar em que consiste esse método e quais implicações ele tem na própria produção científica.
5A conexão entre teoria e método é de fato marcante na Antropologia, como explicita Mariza Peirano ao afirmar que a etnografia é um método-teoria, ou em outras palavras, uma teoria vivida (Peirano, 1995): “Uma referência teórica não apenas informa a pesquisa, mas é, ela mesma, o par inseparável da etnografia. É o diálogo íntimo entre ambas, teoria e etnografia, que cria as condições para a renovação e sofisticação da disciplina”.
6No Brasil, Magnani também apresentou suas ideias a respeito, indicando que “olhar de perto e de dentro” e compartilhar com os interlocutores da pesquisa “seus horizontes” seria fundamental para que se formulasse, a partir da negociação na alteridade, a matéria-prima mais importante para o etnógrafo - um “novo modelo de entendimento”, que poderia apresentar novos caminhos ou pistas para sua pesquisa e posterior análise conceitual. O trabalho de campo aqui também é fundamento da antropologia, seja entre povos tradicionais, seja na pesquisa com aqueles que vivem nas grandes cidades. Para Magnani, a etnografia, como experiência e/ou prática, deve sempre conter em si a atenção e disposição para o desconhecido, o extraordinário, o inesperado.
7No entanto, deve-se tomar cuidado com o que Gilberto Velho (1987) chamou de ethos do “cultivo da espontaneidade”, que colocaria o trabalho de campo inteiramente no lugar da “vocação” ou do “talento individual”. A pesquisa de campo antropológica pode e deve estar aberta ao imprevisto, mas sua prática deve também ser objeto de atenção no sentido pedagógico e formativo.
8Pode-se dizer que ensino e aprendizagem da antropologia enquanto disciplina estão fundamentalmente associados ao ensino e aprendizagem do método etnográfico. Entretanto, apesar da tradição disciplinar de autorreflexão sobre seu principal modo de fazer e suas potencialidades e particularidades epistemológicas e políticas, ainda é possível perceber uma desconexão entre as reflexões teóricas e metodológicas que ocorrem em sala de aula e aquelas que se passam durante o exercício prático da observação participante, em campo.
9Por um lado, a leitura de textos etnográficos — artigos, monografias, crônicas, relatos — permite que estudantes entrem em contato com teorias, escolas, autores e as situações que vivenciaram em campo. Por outro, esses textos (ou os fragmentos lidos e estudados) representam a última etapa do processo de produção de conhecimento antropológico. O trabalho de campo nesse caso, é acessado apenas retrospectivamente, já após o longo e trabalhoso processo de construção, análise e elaboração teórica.
10É possível afirmar, portanto, que mesmo sendo muitas vezes colocada em segundo plano, a experimentação da prática etnográfica ainda na graduação, quando incentivada, exerce um papel fundamental para a formação de jovens pesquisadores. Se nos momentos iniciais de formação, o jovem pesquisador tiver seus primeiros contatos com o caderno de campo, com o olhar distanciado, com o imponderável que o campo apresenta, seu entendimento da prática etnográfica em si ganha um caráter mais completo.
11 As pesquisas antropológicas nas etapas iniciais da formação, quer em trabalhos finais de disciplinas de antropologia, quer em iniciações científicas, apresentam um importante papel no que diz respeito ao campo acadêmico: elas ao mesmo tempo treinam o novo etnógrafo, lapidando sua prática, bem como permitem emergir novidades temáticas que circulam entre os jovens, desenhando novos campos de pesquisa e ampliando as possibilidades de observação.
12A realidade do ensino universitário no Brasil, porém, apresenta um cenário desafiador para quem deseja propor aos estudantes experiências de trabalho de campo. A falta de verbas e o pouco incentivo nas disciplinas regulares, bem como o baixo valor das bolsas — principalmente as de iniciação científica — dificultam sobremaneira que a etnografia seja objeto de ação pedagógica.
13Alunas e alunos das disciplinas universitárias de antropologia, principalmente na graduação, passam um grande tempo lendo e debatendo textos, vídeos e conceitos, mas costumam ser pouco incentivados à prática da pesquisa de campo. Mesmo quando o trabalho de campo é realizado, suas pesquisas, na maioria das vezes, não são valorizadas em congressos e eventos da área, normalmente voltados somente às pós-graduações, que já contam com melhor financiamento ou com projetos mais bem estruturados. Isso costuma tornar o compartilhamento das pesquisas de graduação algo restrito ao professor/orientador ou, quando muito, aos companheiros de disciplina.
14Nesse cenário, o Graduação em Campo - Seminários de Antropologia Urbana (GeC), atendeu à necessidade de estimular a prática da etnografia por jovens aspirantes a antropólogos, levando-os a enfrentar desde cedo os desafios da pesquisa de campo e encontrar um espaço para discutir e aprender sobre esse aspecto tão importante do trabalho antropológico.
15O evento teve ao todo treze edições realizadas, sendo a primeira em 2002 e a última em 2018. Inicialmente voltado aos alunos do curso do professor José Guilherme Magnani, logo o Graduação em Campo cresceu e passou a receber inscrições de estudantes de todas as universidades do território nacional. Uma vez que os eventos nacionais costumam ser pouco convidativos para alunos ainda inexperientes, o GeC introduziu graduandos nesse outro aspecto da academia: a apresentação de pesquisas e troca com pares.
16Ao longo dos anos, o Graduação em Campo tornou-se referência para incentivar as lacunas muitas vezes vistas nos programas de formação (também presentes na própria Universidade de São Paulo). Por um lado, o evento servia como um incentivo para a prática etnográfica realizada durante a graduação - que levava ao treinamento e formação prática para a etnografia. Por outro, instigava o encontro entre pesquisadores, promovendo um contraponto à solidão muitas vezes sentida nessa etapa da formação e também aos mal-estares de comparações injustas com trabalhos de mestrado e doutorado realizados em outros congressos. Trazer pesquisadores em formação às mesas, grupos de trabalho e às sessões de pôsteres possibilitava uma possibilidade de experimentação na análise e na comunicação dos trabalhos que tornava a experiência múltipla. Era uma forma de aprender e desenvolver outras etapas de um sistema de produção de conhecimento que em geral não tinha tanto espaço para acontecer, pois limitava-se apenas às salas de aula.
17 Vale ressaltar um aspecto fundamental do Graduação em Campo: apesar do foco ser sempre a pesquisa etnográfica realizada na graduação, o evento era marcado pela reunião de diferentes atores interessados em etnografia: alunos da graduação apresentavam suas pesquisas; alunos da pós-graduação atuavam como pareceristas dos artigos dos graduandos e debatedores das mesas temáticas e open spaces; e os professores da casa eram convidados a oferecer minicursos e/ou a compor mesas redondas.
18Como já dito, inicialmente, o evento nasceu como uma atividade interna aos alunos do curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, idealizado e realizado pelo então Núcleo de Antropologia Urbana da USP. Em sua primeira edição, em 2002, o GeC teve a apresentação de poucos trabalhos de campo realizados em disciplinas de antropologia ao longo de 2001.
- 1 Um trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR), um da Universidade Federal de São Carlos (UFS (...)
19Em 2006, em sua quinta edição, o Graduação em Campo: Seminários de Antropologia Urbana passou a ser reconhecido como uma atividade do Departamento de Antropologia da USP e recebeu, pela primeira vez, verbas oficiais da USP (cedidas pela Pró-Reitoria de Graduação). Com isso o aspecto artesanal que marcou os primeiros anos de realização deu lugar a um evento mais estruturado e com maior alcance. Abriu-se espaço para a participação de trabalhos realizados em outras instituições de ensino1, cujos autores haviam sido contemplados com o Prêmio Lévi-Strauss, na ABA.
- 2 Naquele mesmo ano, 2007, o Estúdio Multimeios do Centro de Computação Eletrônica da Universidade de (...)
20Mas foi somente em 2007, em sua sexta edição, que o evento ganhou um caráter ainda mais abrangente, recebendo trabalhos de diferentes instituições de ensino e sendo transmitido pela internet pela primeira vez — algo pouco comum à época2. Ainda, além das apresentações orais, foram também aceitas apresentações em pôster, ampliando a participação dos estudantes e o debate antropológico. Foi também nessa edição que a prática da conferência de abertura, com a presença de renomados pesquisadores externos à Universidade de São Paulo, foi inaugurada, tendo como primeira convidada a professora Mariza Peirano.
21Ao longo das edições seguintes, seriam recebidos diversos pesquisadores renomados para as conferências de abertura, como Alba Zaluar, Omar Ribeiro Thomaz, Peter Fry, Marilyn Strathern, dentre outros. Nesses momentos, os pesquisadores compartilhavam suas experiências etnográficas, de forma a dar visibilidade às suas pesquisas e ao trabalho etnográfico em si. Isso permitia que os estudantes tivessem contato com a prática etnográfica de importantes pesquisadores, o que ampliava suas visões acerca de seus próprios fazeres antropológicos. Além disso, o vínculo do pesquisador convidado com pesquisadores da casa também era possibilitado, ampliando o debate acadêmico entre eles e entre universidades.
22O evento, realizado por alunos de graduação e pós-graduação, trazia, a cada ano, inovações e experimentações em seu formato. A partir da sétima edição, em 2008, os professores da casa foram convidados a oferecer minicursos, de forma a divulgar as diferentes linhas de pesquisa do Departamento de Antropologia da USP e possibilitar aos alunos o contato com os trabalhos da casa. Em sua oitava edição, em 2009, foram inaugurados os Open Spaces, visando valorizar e ampliar o espaço de discussão dos trabalhos apresentados através de pôsteres. Foi também nesse ano que vídeos e filmes etnográficos passaram a ser exibidos na programação. Em 2010, em sua nona edição, houve a decisão de solicitar nas inscrições os chamados “resumos expandidos”, onde os jovens pesquisadores poderiam detalhar um pouco mais suas pesquisas. Isso permitiu à Comissão Organizadora aprimorar o processo de avaliação dos trabalhos e sua distribuição pelas mesas e open spaces. Em sua décima segunda edição, em 2014, o evento inaugurou a apresentação de mesas redondas, compostas por professores da casa e pesquisadores externos. Foi também nesse ano que tivemos a presença internacional da professora Marilyn Strathern — não apenas na conferência de abertura, mas também apresentando um trabalho em andamento, de forma a promover diálogos com as pesquisas nacionais. Essa foi uma grande oportunidade para que os alunos pudessem conhecer mais de perto o trabalho da pesquisadora e para que os pesquisadores nacionais pudessem estabelecer diálogos com a convidada. Por conta da presença da professora, essa edição contou também com tradução simultânea, visando democratizar o acesso ao trabalho apresentado.
23 A partir de um campo de referência mais ou menos padronizado, a organização do Graduação em Campo: Seminários de Antropologia urbana buscava repetir modelos já estabelecidos em eventos acadêmicos, como a composição de mesas de apresentação, que atuavam como Grupos de Trabalho, e a exibição de pôsteres. Durante as apresentações orais, em mesas temáticas e com debatedores qualificados nos temas, os alunos tinham a oportunidade de falar sobre suas pesquisas, entrar em contato com pesquisadores que desenvolviam pesquisas com temáticas semelhantes, bem como receber feedbacks úteis, tanto teóricos quanto metodológicos, para a continuidade e desenvolvimento de suas investigações. Durante as apresentações por pôsteres, de forma semelhante ao que ocorre em outros eventos, os pesquisadores tinham a oportunidade de transmitir gráfica e textualmente os principais pontos de seus trabalhos.
24 Entretanto, ao longo dos anos e edições dos Graduação em Campo, a organização passou a experimentar outras maneiras de promover interações entre pesquisadores inscritos e entre os convidados, os estudantes e professores da Universidade de São Paulo. Esse caráter experimental do evento, já mencionado anteriormente, trouxe inovações a cada edição. Minicursos passaram a ser oferecidos, nos quais os docentes da USP ofereciam aulas sobre suas especialidades e temas de pesquisa, abertas e gratuitas. Da mesma forma, mesas redondas entre pesquisadores renomados eram realizadas, o que ampliava a possibilidade de aprendizado dos alunos de outras instituições.
25Também passou por experimentações de formato a própria apresentação de pôsteres, pois foram identificados aí alguns problemas. A separação entre trabalhos aprovados para apresentação oral e aqueles para a exibição de um pôster gerava uma hierarquização entre os participantes do evento. Embora em alguma medida inevitável, a diferenciação entre as categorias de apresentação prejudicava a atuação dos aprovados para a apresentação de pôsteres — marcada pelo maior custo financeiro de sua participação associada a um espaço reduzido de troca e aprendizagem. Uma das soluções foi a criação do que foi chamado de Open Space — uma roda de conversa mais livre que uma mesa de apresentação, mas que garantia que participantes que fossem reunidos em grupos amplos, com alguma proximidade temática ou metodológica, pudessem falar (ainda que rapidamente) e ouvir comentários sobre seus trabalhos. Ao contrário das mesas, que reuniam mestrandos e doutorandos do PPGAS-USP como comentadores, neste caso os comentaristas eram alunos recém-formados ou no início de seus trabalhos de pesquisa de mestrado.
26 O caráter formativo do Graduação em Campo estava também na própria organização do evento, realizada por membros — graduandos e pós-graduandos — do então Núcleo de Antropologia Urbana da USP (NAU-USP). O GeC possibilitava a esses alunos grande aprendizado no que dizia respeito à organização de um evento acadêmico completo, em todas as suas instâncias: escolher trabalhos, organizar mesas temáticas, convidar pareceristas, pensar no encadeamento das atividades, organizar anais e promover ações de hospitalidade. Todas essas atividades significavam, para os organizadores, um grande investimento de tempo e dedicação que em geral tinha caráter voluntário. Por esse motivo, a organização do GeC dialogava diretamente com a estrutura flutuante do próprio Núcleo de Antropologia Urbana. A presença maior ou menor de estudantes no grupo, os momentos específicos de sua trajetória acadêmica individual, seu interesse e proximidade ideológica com a importância do evento contribuiam diretamente para a dimensão, capacidade e cuidado envolvido nesse trabalho de organização.
27O trabalho realizado nos bastidores do Graduação em Campo pode ser trazido à tona porque promovia uma experiência formativa aos membros do Comitê Organizador. No ambiente acadêmico, as atividades administrativas e burocráticas geralmente são eclipsadas pelos aspectos mais chamativos da produção acadêmica - os resultados finais do trabalho intelectual como artigos, livros, teses e dissertações. No entanto, o fazer etnográfico permeia as dinâmicas vivenciadas em diversos espaços e tempos da produção científica antropológica. Além da dualidade complexa entre campo e escrita discutida por Strathern (2014), a produção de conhecimento também abrange os momentos de interação e debate em sala de aula, núcleos de pesquisa e seminários. Nesse campo acadêmico, a organização de um evento como o Graduação em Campo também implica a articulação e produção de conhecimento etnográfico, na medida em que demanda reconhecer a qualidade de trabalhos individuais, antecipar pontos de conexão entre trabalhos distintos, e a defesa de tais decisões perante uma estrutura burocrática de viabilização e financiamento.
28 A escolha dos trabalhos colocava os membros do NAU — muitas vezes pela primeira vez — em um papel que não estavam acostumados: o de avaliar pesquisas de seus pares. Ao longo dos anos foram sendo criadas estratégias para garantir que esse processo se desse da melhor forma possível. Trabalhos eram avaliados por membros distintos do Comitê de organização e discutidos em grupo; buscava-se reconhecer a qualidade dos textos submetidos (títulos, resumos e resumos expandidos) e também a validade do tema e recorte. Tratando-se de um evento com caráter formativo, não parecia correto, por exemplo, impedir a participação de estudantes cujo texto demonstrava problemas ou cujos temas de pesquisa não estavam muito bem articulados. Em todas as edições, foram pouquíssimos trabalhos negados - e geralmente pela falta de adequação à proposta geral do evento. Embora pesquisas de recém-formados fossem aceitas, algumas delas com continuidade em programas de pós-graduação eram negadas. Da mesma forma, o evento passou a atrair estudantes de outras áreas das Humanidades, de modo que o corte era estabelecido com base na utilização ou não do método etnográfico.
29Após a escolha dos trabalhos, era necessário articulá-los em grupos que pudessem garantir tanto a viabilidade de discussões entre autores e debatedores quanto o interesse por parte do público que frequentava o evento. Ainda assim, em alguns casos, foi preciso promover combinações criativas, inspiradas, talvez, nas notas poéticas que persistem nos trabalhos de Antropologia (Peirano, 2014). Em um desses casos, por exemplo, pesquisas sobre modos de transporte foram colocadas em uma mesa junto com estudos cemiteriais e amarradas sobre o título “Passagens”. De uma forma pouco usual, pesquisadores e debatedores se viam incentivados a promover encontros teóricos e metodológicos pouco usuais - mas talvez por isso mesmo bastante interessantes. Por fim, a comunicação desses arranjos também envolvia um novo aprendizado para os organizadores, como o de justificar com clareza e cuidado as decisões tomadas.
30Além dos aspectos propriamente relacionados ao bom andamento científico do evento, havia uma preocupação clara em recepcionar os participantes do GeC da melhor forma na Universidade de São Paulo - postura influenciada inclusive como uma forma de amenizar uma visão comum (e em certa medida correta) do elitismo institucional e da percepção de arrogância por parte da comunidade uspiana. O Graduação em Campo buscava receber os estudantes de outras instituições e aproveitar ao máximo a estrutura da USP, tratando a boa relação, a hospitalidade e as condições de permanência em São Paulo durante o evento como elementos fundamentais. Dessa forma, buscou-se caminhos tanto dentro das estruturas burocráticas, quanto dentro das redes de relações sociais dos organizadores. O Alojamento do CEPEUSP foi negociado em algumas edições para abrigar estudantes que não tinham condição de hospedar-se na cidade. Da mesma forma, colegas de graduação e pós chegaram a abrigar pesquisadores participantes do evento em suas casas e repúblicas estudantis. Outra preocupação, a alimentação dentro da Cidade Universitária, era motivo de contatos a cada ano com os órgão universitários de Assistência Social, buscando garantir o acesso - durante o evento - aos Restaurantes Universitários.
31A hospitalidade caminhava lado a lado com a promoção de momentos de sociabilidade entre os convidados. Nesse sentido, sempre buscou-se inserir na programação oficial do evento situações festivas, como os coquetéis de abertura (contratados externamente quando havia verba ou organizados internamente por membros do NAU) e até mesmo shows de bandas de estudantes. Nas maiores edições do Graduação em Campo, organizou-se também uma atividade de troca de pequenos presentes, trazidos pelos participantes de várias partes do Brasil, com a sugestão de representar sua região, seu tema de pesquisa ou sua própria história. De forma apropriada, essa atividade constava na programação sob o nome de Kula, em referência ao sistema de trocas descrito por Malinowski.
32O GeC inspirou a criação de outros eventos de graduação e deixou um forte legado no que diz respeito à valorização da pesquisa antropológica e etnográfica em seus estágios iniciais. Mesmo eventos acadêmicos mais tradicionais, que não aceitavam trabalhos de graduação, com o tempo passaram a aceitar essas pesquisas. Esse foi, inclusive, um dos aspectos que levaram à descontinuidade do Graduação em Campo, somadas a questões de orçamento e pessoal, algo que se apresenta como desafiador para todo o cenário de pesquisa acadêmica no país.
33Mas certamente o legado do GeC não se restringiu à valorização institucional da pesquisa de campo realizada na graduação. Foram muitos os pesquisadores e pesquisadoras que passaram pelas mesas de apresentação, pelos Open Spaces, rodas de conversa ou pelas mesas de debate. Tratavam-se de estudantes que tinham, ali, uma primeira oportunidade de apresentar seu trabalho em uma universidade diferente da sua.
34Uma vez que a Universidade de São Paulo tem a capacidade de reunir e receber estudantes e profissionais de instituições variadas em nível nacional, isso ampliava ainda mais as possibilidades de trocas e pontes.
35Os esforços para que a maior parte dos custos dessas viagens fossem cobertos pela Universidade valiam a pena, uma vez que, dessa forma, abria-se a oportunidade para todas e todos. Certamente, muitos antropólogos agora formados e professores do ensino básico e superior passaram pelo GeC, podendo sentir a valorização de seus esforços e todos os aprendizados relacionados à vida universitária e à construção do saber científico.
36Já muitos membros do LabNAU envolvidos no projeto, como já dito, desenvolveram uma importante experiência na construção de eventos de grande porte, o que certamente contribuiu para seu percurso acadêmico e profissional. Muitos foram, mais tarde, convidados a auxiliar na organização de outros eventos do tipo e alguns realizam esse tipo de trabalho até hoje, agora como professores universitários e cientistas profissionais.
37Em um cenário em que a metodologia etnográfica é vista ao mesmo tempo como fundamental na formação de antropólogos e de difícil transmissão e treinamento, o Graduação em Campo buscou ocupar um espaço de valorização e incentivo desse processo e das iniciativas de realização de pesquisa etnográfica durante a graduação. O evento, ao valorizar práticas já existentes de realização de pesquisa de campo etnográficas em disciplinas de graduação, iniciações científicas e núcleos de pesquisa, certamente incentivou que outras iniciativas tomassem forma. Ao longo dos anos, era possível perceber um aumento na quantidade de trabalhos submetidos por uma mesma instituição, o que mostra que os próprios pesquisadores serviam de agentes de transformação em seus próprios contextos universitários.
38Por fim, e não menos importante, deve-se ressaltar o potencial que o Graduação em Campo tinha - e que foi plenamente concretizado - de colocar em contato estudantes e pesquisadores (em início, meio ou fim de carreira) dos mais diversos locais do Brasil e até do mundo. Muitas novas relações se formaram ali, possibilitando parcerias e amizades que duram e durarão muitos anos ainda. Em suas edições, o evento pôde trazer o frescor das novas pesquisas, a reunião de interessados em etnografia e a busca incessante por adentrar os mais diferentes universos antropológicos, valorizando sempre o olhar “de perto e de dentro” (Magnani, 2012) e respeitando a máxima da vida social apresentada por Marcel Mauss e sempre rememorada pelo professor Magnani, em contextos de troca acadêmica: aquilo que se dá, também se recebe e se retribui.
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