1Em 2001, ainda na graduação, quando cursava Pesquisa de Campo em Antropologia, uma das disciplinas metodológicas oferecidas pelo curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, tive, efetivamente, um maior contato com a discussão da área de antropologia urbana. Ministrada pelo professor José Guilherme Magnani, a disciplina tinha como objetivos preparar os estudantes para a elaboração de um projeto de pesquisa, a realização de uma pequena experiência etnográfica e, por fim, a escrita de um relatório de pesquisa. A disciplina era bastante estimulante e, apesar de conter uma discussão bibliográfica importante, funcionava quase como uma oficina de escrita de projetos e de etnografia urbana. Magnani trabalhava conosco diferentes aspectos da constituição de um projeto de pesquisa, desde o tema e os objetivos até a sua própria elaboração retórica.
2Além disso, o curso era marcado por seu profundo caráter etnográfico, com leituras direcionadas para esse tema e orientações para a realização de uma pesquisa de campo. O formato de oficina era reforçado pela prática pedagógica do professor em retomar trabalhos finais de anos anteriores da disciplina, que eram apresentados como casos exemplares e bem-sucedidos de um projeto de pesquisa ou de um relatório final. Não por acaso, o Núcleo de Antropologia Urbana, o NAU/USP, então coordenado pelo próprio Magnani, possuía um enorme acervo de trabalhos de graduação realizados ao longo dos sucessivos anos em que ele ofereceu essa disciplina metodológica. Outro elemento que dava um caráter de oficina a essa disciplina era o espaço reservado nas aulas para a troca das experiências de pesquisa que estavam em andamento para o curso. Assim, era possível contar sobre o que se estava fazendo e ouvir a pesquisa dos colegas, reconhecendo questões semelhantes ou singularidades de cada exercício de investigação.
3A maior parte dos trabalhos era realizado no contexto urbano, seja porque essa era a especialização do professor, seja porque a cidade de São Paulo era um cenário mais acessível para a realização de uma experiência curta de pesquisa. Certamente, muitas gerações de antropólogos formados pela Universidade de São Paulo, mesmo que suas trajetórias tenham se distanciado totalmente do campo da antropologia urbana, realizaram algum ensaio de etnografia urbana quando cursaram Pesquisa de Campo em Antropologia com o Magnani. Assim, essa disciplina se tornava também uma espécie de laboratório de pesquisas sobre a cidade de São Paulo, que era conduzido por estudantes ainda na graduação. Em uma dimensão reduzida, recriava-se ali, por meio de uma proposta de ensino e pesquisa, a experiência dos etnógrafos da Escola de Chicago, que tomavam esta cidade como um laboratório de investigações, a fim de entender os desdobramentos de seu crescimento. Ulf Hannerz (2015), ao abordar os etnógrafos de Chicago, aponta que parte desses estudos urbanos se tornaram precursores de uma antropologia urbana. No Brasil e principalmente em São Paulo, como demonstra o próprio Magnani (2012), a Escola de Chicago exerceria grande influência na formação de uma antropologia urbana brasileira.
4Nesse laboratório de estudos sobre a cidade de São Paulo, inicio, portanto, ainda na graduação, minha trajetória no campo de discussões da antropologia urbana. Quando cursei essa disciplina, eu, a princípio, tinha muitas dúvidas sobre qual objeto e tema de pesquisa escolher; recordo-me que a ideia surgiu dentro de um ônibus, a caminho da universidade, observando a paisagem paulistana. Avaliei, nesse instante, que a pixação seria um bom tema de pesquisa. As marcas inscritas na paisagem urbana destacavam-se para todos os citadinos e eu, particularmente, já havia tido algum contato com jovens que participavam dessa atividade na região onde morava, na periferia de São Paulo, o que me confirmava ainda mais a complexidade e, portanto, a pertinência de um estudo dessa prática. Assim, dois mundos em que eu vivia, até então bastante apartados, encontraram-se: o da periferia, onde vivia e estudei em escolas públicas e, dessa maneira, tive contato com alguns pixadores, e o da universidade, que começara há pouco a participar, desde a aprovação no vestibular.
5Essa possibilidade de conectar os dois mundos que habitava ocorreu, portanto, a partir dessa disciplina de metodologia em antropologia. Nela, além do meu trabalho sobre a pixação em São Paulo, que abordava as formas de apropriação do espaço urbano da cidade, por jovens moradores de bairros periféricos, houve também proposições de outros trabalhos que enfocavam práticas culturais juvenis no contexto paulistano, como um trabalho sobre os jovens instrumentistas e outro sobre o então chamado forró universitário, entre outras pesquisas. Observando as similaridades e a potencialidades das pesquisas iniciadas já na fase da graduação, Magnani percebe que havia ali questões importantes para uma reflexão sobre formas bastante específicas de apropriação criativa dos espaços urbanos e, assim, convida-nos para participar do NAU. A partir daí, surge um grupo de jovens pesquisadores e pesquisadoras, orientados por Magnani, que ficou conhecido como NAU Jovem. O termo tinha um duplo sentido, pois se tratava de um grupo de estudos sobre juventude e cidade, formado por pesquisadores/as muito jovens, a maioria, ainda na fase da graduação.
6Essa experiência de participação em grupo de pesquisa resultou em uma coletânea organizada por José Guilherme Magnani e Bruna Mantese de Souza (2007), intitulada: Jovens na metrópole: etnografias de circuitos de lazer, encontro e sociabilidade. O livro possui dez capítulos, cada um deles tratando de uma prática juvenil específica:
71) Straight Edges e suas relações com a cidade, de Bruna Mantese de Souza;
82) O forró universitário em São Paulo, de Daniela do Amaral Alfonsi;
93) Carpe Noctem – Góticos na internet, de Adla Bourdokan;
104) A Mancha de lazer na Vila Olímpia, de Ana Luiza Mendes Borges e Clara de Assunção Azevedo;
115) Japas e Manos (ou streeteiros e b.boys) na Estação Conceição do Metrô, de Fernanda Noronha, Paula Pires e Renata Toledo;
126) A balada do senhor, de Ariana Rumstain;
137) Galeria Ouro Fino: a mais descolada da cidade, de Carolina de Camargo Abreu;
148) Jovens instrumentistas: o improviso de todo dia e noite; de Camila Iwasaki;
159) Baladas Black e rodas de samba da Terra da Garoa, de Márcio Macedo;
1610) Pichando a cidade: apropriações “impróprias” do espaço urbano, de Alexandre Barbosa Pereira.
17Além desses dez capítulos, o livro conta com introdução e conclusão de José Guilherme Magnani, com prefácio de Hermano Vianna e posfácio de Luiz Henrique de Toledo. Como se pode perceber, a coletânea aborda diferentes práticas juvenis, associadas principalmente ao lazer e ao tempo livre. Essa diversidade de abordagens foi o resultado de um trabalho coletivo intenso. O NAU Jovem realizou reuniões quase que semanais por cerca de cinco anos. Essas reuniões proporcionaram um fundamental espaço de trocas de experiências de pesquisa. Assim, cada um contava sobre a sua pesquisa etnográfica e as demais pessoas não apenas comentavam e davam sugestões, como também estabeleciam associações com suas próprias pesquisas, construindo assim um panorama interessante das diferentes apropriações juvenis do espaço urbano em São Paulo. Alguns desses trabalhos iniciados na graduação prosseguiram para a pós-graduação, em nível de mestrado, como ocorreu comigo na pesquisa com a pixação (PEREIRA, 2018); com Bruna Mantese de Souza (2006), com os straight edges; e com Daniela Alfonsi (2008), com o forró universitário. Outras pesquisadoras e pesquisadores do grupo seguiram para a pós-graduação com outras temáticas, algumas mais próximas desse campo da antropologia urbana, outras nem tanto. De todo modo, todos levaram para as suas próprias trajetórias essa experiência profícua de constituição de um espaço de trocas e de uma pesquisa coletiva.
18Importante destacar que, além dessa experiência de pesquisa coletiva sobre juventude na metrópole paulista, esse grupo de pesquisadores do NAU Jovem construiu também uma série de outras ações importantes no âmbito do Núcleo de Antropologia Urbana da USP. Uma dessas ações foi a criação do evento: Graduação em Campo, que se transformou numa referência nacional ao incentivo da pesquisa ainda na graduação para estudantes de Ciências Sociais, particularmente para aqueles que enveredam pela antropologia e a etnografia (ver artigo de TEIXEIRA, MAHE, CHIQUETTO e TAMBUCCI nesta edição especial). Além disso, cabe também ressaltar que foi esse grupo de jovens engajados com etnografias urbanas com práticas juvenis que criou a própria revista Ponto Urbe, em colaboração com a saudosa Rita Amaral, referência na antropologia digital já no início dos anos 2000.
19 A minha inserção no campo de estudos da antropologia urbana deu-se, portanto, concomitante à discussão sobre a juventude. Assim, minha trajetória de pesquisa passa a situar-se em torno de três temáticas específicas: cidade, juventude e educação, conforme será demonstrado a seguir. A discussão sobre juventude nas Ciências Sociais brasileira tem seu marco no trabalho de Marialice Foracchi (1972), que investigava, em plena ditadura militar, as formas de atuação política da juventude universitária nos movimentos estudantis. Contudo, é na segunda metade dos anos 1980 e início dos 1990 que surgem os primeiros trabalhos sobre as chamadas culturas juvenis, que traziam uma abordagem mais voltada para a relação juventude e cidade. Desse período, destacam-se os trabalhos de Janice Caiafa (1985), sobre os punks no Rio de Janeiro, de Helena Abramo (1994), sobre punks e darks em São Paulo, de Márcia Regina da Costa (1993), sobre os carecas do subúrbio em São Paulo, e de Glória Diógenes (1998), sobre as gangues, galeras e o movimento hip-hop em Fortaleza. De maneira geral, todos esses trabalhos têm em comum o fato de trazerem algum aspecto da relação dessas culturas juvenis com a cidade, seja pela territorialização das gangues em Fortaleza, pelos pontos de encontro dos punks no Rio de Janeiro, ou pelos nomadismos dos jovens do movimento punk, dark e careca em São Paulo.
20Já nos anos 2000, os trabalhos sobre juventude começaram a se multiplicar nas Ciências Sociais, conforme demonstra Marília Sposito (2009), consolidando, assim, um campo de estudos da juventude. Contudo, o que caracteriza a coletânea organizada por Magnani e Mantese de Souza (2007), a partir da experiência coletiva do NAU Jovem, é um olhar mais profundo para a articulação das práticas juvenis com a cidade e, em particular, com a metrópole paulista, buscando entender as regularidades, mas também as singularidades dos arranjos construídos pelos jovens para habitarem os espaços urbanos e tecerem redes de sociabilidade. Além disso, as dez pesquisas constroem uma articulação com outras variáveis, igualmente importantes para a configuração das particularidades das práticas culturais juvenis estudadas, como a música, a religião, o estilo de vida e as diferentes formas de expressão estética. Cabe destacar que já havia também certa intersecção das práticas juvenis com alguns dos marcadores sociais da diferença, como raça, classe social e gênero.
21Há, portanto, ainda outros temas importantes a serem destacados a partir da particularidade de cada abordagem dos capítulos. No trabalho de Márcio Macedo (2007) sobre as baladas blacks e rodas de samba em São Paulo, em que descreve a articulação de práticas de lazer na cidade pela juventude negra, evidencia-se a interface do urbano com a questão racial. Uma certa ideia de raça e etnicidade aparece na pesquisa de Daniela Alfonsi (2007) sobre o forró universitário, produzido fundamentalmente por jovens paulistanos brancos e de classe média, e sua relação com outro forró, o que é cantado e dançado principalmente pelos migrantes nordestinos em São Paulo, em lugares como o Centro de Tradição Nordestinas, por exemplo, apresentando, dessa maneira, a construção de ideias de Nordeste nas duas formas de se fazer e dançar forró. O tema é ainda retomado no texto de Fernanda Noronha, Renata Toledo e Paula Pires (2007) sobre a relação entre os dançarinos de break do hip-hop e jovens descendentes de japoneses que ensaiavam passos de street dance, em uma estação do Metrô em São Paulo.
22Nas diversas pesquisas que compuseram a coletânea, muitos outros fatores foram articulados com as questões da juventude e do urbano, como a de classe social e de uma distinção de classe presente na sofisticada mancha de lazer do bairro da Vila Olímpia (BORGES; AZEVEDO, 2007), mas também, de forma simetricamente inversa, uma distinção de classe, valorizando a periferia, na pixação (PEREIRA, 2007); da moda, na Galeria Ouro Fino (ABREU, 2007); da música, no caso dos jovens instrumentistas (IWASAKI, 2007), dos straight edges (SOUZA, 2007), do forró universitário (ALFONSI, 2007) e das baladas blacks (MACEDO, 2007); ou da música em intersecção com a religião no caso da pesquisa sobre as “baladas do senhor”, que trata das práticas de lazer de jovens evangélicos e carismáticos (RUMSTAIN, 2007).
23Enfim, os temas abordados por estas pesquisas sobre os circuitos de lazer de jovens em São Paulo são muitos. Entretanto, diante desta diversidade de objetos e de tópicos de pesquisa, o elemento que, de certa forma, atribuiu uma unidade para todos os textos foi a busca por tentar perceber quais os arranjos que estes jovens, por meio de suas práticas culturais, construíam na cidade, criando novas formas de ocupar o espaço urbano e de se conectar com outras práticas culturais, para configurarem seus circuitos de lazer e redes de sociabilidade.
24A pesquisa com a pixação em São Paulo, que resultou na minha dissertação de mestrado, orientada por José Guilherme Magnani, caminhou justamente para essa direção (PEREIRA, 2018). Ela revelou que a prática da pixação na cidade de São Paulo estava diretamente ligada a determinadas representações sobre a categoria periferia. Território com o qual alguns grupos de jovens identificam-se, a periferia apareceu como um elemento importante para se pensar a dinâmica de práticas culturais juvenis, como o hip-hop, por exemplo, mas principalmente a pixação. Esses jovens apresentavam a sua relação com a questão da periferia por meio da noção de quebrada: modo como denominam os bairros pobres da periferia onde moravam. Por meio desse termo, reconheciam os problemas dessas áreas da cidade, mas também manifestavam uma valorização dessa periferia como o lugar que propiciava determinadas relações e formas de comportamento às quais atribuíam grande importância.
25O termo quebrada tem bastante similaridade com a noção de pedaço, que, segundo Magnani (1998), designa um espaço de sociabilidade observado originalmente em bairros da periferia de São Paulo e que, se não possui a proximidade e a intimidade do mundo da casa, também não reflete o anonimato do espaço da rua, como espaço público e de passagem. Quem é do pedaço conhece as regras do local e sente-se protegido por uma “particular rede de relações que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência” (MAGNANI, 1998, p. 115). Nesse mesmo sentido, segundo Pierre Mayol (1998), um bairro define-se por meio de relações e apropriações subjetivas que conformam uma constante dialética entre o dentro e o fora. Ou seja, no caso de categorias êmicas como pedaço ou quebrada, o que se tem são termos que constroem diversificados ajustamentos entre o que ou quem está dentro/próximo e o que ou quem está fora/distante de determinada circunscrição territorial e, principalmente, social.
26A noção de quebrada contém estes elementos da categoria pedaço ou de particularização que conformam um bairro, mas também designa uma forma de apresentá-la para quem é de fora, definindo-a como um lugar hostil e perigoso para quem não conhece suas regras. A quebrada é, nesse caso, associada à ideia de um bairro periférico pobre com altos índices de violência, onde não se deve desrespeitar as normas de conduta. Porém, a quebrada também designa o modo particular com que pixadores e certos grupos juvenis e de ativistas na cidade valorizam o lugar onde moram, pois essa categoria evoca uma identificação com o espaço da periferia, ou com a representação que se constrói a respeito do que seja este espaço. Desse modo, a noção de quebrada torna-se também uma forma de criar uma conexão social a partir das muitas periferias, configurando, assim, um processo de singularização da periferia, por meio do qual o estigma é revertido em marcador de afirmação identitária ou de reconhecimento social.
27Uma das formas dos jovens pixadores iniciarem suas relações de sociabilidade em seu ponto de encontro na região central da cidade, por exemplo, era perguntando ao outro de qual quebrada ele vinha, pois, assim, eles se identificavam como sendo efetiva e mutuamente oriundos da periferia. Ou seja, tornava-se possível descobrir se havia ali um igual, alguém que partilhava determinadas normas de comportamento e vivenciava experiências sociais similares. Como já afirmado, o uso do termo quebrada não era exclusivo na pixação, mas era partilhado por adeptos de diferentes práticas consideradas como juvenis, inseridas numa rede de relações, muitas delas ligadas ao que se designava, na cidade de São Paulo, como “cultura de rua” ou, principalmente a partir dos anos 2000, como “cultura periférica”. Os jovens adeptos da pixação pertenciam, portanto, a essa rede de relações e estabeleciam trocas ou até mesmo participavam de outras práticas juvenis que se conectavam nessa rede, como o hip-hop e o skate, por exemplo. Esse é um aspecto, importante, pois demonstra que, nessa pesquisa, os jovens da pixação não foram descritos como pertencentes a um grupo muito bem delimitado, fechado e estável, mas, pelo contrário, como adeptos de uma prática, cuja participação tinha formas de adesão e intensidades diferentes.
28Esses jovens, por meio da categoria quebrada, portanto, realizavam um movimento que vai ao encontro da discussão de Appadurai (1988) sobre os usos da categoria cultura como um dispositivo de encarceramento dos “nativos” da pesquisa antropológica a uma localização rígida, seja ela territorial ou identitária. Por meio da periferia, através da categoria quebrada, aciona-se a referência espacial, mas sem que essa seja somente localizada em um território específico. Periferia torna-se assim uma categoria relacional e de afirmação política, que remete a uma certa ideia de território, mas não se fixa nele, transcendendo-o. A partir desse modo de designá-la, a periferia deixa de ser apreendida apenas a partir de uma perspectiva espacial, porém se torna também uma categoria de referência para aqueles que com ela se identificam, sem que necessariamente delimite uma identidade ou territorialidade rígida.
- 1 O proceder, na verdade, faz parte de um tríptico em que estão presentes também as ideias de humilda (...)
29Nas relações entre os diversos indivíduos que afirmam pertencer ao que denominam como “cultura de rua” ou “cultura periférica” aparece um termo que expressa o modo como esses jovens devem comportar-se e relacionar-se entre si na quebrada ou com quem se identifica com a quebrada, trata-se da noção de proceder1. O proceder remete a dois significados: o de procedência (de origem, de proveniência) e o de procedimento (de modo de portar-se, enfim, de comportamento). Pode-se afirmar que estes dois sentidos da palavra proceder estão presentes no uso cotidiano do termo. Assim, o proceder refere-se a normas de procedimento permeadas por noções de procedência social. De certa forma, tem-se aqui aplicados pelos próprios agentes alguns aspectos da teoria de Bourdieu do habitus e de sua discussão sobre a relação entre ação e estrutura (BOURDIEU, 2009).
30Pode-se dizer que a noção sociológica ou geográfica de periferia urbana é reapropriada ou reinventada, conforme aconteceu com a noção de cultura, segundo Marshall Sahlins (1997), pelos agentes, em seus próprios termos. Sem abandonar a discussão sobre a precariedade da periferia como um local para onde se deslocaram os mais pobres e que contaria com menor infraestrutura urbana e com pouca ou nenhuma assistência do poder público, muitos agentes sociais têm criado movimentos em que a noção de periferia adquire caráter identitário e mesmo de afirmação política. No caso da pixação, essa afirmação está ligada também a uma ideia de marginalidade como acontece com alguns segmentos de jovens adeptos do hip-hop ou do funk. No caso desse movimento de periferia, há uma produção artística que inclui o hip-hop, mas não se resume a ele, que tem se expressado e se afirmado por meio da literatura, do audiovisual, do grafite, da dança e da música. Atualmente, por exemplo, alcançam bastante repercussão os saraus literários, as batalhas de hip-hop e os slams.
31Como já apontado anteriormente, partir da análise da prática da pixação, a noção de juventude, entendida ao mesmo tempo como fase da vida e categoria sócio-histórica, e a ideia de periferia, entendida como categoria de reconhecimento social e territorial, foram as questões principais que orientaram a minha trajetória de investigação. Desse modo, na sequência, com o objetivo de tentar ampliar o enfoque da pesquisa desenvolvida durante o mestrado, decidi continuar com a discussão sobre juventude, cidade e periferia. Porém, dessa vez, não mais com a proposta de observar uma prática ou grupo específico, resolvi afastar-me para tentar observar relações mais amplas que os jovens moradores de São Paulo, particularmente os dos bairros periféricos, estabeleciam entre si e com o lugar onde viviam. A intenção, portanto, era abordar diferentes práticas e/ou grupos juvenis da periferia de São Paulo, tentando apreender seus múltiplos e complexos modos de vida e práticas de sociabilidade. Com essa questão, ingressei no doutorado em 2006. Ainda no início da pesquisa de campo, percebi que, em vez de buscar diferentes grupos ou práticas dispersas, seria mais produtivo se concentrar em espaços onde os/as jovens se encontravam na periferia. Por esse motivo, passei a focar minha pesquisa nas escolas públicas de dois distritos da periferia da cidade: Vila Brasilândia, na zona norte, e Cidade Ademar, na zona sul.
32Nas escolas, a pesquisa de campo revelou diferentes aspectos da vida juvenil nas periferias, mas também muitas relações conflituosas. Ainda que meu intuito inicial não fosse discutir educação, mas pensar a relação juventude, espaço e sociabilidade, tornou-se inevitável, ao abordar o espaço escolar, tratar também da questão da educação, que passou a ser, então, uma das minhas preocupações de pesquisa. Em grande medida, a escola, instituição considerada como a principal responsável pela conformação da categoria juventude como etapa destacada da vida, como a conhecemos hoje, passaria por um processo reverso em que os jovens reinventariam o espaço escolar, não sem inúmeros atritos. Philippe Ariès (1978), ao buscar demonstrar o novo lugar assumido pela criança e pela família nas sociedades industriais em sua obra História Social da Criança e da Família, evidencia como a ideia de criança é construída historicamente. Para Ariès, é a escola, no final do século XVII, que proporciona as condições para a criação das noções como as de infância e juventude, entendidas como etapas separadas da vida adulta, justamente por conta do isolamento em relação aos adultos. Constitui-se, assim, um novo meio para a educação, pois, conforme esse autor, na sociedade medieval, o mundo infantil não era separado do adulto, não havendo, portanto, uma fase de transição destacada.
- 2 Principal, mas não exclusiva, alguns autores abordam a formação da categoria juventude e das chamad (...)
33Desse modo, se a escola é a principal responsável2 pelo surgimento das categorias de infância e juventude como se configuram atualmente, pode-se dizer que também ocorre hoje o processo inverso, e, assim, os jovens e as crianças, que foram isolados desde o início dos tempos modernos para passarem por um período de formação, separados da sociedade dos adultos, recriariam esse espaço com suas novas demandas. Abre-se, assim, a possibilidade de inverter a função de adestramento e de disciplina autoritária inicial da escola. Bill Green e Chris Bigum (1998), ao discutirem o novo papel desempenhado pelos jovens no ambiente de ensino, constroem a figura dos “alienígenas na sala de aula”. Os autores defendem a ideia de uma nova geração com uma constituição radicalmente diferente: “o sujeito-estudante pós-moderno”. Essa outra constituição, afirmam, deve-se às relações que a juventude contemporânea estabelece com as novas tecnologias de comunicação e entretenimento e com a cultura popular de massa.
34Os espaços escolares transformam-se, assim, em importantes lugares de encontro e sociabilidade juvenil. A partir de tal constatação, mostrou-se necessário, além de abordar as discussões sobre cidade e juventude, também estabelecer maior relação com questões relacionadas à temática da educação, principalmente nas áreas de sociologia e antropologia da educação. A tese de doutorado, defendida em 2010, foi, assim, uma primeira oportunidade de estabelecer um contato interdisciplinar maior entre o campo da antropologia urbana e o da educação, mediado pelos estudos de juventude. A tese transformou-se em livro em 2016, intitulado: “A maior zoeira” na escola: experiências juvenis na periferia de São Paulo.
35Nela, apesar de partir das instituições de ensino, a pesquisa não se restringiu a esse aspecto, pois abordou também diferentes experiências juvenis observadas em variados contextos etnográficos, em duas localidades periféricas do município de São Paulo. Tentou-se, assim, compreender como as experiências juvenis modificavam e eram modificadas por outras experiências como as escolares, territoriais (de moradores da periferia), tecnológicas, além dos marcadores sociais da diferença, como gênero, classe social e raça. Dessa maneira, com base em etnografias realizadas de formas e intensidades diferentes em cinco escolas, atentou-se para a importância de dois aspectos no cotidiano dos jovens, nas escolas e em outros espaços públicos: o lúdico e o tecnológico.
36A centralidade das tecnologias mostrou-se de modo bastante contundente nas experiências escolares da juventude que observei, por meio dos telefones celulares acionados em sala de aula, da internet, dos games e também dos sons automotivos emitidos em volume elevado nas festas funks produzidas no espaço da rua. As interações que os jovens estabeleciam com os itens tecnológicos mantinham fortes associações com o lúdico, muitas vezes marcado por particularidades de gênero. Em suas múltiplas relações com o cômico, o jocoso, o festivo e o agonístico nas experiências juvenis contemporâneas, a questão da ludicidade, por meio da categoria zoeira, revelou-se como um componente importante não apenas do cotidiano das escolas – muitas vezes desestabilizando a ordem institucional destas – como também de outros contextos e práticas, mais ligadas às dinâmicas dos bairros onde as escolas estavam inseridas, como as lan houses e a música funk.
37O contato com a música funk dentro da escola levou-me a tentar compreender um pouco mais desse fenômeno musical, criado nas favelas cariocas e que chegava com força a São Paulo, no início dos anos 2000. A pesquisa nas escolas conduziu-me, portanto, novamente para as ruas, a fim de seguir os espaços de funk no espaço público e em casas noturnas na cidade. Assim, em 2011, iniciei uma pesquisa de campo mais sistemática sobre o funk em São Paulo. Essa investigação, de certa forma, foi uma continuidade aos meus estudos do doutorado. Ao começar a observação de campo em casas noturnas e em festas realizadas na rua, pude captar o surgimento de um novo movimento musical, uma vertente paulista do funk carioca, protagonizado principalmente por jovens de origem pobre, em São Paulo, o funk ostentação (PEREIRA, 2014). A partir da pesquisa de campo e da observação de videoclipes na internet, notei a existência de um número considerável de músicas que faziam referências a marcas de diferentes produtos e bens de valor elevado. Nesse funk, cuja a produção de videoclipes era um meio fundamental de divulgação, a imagem despontou como componente fundamental. Desse modo, a proposição de Arjun Appadurai (1996) sobre a centralidade do deslocamento pelas migrações e novas tecnologias da comunicação apresenta uma chave importante para se refletir sobre essa prática cultural juvenil, principalmente por meio da ideia de imaginação, que, segundo esse autor, é um dispositivo importante para a construção de projetos e trajetórias na contemporaneidade. Esses projetos podem ser mais individualistas e egoístas, como também podem proporcionar experiências coletivas que apontem para transformações sociais.
38Na passagem de 2013 para 2014, o funk ostentação teve um desdobramento importante na cidade de São Paulo, que também acompanhei de perto: os rolezinhos. Pelas redes sociais, principalmente, o Facebook, jovens organizaram encontro que denominaram como “Rolezinho no Shopping”. O termo rolê é uma gíria muito comum no Brasil, que designa a ideia de fazer um passeio ou circular pela cidade para se divertir. Nas redes sociais, os objetivos desses encontros, conforme os próprios jovens, eram: encontrar amigos, conhecer pessoas, paquerar, dar uns beijos e zoar. No entanto, o que seria apenas um encontro para lazer tornou-se uma grande confusão. Alguns lojistas, administradores e frequentadores do shopping sentiram-se ameaçados por aquela grande concentração de jovens periféricos a brincar e fazer barulho. Chamou-se então a polícia, que atuou com bastante truculência para expulsá-los, o que gerou correrias para fugir da repressão policial. Outro fator serviu de pretexto para que se criasse certo medo com relação aos participantes desse evento e se invocasse a presença policial, os protagonistas dos rolezinhos eram jovens periféricos, a maioria negros, fãs de funk e, em determinados momentos do encontro, cantaram músicas do repertório do chamado funk ostentação, exaltando a posse de dinheiro e o consumo de roupas e acessórios de grife.
39No final de janeiro de 2014, o discurso da grande mídia sobre os rolezinhos já havia mudado, principalmente como forma de contraposição aos encontros de protesto que surgiram em repúdio ao que foi denominado como apartheid social. As manchetes dos principais jornais e revistas não relatavam mais arrastões, roubos, saques ou arruaças, mas tentavam mostrar que se tratava, na verdade, de um movimento de jovens que só queriam se divertir e consumir nos shoppings. Alguns dos que organizaram e/ou participaram dos rolezinhos começaram a ser, de fato, ouvidos. Muitos deles deram inúmeras entrevistas e participaram de uma série de reportagens. Desde então, outros rolezinhos foram organizados em shoppings e, principalmente, em parques. Na maioria dos casos, de forma pacífica e tranquila. Não houve, entretanto, nenhuma reparação sobre as abordagens iniciais que criminalizaram tais eventos, persistindo, ainda entre uma parcela considerável da população, a ideia de que tais eventos congregavam delinquentes que tinham como único objetivo causar tumultos e realizar saques generalizados nos shoppings. A reação exagerada aos rolezinhos encaixa-se no que os estudos sobre juventude denominam, desde os anos 1970, como pânico moral (PEREIRA, 2016b).
40Em grandes cidades como São Paulo, com o desenvolvimento das mídias, esse processo de rotulação e estigmatização ganha maior amplitude, pois é possível produzir discursos que alcançam um público maior e mais diversificado, criando posições ainda mais enrijecidas e criminalizantes de certas práticas e segmentos sociais. Produz-se, assim, um fenômeno que é denominado como pânico moral. Como demonstra Stanley Cohen (2002) já nos anos 1960/1970, em pesquisa na Inglaterra, uma das formas mais recorrentes desse pânico moral é associada justamente às práticas engendradas por grupos jovens, cujo comportamento é considerado desviante ou delinquente, sendo muitas vezes associado à violência. O pânico moral consiste numa reação exagerada a respeito de uma certa prática, sendo disseminado amplamente, sobretudo por meio das mídias e, atualmente, de forma mais acelerada e descentralizada, por meio das novas mídias. No pânico moral, certas práticas, eventos ou grupos sociais são tomados como “bodes expiatórios”. Essa dimensão, discutida por Cohen – em que a mídia desempenha um papel crucial para propagar representações distorcidas e sensacionalistas sobre determinados eventos, que levam, na maioria dos casos, à criminalização, particularmente quando se tratam de ações protagonizadas por jovens pobres –, mostrou-se presente em todas as práticas culturais juvenis que observei, ao longo de minha trajetória de pesquisa aqui descrita. Na pixação, invariavelmente tem ocorrido uma cobertura que a apresenta como uma prática delinquente e perigosa. Nas escolas públicas voltadas para jovens pobres, as narrativas sobre a chamada violência escolar têm consolidado uma visão bastante recorrente sobre esses estudantes como perigosos e sem nenhuma perspectiva de futuro, como pude constatar em conversas com os professores. O funk, por sua vez, já é, há tempos, no Rio de Janeiro alvo constante de coberturas midiáticas, que promovem tal pânico moral. Os rolezinhos, portanto, ilustraram de forma bastante explícita como esse fenômeno é produzido.
41Hoje, como professor da Universidade Federal de São Paulo, do curso de Ciências Sociais, no Campus Guarulhos, que fica no Bairro dos Pimentas, periferia do município de Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo, minha trajetória biográfica e acadêmica conduziu-me a uma renovada conexão periferia/universidade. Dessa vez, trabalhando em uma universidade que se situa em uma região periférica, com um grande público de estudantes periféricos e negros, numa articulação bastante profícua que passa se construir desde dentro da instituição acadêmica. A lei de cotas para estudantes formados em escolas públicas, de baixa renda e negros foi sancionada em agosto de 2012, neste ano de 2023, quando escrevo este texto, ela completa 10 anos de efetiva implantação, cuja renovação acaba de ser aprovada e sancionada pelo presidente Lula. As universidades federais já possuem, portanto, uma experiência considerável de construção permanente de uma política de afirmação. Dessa maneira, na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp, em Guarulhos, eu já começo minha trajetória ali como professor em um contexto de inclusão social, ainda que esta tenha muito em que avançar e ser aperfeiçoada. No entanto, os progressos são inegáveis. O público diversificado da universidade nessa sua nova configuração social já é um ganho inestimável.
42Na Unifesp, sou coordenador do Grupo de Estudos sobre Cidade, Educação, Juventude e Curso da Vida (Cidejuv), orientando trabalhos de diferentes temáticas articuladas a um dos temas que nomeiam o grupo, ou mesmo que constroem intersecções entre eles. Atualmente, tento aprofundar a discussão sobre juventude e educação, desenvolvendo projeto de pesquisa que busca compreender a questão do futuro para a juventude contemporânea, em tempos de crise sanitária, guerras e profunda precarização das relações de trabalho. Esse é um tema importante na literatura acadêmica mais recente sobre juventude. José Machado Pais, por exemplo, anuncia a possibilidade de um futuro sombrio para as novas gerações, dada a “situação de descrença ou temor em relação ao futuro, num contexto de crescente imprevisibilidade dos cursos de vida” (PAIS, 2012, p. 267).
43Em uma avaliação também pessimista sobre o futuro da juventude contemporânea, Ferreira (2019) afirma que as políticas de austeridade teriam levado à formação de uma juventude marcada fortemente por uma condição de precariedade, que não se restringiria mais apenas ao mundo do trabalho, mas que tomaria “uma dimensão muito mais ampla nas transições para a idade adulta, afetando outras dimensões das vidas juvenis em termos de (des)proteção social e de (in)dependência e, em última instância, de (in)segurança ontológica” (FERREIRA, 2019, p. 56). Dessa maneira, segundo o autor, essa insegurança ontológica acarretaria em um estreitamento das possibilidades de futuro para os mais jovens. Ferreira denomina esse processo como uma ‘desfuturização’ da vida dos jovens desta geração, que os levaria a um maior apego às experiências do presente.
44A pesquisa que se inicia pretende, portanto, dado esse panorama mais geral, compreender os impactos da crise global atual, sanitária, climática, econômica e política, em como os jovens brasileiros concebem o seu futuro, mas também de discutir como as políticas voltadas à juventude articulam certa noção de futuro para eles, mesmo que em total desacordo com suas questões. O objetivo é aprender os futuros que os jovens imaginam para si, a despeito das crises e incertezas, muitas vezes em total desacordo com o que as políticas públicas imaginam para eles. Portanto, de uma pesquisa iniciada em um contexto bastante localizado, a periferia de São Paulo e a partir da observação de uma determinada prática cultural, a pixação, pretende-se ampliar o escopo ainda mais para se pensar a experiência geracional de juventude na contemporaneidade.
45Assim, de certa maneira, por meio dessa nova pauta de pesquisa, indica-se novas questões que se conciliam com as discutidas no âmbito do grupo de pesquisa sobre juventude no NAU Jovem. Se naquele contexto, a relação com o espaço urbano foi um aspecto fundamental das pesquisas. Atualmente, em tempos de crise política, sanitária e climática, na qual a dimensão distópica surge como uma questão importante, a dimensão da temporalidade mostra-se também como um aspecto fundamental para se pensar a juventude contemporânea. Aspecto esse que pode e deve ser pensado em relação aos espaços urbanos, às redes sociais e as múltiplas formas de apropriação criativa que os jovens produzem. Conjuga-se tempo e espaço como forma de compreensão dos impasses dos jovens a partir de seus demais marcadores, como classe social, raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade, entre outros.
46A minha trajetória de pesquisa aqui apresentada somente foi possível pela generosa oportunidade que me fora dada por José Guilherme Magnani, quando, há mais de 20 anos, me convidara para fazer parte da criação do NAU Jovem, e pelas ricas trocas que pude ter com as então jovens pesquisadoras. Agradeço, assim, aos importantes anos de orientação com Magnani e aos aprendizados que pude ter desde o começo de minha trajetória acadêmica, principalmente pela possibilidade de diálogo com as parceiras Ana Luiza Borges, Bruna Souza, Camila Iwasaki, Carolina Abreu, Clara Azevedo, Daniela Alfonsi, Fernanda Noronha e com o parceiro Márcio Macedo (Kibe).