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Quando o campo é coletivo: a frota fractal do NAU e suas práticas de etnografia coletiva

When the field is collective: NAU’s fractal fleet and its collective ethnographic practices
Ana Letícia de Fiori

Resumos

Este artigo se propõe a examinar os jogos de individualização e coletivização envolvidos nas relações e práticas desenvolvidas pelas chamadas “pesquisas coletivas” desenvolvidas pelo Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana. Considero que individuações e coletivações emergem a partir de relações e práticas que produzem simultaneamente pesquisadores, pesquisas, publicações e outros artefatos em processos de agregação e desagregação, pelos quais se desenvolvem também relações com os ditos sujeitos e campos de pesquisa. Contra expectativas de que pesquisas coletivas permitiram um ganho em termos de volume ou apreensão total de um determinado contexto etnográfico, ou de que a interdisciplinariedade emergiria pela mera adição de pesquisadores e protocolos de pesquisa oriundos de diferentes disciplinas, defendo que diferentes instâncias de coletivização – em campo, nos cadernos de campo compartilhados, nas iterações conceituais e metodológicas sobre contextos distintos, na escrita, etc. – produzem e multiplicam perspectivas parciais e compósitas, fractais, com implicações éticas e metodológicas. Diante da habitual forma de construir histórias de formação de pesquisadores e campos de pesquisa por meio de metáforas de parentesco e termos como linhagens (Torres, 2016), busco contar histórias do LabNAU, detendo-me nas pesquisas descritas no livro Etnografias Urbanas e em cidades amazônicas das quais fiz parte, por meio de uma pequena torção, a partir de certas influências ameríndias e melanesistas.

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Introdução

1Um dos artigos mais utilizados nos cursos introdutórios ao método etnográfico no Brasil é provavelmente “O ofício do etnólogo, ou como ter um anthropological blues”, de Roberto Da Matta, cujo teor incorpora-se também no capítulo sobre trabalho de campo do livro Relativizando (1987). Da Matta recupera evocativamente a ideia de que o trabalho de campo é um rito de passagem para a formação do antropólogo, uma situação de liminaridade a lá Victor Turner em que se aprende, em um mundo no qual é preciso recriar todas as relações sociais, “o seu sentido profundo, pelo isolamento e pela ressocialização voluntária” (Da Matta, 1987, p. 152). Este plano existencial da pesquisa de campo Da Matta nomeia com uma expressão oferecida por uma colega norteamericana, Dra. Jean Carter, “anthropological blues”. Desde a primeira vez em que li este texto de Da Matta, aos 18 anos, sempre pensei que, além do sentimento de blues (algo próximo à solidão e à melancolia), blues é uma experiência coletiva, multi-instrumental, um gênero musical dissonante e com certa ambiguidade melódica, uma conversa lúdica entre músicos e seus ouvintes, tal como fazia a banda na qual meu irmão mais velho Leonardo era baixista, Cachorrada do Blues, pelo litoral sul de São Paulo no final da década de 1990. De fato, os ritos de passagem pelos quais passávamos na Universidade de São Paulo, cursando Pesquisa de Campo em Antropologia ou participando de outras atividades do Núcleo de Antropologia Urbana, eram etnografias ruidosas, lúdicas, coletivas e cheias de trocas interessantes com interlocutores de pesquisa e colegas de graduação e pós-graduação. Um blues animado e generoso, com pitadas de improvisação a partir de uma base comum, em que as diferentes etapas do fazer etnográfico eram guiadas pelos princípios maussianos de dar, receber e retribuir, sempre lembrados por nosso orientador José Guilherme Canto Magnani.

2Quando, em uma das reuniões da comissão editorial da Revista Ponto Urbe, foi proposto que organizássemos um dossiê em comemoração aos 35 anos de existência do Núcleo de Antropologia Urbana e homenagem a seu fundador, o formato do dossiê – agora convertido em número especial – emergia de modo quase intuitivo: convidar membros do NAU, mais antigos ou mais recentes, para escrever sobre as gerações de pesquisadores e pesquisadoras, suas ramificações e atualizações nos debates contemporâneos da antropologia. Estas gerações acompanharam as ondas temáticas singradas pelo NAU, cuja bússola apontava para a investigação de práticas culturais no contexto urbano: festas e lazer, religiosidades (católica, evangélica, de matriz africana, espírita, ayahuasqueira, nova era, judia, budista, wicca, até mesmo satanista), juventude, esportes, política e instituições do estado, patrimônio, imigração, movimentos sociais, pessoas com deficiência, museus, cibercultura, presença indígena nas cidades, e, mais recentemente, pesquisas cemiteriais; ondas representadas por este dossiê e presentes nas mais de 30 edições da revista Ponto Urbe.

3Na Metrópole (Magnani; Torres, 2002), Jovens na Metrópole (Magnani; Mantese, 2007), Paisagens Ameríndias (Amoroso; Santos, 2013) – junto ao Centro de Estudos Ameríndios da USP e o Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena da Ufam, Lazer de Perto e de Dentro (Magnani, Spaggiari, 2018) – junto ao SESC, são algumas das publicações do NAU que reúnem, sob a forma de coletânea, trabalhos desses pesquisadores que revelam não apenas uma convergência temática e referências teóricas comuns, mas também, de modo mais tímido, a própria realização coletiva das pesquisas de campo e da construção dos dados e sua análise antropológica. Outros pesquisadores lograram publicar individualmente seus trabalhos, em artigos e livros, marcando nos agradecimentos, nas remissões reciprocadas e em alguma eventual menção às pessoas que participaram das práticas coletivas de pesquisa, mas raramente com uma reflexão aprofundada a respeito.

4Por sua vez, o caráter coletivo da realização das pesquisas é explícito em outras publicações. O Expedição São Paulo 450 anos: uma viagem por dentro da metrópole (Magnani, 2004) foi constituído a partir de uma expedição interdisciplinar que visava justamente destacar a pluralidade de perspectivas sobre a metrópole paulistana. Já na tese de titularidade de Magnani, Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia Urbana (Magnani, 2012), a reflexão sobre o caráter coletivo das pesquisas é construída a partir do trabalho de orientação na graduação e na pós-graduação, de certo modo em continuidade com o descrito por Lilian de Lucca Torres em A Cidade dos Antropólogos (Torres, 2016), sobre as orientações de Ruth Cardoso e Eunice Durham. A reflexão sobre as implicações desse trabalho coletivo para o fazer antropológico é retomada também na obra mais recente do NAU, de intuito introdutório e didático, Etnografias Urbanas: quando o campo é a cidade (Magnani; Spaggiari; Nogueira; Chiquetto; Tambucci, 2022), cuja escrita da primeira parte é de Magnani, e a segunda e terceira parte de uma equipe que tem trabalhado junta em projetos recentes do NAU. A terceira parte do livro, em particular, chama-se “Experimentos” e descreve protocolos para uma pesquisa de campo coletiva, com alguns exemplos dessas pesquisas recentes.

5Entretanto, creio que a descrição e a discussão sobre a pesquisa de campo e a etnografia coletiva, comum a outros núcleos de pesquisa Brasil e mundo afora, mereçam um exame mais denso, em termos teóricos, epistemológicos e éticos. Este foi o exercício que desenvolvi em minha tese de doutorado, Conexões da Interculturalidade (Fiori, 2018), ao dedicar à questão todo o primeiro capítulo, “Fractalidades, magnificações e recortes – realizar uma pesquisa coletiva, produzir uma tese individual”. Ali retomo experiências do NAU e, em especial, do Grupo de Etnologia Urbana no qual a minha tese foi produzida, e proponho algumas imagens boas para pensar, como a frota fractal do NAU, inspirada nos trabalhos de Marilyn Strathern, Roy Wagner e Donna Haraway. Assim, vali-me da prerrogativa de coorganizadore do dossiê para escolher a pesquisa coletiva como assunto de minha própria contribuição que, acredito eu, instanciará nossas criatividades e instigará novas criatividades etnográficas.

6Para discutir a forma como se faz pesquisa coletiva no NAU, a proposta é pensar os jogos de individualização e coletivização envolvidos nas relações e práticas desenvolvidas pelo núcleo de pesquisa, ou, nos termos de Strathern, como se agregam e desagregam nossos constructos (Strathern, 2014, p. 241). Isto, ao considerar o caráter produtivo (de pesquisadores, de pesquisas, de publicações e outros artefatos) de tais relações e práticas ao longo desses processos de agregação e desagregação. Diante da habitual forma de construir histórias de formação de pesquisadores e campos de pesquisa por meio de metáforas de parentesco e termos como linhagens (Torres, 2016), uma pequena torção, a partir de certas influências ameríndias e melanesistas.

A frota fractal

  • 1 Renato Rosaldo indica, em Culture and Truth (1989, p. 31) como o Mito do Etnógrafo Solitário criou (...)

7 Qualquer pesquisa envolve jogos de coletivização e individuação que conformam, em parte, suas próprias condições de possibilidade. Na introdução dos Argonautas do Pacífico Ocidental (1922), Bronislaw Malinowski descreve-se sozinho na praia enquanto o navio que o trouxera se afasta, e instrumentaliza sua própria solidão como recurso para o trabalho de campo que iniciava. Uma imagística que ainda aprendemos em nossas iniciações ao método etnográfico, mas que, de fato, sequer correspondia integralmente à experiência do próprio Malinowski em seu tempo nas Ilhas Trobriand, que intercalava períodos na aldeia e na sede colonial. De todo modo, trata-se de uma imagem particularmente sugestiva para praticantes de antropologia que nasceram e se criaram nas ex-colônias, cujas narrativas de estado nação também envolvem a chegada de uma nau e um (mau, diria Pierre Clastres, com muita razão) Encontro entre europeus e coletivos autóctones1. Em nosso caso brasileiro, Cabral e as caravelas e as descrições de Caminha, alteridade fundante de certos mitos de identidade nacional.

8Navios e suas viagens podem, entretanto, ofertar diferentes enquadramentos e perspectivas do e para o encontro com o campo. Tratando-se do Núcleo de Antropologia Urbana, o acrônimo e as metáforas náuticas eram aplicados de modo lúdico para, parafraseando o título da obra de Ulf Hannerz (1980), explorar a cidade e encontrar seus habitantes. Sempre com uma perspectiva “de perto e de dentro”, título de um dos mais citados artigos de Magnani (2002), que evitasse os diagnósticos de caos social e semiótico comuns a análises sobre as metrópoles e globalização das últimas décadas do século XX. Uma nau urbana e, eminentemente, paulistana e uspiana e, ainda que não ousemos refletir muito a respeito, com vínculos ancestrais ao bandeirantismo que navegou para o interior pelos rios Tietê e outros e, séculos depois, erigiu-se como vanguarda econômica, política e, no caso da USP, acadêmica. Nossas metáforas náuticas, portanto, não podem ser contadas como estórias inocentes, vinculadas que são a histórias que envolvem colonialismo, mas são também nossos modos de ficar com o problema (Haraway, 2016) e promover algumas difrações, colocando não apenas reflexos, mas a percepção de transformações e seus efeitos, a partir de uma consciência crítica que busca fazer diferença no mundo (Haraway, 2018).

  • 2 Ver Andrade, 2012, 2018, Mauro, 2015, e Fiori, 2018, para discussões realizadas por membros do GEU; (...)
  • 3 Além da tese, discuto estas questões em “Cosmopolíticas interculturais” (2021), escrito em parceria (...)

9Entretanto, eis que, o Grupo de Etnologia Urbana – um dos subgrupos do NAU criado em 2009 a partir do Programa de Cooperação Acadêmica - Procad “Paisagens Ameríndias: habilidades, mobilidade e socialidade nos rios e cidades da Amazônia.”, desenvolvido em conjunto com a Universidade Federal do Amazonas - Ufam – em seus encontros com Sateré-Mawé nas cidades de Manaus e Parintins, no Amazonas, recebeu de volta a imagística da nau pelo Mito do Imperador. Do modo como nos foi contado diversas vezes, o grande Imperador vivia em tempos imemoriais e encontrou os Sateré-Mawé nos jardins do Nosoken, terra de juventude perene na qual os animais falavam, e os convidou para uma viagem de navio. Os Sateré-Mawé, por motivos diferentes nas variações do mito, acabam se atrasando e ficando para trás. Mas o Imperador, benevolente, encarrega-os de cuidar da floresta e promete voltar um dia, trazendo benesses. Nos enquadramentos cosmopolíticos dos Sateré-Mawé, tal como os aprendemos e descrevemos, elaboraram-se sucessivas congruências entre o Imperador e adventos benévolos do mundo dos brancos (que não deixam de ser também Inimigos, tal como inscrito nos cantos da Festa da Tucandeira2), incluindo as políticas para educação escolar e universitária e diferentes pesquisadores com os quais, a partir de poderes e perigos, foram articuladas reivindicações e alternativas para a construção do próprio futuro3. Esta versão do mito do Imperador está presente no Memorial Indígena Sateré-Mawé: trajetórias em Parintins (2012), narrada pelo professor sateré-mawé Lúcio Menezes.

10A partir do encontro das analogias dos Sateré-Mawé da presença de pesquisadores do GEU como a volta do Imperador com as nossas próprias metáforas náuticas, o barco que deixa Malinoswki na praia transformou-se, nas reflexões de minha tese sobre etnografias coletivas, na NAU como uma frota fractal. Uma frota de embarcações – seus subgrupos de pesquisa – nos quais navegam pesquisadores de graduação, pós e de outras instituições; subgrupos que se fazem e desfazem ao longo dos projetos de pesquisa realizados, com conexões parciais entre si e que, portanto, são compósitos de pessoas, projetos, conceitos, etnografias, vinculações e outros elementos heterogêneos. NAU que, por sua vez, é também um núcleo entre outros núcleos do Departamento de Antropologia da USP, com seus próprios modos de navegar. E uma NAU que, em suas navegações, encontra-se e conecta-se com outros projetos, núcleos e instituições de pesquisa, agentes sociais e políticos, interlocutores de campo, etc. Ao estabelecer relações com estes sujeitos, cada pesquisador ou pesquisadora do NAU figura tanto individual quanto coletivamente – como NAU, como USP, mas também a partir de compreensões recíprocas estabelecidas pelos respectivos pactos etnográficos estabelecidos.

11Esta imagem, também uma aliteração, permitiu considerar o NAU em seus modos de fazer antropologia e fazer relações em sua fractalidade, ou seja, tomando-o como um ente cujas relações externas com outros são parte integrante de si mesmo e que, ampliando-se ou reduzindo-se, mantém essa escala (ver Wagner, 2011, p. 2 ss).

  • 4 O trocadilho entre as magnificações do big man e o nome Magnani, entretanto, é irresistível diante (...)

12Pretendo demonstrar que relações externas e internas são assim conformadas a partir de processos de coletivização e individuação, em certo sentido em modos de continente e conteúdo, que podem dizer respeito a pessoas (pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras), produtos (livros, artigos, dissertações e teses, relatórios, vídeos, cartilhas, eventos), instituições (universidades, núcleos de pesquisa), projetos e epistemes (em um sentido amplo: autores, conceitos, teorias, métodos, estilos de escrita). Tal como o great man melanésio apresentado por Wagner, uma pessoa composta de outras pessoas, estes entes são menos unidades em relação a agregados ou agregados em relação a entidades do que entes que trazem implicadas suas relações e que as instanciam, a partir de diferentes seccionamentos ou identificações. Na tese, recupero a discussão de Marilyn Strathern da noção de pessoa melanésia como “divíduo”, uma pessoa que se compõe de várias outras, abrigando em si relações de vários tipos, tornadas explícitas e remodeladas em contextos rituais. Afirmo que a infinitude de palestras e textos em que Magnani se refere às pesquisas e pesquisadores do núcleo é a instanciação ritual dessas relações e brinco, chamando-o de big man do NAU, acrescentando que ele faria (e de fato, o fez) objeções de ordem moral4. Não apenas Magnani, de fato, mas cada pesquisadora e pesquisador do NAU corporifica relações em um microcosmos de componentes heterogêneos e cambiantes, conforme se individualiza ou coletiviza modos de pesquisar, publicar, interagir.

Exemplos iniciais de campo coletivo em Etnografias Urbanas

13 Coletivizações podem ser feitas em diferentes instâncias da pesquisa etnográfica: idas a campo e outras formas de contato com os interlocutores e o universo da pesquisa; a produção de relatos de campo compartilháveis; as formas de análise dos dados construídos; as articulações teóricas; a produção acadêmica com múltipla autoria e citações e remissões reciprocadas em diálogo intertextual; as parcerias estabelecidas. Quem, o quê e como se coletiviza ou se individualiza não é algo dado ou necessariamente circunscrito a cada pesquisador ou pesquisadora, e alguns casos podem ser ilustrativos para pensar esse jogo, as perspectivas e escalas que produz.

14No NAU, como em outros núcleos de pesquisa, coletivizações sedimentam-se no tempo, conformando uma comunidade de praticantes de etnografia, cujo aprendizado e cujas práticas pressupõem em alguma medida a coletividade no campo. Como escrevi em minha tese, “o proceder etnográfico do NAU tem seu horizonte de práticas calcado em conhecimentos adquiridos ao caminhar pelas paisagens urbanas, construído e orientado ao longo dos caminhos, em uma redescoberta orientada” (Fiori, 2018, p. 30), e invoco a noção de “educação da atenção” de Tim Ingold (2001, p. 19) para salientar que se trata de práticas de conhecimento transmitidas ao longo das gerações de pesquisadores, em que menções e recapitulações dos empreendimentos de pesquisa anteriores tem algum papel junto às próprias práticas ensinadas. Atualmente, esta educação da atenção foi apelidada de “modo campo”, com direito a botton produzido pela mestranda Jéssica Andrade, atual coordenadora do subgrupo NAU Cidades (ver artigo de Pereira, Machado, Moraes, Morais e Andrade, nesta edição especial). Por sua vez, as recapitulações são narradas em reuniões de trabalho do núcleo, nas aulas oferecidas por Magnani em disciplinas de graduação como “Práticas Culturais no Contexto Urbano”, “Antropologia Urbana” ou “Pesquisa de Campo em Antropologia” ou cursos externos, e também em algumas das obras publicadas. Tantos as recapitulações quanto os novos projetos são iterações dessas práticas em que elementos são acrescentados e perdidos, novos cortes nas redes produzidos, bem como novas escalas e sujeitos de pesquisa.

  • 5 Não sei dizer se o intervalo de exatos 10 anos entre cada pesquisa usada como exemplo foi intencion (...)
  • 6 Várias vezes, a festa de Corpus Christi em Santana de Parnaíba foi o locus de exercícios de etnogra (...)

15A já mencionada Expedição São Paulo 450 anos, reedição em 2004 de uma primeira experiência realizada em 1985, é uma referência para estas caminhadas urbanas. Participaram da expedição membros importantes do NAU, como Luiz Henrique de Toledo e Alexandre Barbosa Pereira (que contribuem com este especial), Vagner Gonçalves da Silva (que foi vice-coordenador do NAU e há anos é coordenador do CERNE – Centro de Estudos das Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras), Rita de Cassia Amaral (fundadora da Revista Ponto Urbe), Daniela Alfonsi (que posteriormente foi diretora também no Museu do Futebol e no Museu das Favelas). A expedição é citada no livro Etnografias Urbanas (2022, pp. 180-6) como uma experiência precursora das pesquisas coletivas, junto a uma pesquisa encomendada ao NAU pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo) em 1984 sobre a cidade de Santana de Parnaíba e um estudo para o tombamento do paulistano Parque do Povo, em 19945. Embora estas três pesquisas tenham em comum a participação de um coletivo de pesquisadores e pesquisadoras e objetivos ligados a políticas culturais e patrimônio (pesquisas aplicadas, portanto), valeram-se de estéticas, deslocamentos e temporalidades diferentes. A expedição de 2004 percorreu a cidade de São Paulo em dois eixos, sul-norte e leste-oeste, ou seja, uma grande e única ida a campo, com o intuito de criar um Museu da Cidade de São Paulo e produzindo um vídeo documentário e um livro fartamente ilustrado por registros fotográficos. Já a pesquisa de tombamento em Santana de Parnaíba6 envolveu o deslocamento de pesquisadores e pesquisadoras da capital paulista para a cidade, atentos ao cotidiano e ao calendário de festejos da cidade, como a produção de tapetes nas ruas para as procissões de Corpus Christi, em três etapas: uma exploratória, uma de classificação dos dados e entrevistas, e por fim um campo mais intensivo (cf. Magnani et al, 2022, p. 185). O Parque do Povo, por sua vez, foi frequentado pelos antropólogos e antropólogas – também em uma equipe interdisciplinar – para identificação de frequentadores e seus vínculos de sociabilidade no parque.

16A expedição São Paulo 450 Anos, portanto, irrompe como um evento provocado pelo coletivo de pesquisa, ao mesmo tempo inédito (em objetivo, escala e volume de participantes) e reeditado (diante da experiência anterior de 1985), em que a copresença interdisciplinar em campo pode afetar percepções e análises em alguma medida, sem que haja certa divisão de trabalho científico, explícito na autoria dos materiais que compõem o livro. As trajetórias percorridas pela expedição constroem uma totalidade heurística para abarcar a totalidade impossível da metrópole, produzindo um modelo e uma escala de São Paulo em seu formato de cruz, apreendida ao ser percorrida e perscrutada por essa multiplicidade de expedicionários. Santana de Parnaíba colocava o desafio da construção de categorias políticas para o patrimônio, que compreendesse não apenas aspectos arquiteturais, em um contexto em que construções coloniais perdiam espaço para a instalação de indústrias que reconfiguravam a paisagem urbana; mas aquilo que viria a ser compreendido como patrimônio imaterial, apreensível etnograficamente e pelas memórias e compreensões de seus habitantes e registrado em relatórios destinados ao órgão público e artigos acadêmicos. O Parque do Povo, também diante de um processo de transformação urbana, assistiu a obsolescência do mote de seu tombamento quando sua requalificação alterou as práticas de seus frequentadores, que haviam sido registradas na pesquisa.

  • 7 Para uma atualização da discussão da categoria de pedaço, ver Toledo e Spaggiari, nessa edição espe (...)

17Após apresentar estes exemplos, Etnografias Urbanas (2022, pp. 202-10), recupera a distinção que Magnani indicara (2009) de etnografia como experiência e como prática, relegando à experiência um caráter mais exploratório e pontual, enquanto a prática envolve planejamento, sistematização e negociações de campo. A etnografia coletiva, por sua vez, poderia ser feita pontualmente por meio de incursões que acompanham “situações sociais”, em evocação à análise de caso estendido de Max Gluckman (2010); caminhadas realizadas a partir de mapeamentos prévios dos locais e trajetos, ainda que abertas a imprevistos, ou, em durações mais longas, em expedições. Estas três modalidades interseccionam experiência e prática etnográfica. Prática que pode ser desenvolvida coletivamente por um período de tempo maior ao estabelecer-se um protocolo de pesquisa. Cada protocolo considera as especificidades de cada campo, o tempo previsto, o perfil e a quantidade de pesquisadores e pesquisadoras, etc. e pode ser temporalmente dividido entre pré-campo (reconhecimentos, autorizações, planejamentos, etc.), campo e pós campo (análise de dados a partir dos relatos e registros compartilhados e elaboração dos diferentes produtos da pesquisa). São modalidades que trazem implícitas também as categorias consagradas por Magnani para a análise dos emaranhamentos (tomando emprestada a expressão ingoldiana, também traduzida por malha) entre agentes sociais e conformações espaciais na cidade: pedaço, mancha, trajeto, pórtico, circuito7. Não à toa, uma estética de mobilidade perpassa estas modalidades de experiência etnográfica, ainda que os produtos delas não necessariamente tomem a forma do relato de deslocamentos exploratórios.

  • 8 Participei da concepção e dos pilotos dos projetos do SESC (iniciado por uma oficina da qual também (...)
  • 9 Uma empresa de consultoria em pesquisa fundada por membros do NAU.

18Tal protocolo de pesquisa é apresentado em Etnografias Urbanas com exemplos de pesquisas multissituadas realizadas pelo NAU nos SESCS, nos CEUs8, nas Escolas Ativas (equipamentos urbanos de educação e cultura) e sobre os danos aos bens imateriais na bacia do Rio Doce, após o rompimento da barragem em Mariana-MG, que ofereceriam perspectivas para uma antropologia extramuros, ou seja, com agendas e finalidades não apenas acadêmicas. Em alguns desses exemplos, a coletivização dá-se pelo nome de Argonautas9, e não mais (ou não apenas) NAU, que pode implicar pesquisadores sem vínculos formais com a USP ou outras IES e envolve outras formas de pactuação e remuneração das pesquisas.

Aprender a etnografar na universidade: a antropologia compartilhada da Ocupação

  • 10 O livro menciona, em um mesmo parágrafo, o subgrupo NAU Jovens que reuniu um grupo de pesquisas em (...)

19Duas outras pesquisas coletivas realizadas pelo contribuíram para a consolidação de um método próprio para etnografias coletivas no NAU, também rememoradas no livro Etnografias Urbanas10. A primeira delas, pesquisa realizada por estudantes de primeiro ano de graduação na ocupação da Reitoria da USP em maio de 2007 que cursavam a disciplina de Antropologia 1 oferecida por Magnani, tornou-se uma experiência que reunia política estudantil, experimento pedagógico e experimento antropológico em que o campo se tornara a própria universidade, entre o prédio ocupado pelo movimento estudantil durante a greve e a sala do NAU, dentro do mesmo campus. No livro, avalia-se que

vários pesquisadores estiveram simultaneamente em campo num período mais curto de tempo, realizando observações, coletando dados, compartilhando olhares e relatos. Essa estratégia proporciona uma multiplicidade e olhares e perspectivas a partir do repertório e características de cada pesquisador (Magnani et al, 2022, p. 211).

20Entretanto, essa multiplicidade de perspectivas não é derivada apenas de certas idiossincrasias de cada praticante da pesquisa. A alternância de pontos de vista individuais e coletivos, aprendizes e professores, engajados e analíticos, constituía um híbrido de saberes localizados (Haraway, 1995) que engendraram acessos e relações com os interlocutores a partir de avaliações situacionais, no exemplo da pesquisa da ocupação, de apoio ou não àquela mobilização política e a seu modo de organização, além de outros marcadores de diferença em jogo. A ocupação se tornou um objeto de saberes heterogêneos ao longo do projeto, no qual se misturavam técnicas e conhecimentos antropológicos progressivamente apreendidos pelos estudantes-pesquisadores/as e diferentes relacionamentos pessoais e políticos (incluindo-se aí também saberes e técnicas políticas sobre movimento estudantil e fazer greve e ocupação) também progressivamente desenvolvidos com seus interlocutores e com outras instâncias da universidade. De certo modo, uma autoetnografia da universidade por universitários, em um momento de liminaridade, e não à toa autores como Mary Douglas e Victor Turner foram mobilizados.

  • 11 O programa Ensinar com pesquisa à época envolvia remuneração mensal de R$300,00 por um ano, para es (...)

21Na pesquisa da Ocupação, os relatos produzidos individualmente por cada estudante (sobretudo aqueles e aquelas que seguiram vinculados a um projeto contemplado pelo programa de bolsas Ensinar com Pesquisa11 e iniciações científicas) foram socializados por todo o grupo em versão digitalizada e reorganizados a partir de eixos temáticos construídos ao longo da pesquisa, conforme também alguma teoria antropológica se tornava conhecida e influía nas categorizações. Foram também debatidos com outros pesquisadores e pesquisadoras do NAU, de graduação e pós ao longo de 2008 (à época, eu era monitore do NAU, que ainda não tinha o status de laboratório). Se o próprio registro e descrição da ocupação operava em alguma medida um corte no fluxo social e enunciativo da Ocupação, esta reorganização em eixos temáticos mais uma vez recorta, estabilizando o objeto da pesquisa como um artefato adequado aos instrumentos desenvolvidos para a sua análise. Os próprios eixos temáticos operam ao mesmo tempo autolimitando a observação (já realizada ou por realizar) e a expandindo em certas direções (conforme se as ligam a ferramentas categoriais e conceituais empregadas na descrição e análise e conforme pesquisadores passam a atuar em função desses eixos na sua presença em campo e nos seus relatos).

22Não se constituía assim, uma instanciação disjuntiva entre “estar lá” e “escrever aqui”, tal como propunha Geertz em Vidas e Obras: o antropólogo como autor (2002). Seguindo Strathern (2014, cap. 5), cabe-nos pensar nos jogos de contexto dessa experiência etnográfica. As estratégias literárias e analíticas desenvolvidas apresentavam a composição de ideias, lógicas e afetos da experiência da Ocupação apreendida etnograficamente e registrada nos cadernos de campo, permitindo aos próprios autores uma leitura autorreflexiva de seus próprios aprendizados antropológicos, políticos, literários e universitários. Com um texto, entretanto, não voltado apenas para consumo próprio, mas para virtuais leitores participantes da Ocupação (seus pares engajados no movimento estudantil), ou outros membros da comunidade uspiana – quiçá, da “sociedade mais ampla” – apoiadores, críticos ou indiferentes, a quem se descreveria e traduziria a Ocupação para além dos textos politizados (e das publicações nas emergentes redes sociais do período), em uma interpretação com certa dignidade antropológica, ressaltando outras facetas além da práxis política ou das críticas aos “baderneiros e vagabundos”. O público leitor, portanto, não estava distante do contexto etnográfico no qual os aprendizes de antropologia transitavam, mas posicionado em relação a este contexto e, mais que isso, construindo e enquadrando este contexto de diferentes modos.

  • 12 Caberia escrever mais sobre as justaposições de contexto e construção de autores, leitores e “nativ (...)

23Assim, a pesquisa da ocupação buscou construir contextos de produção e leitura que mobilizavam o curso de Antropologia 1, o NAU (incluindo o espaço físico na universidade que à época não era oficialmente do núcleo), os programas de bolsa e iniciação científica, os centros acadêmicos estudantis, a reitoria da USP, entre outras conexões que parcialmente também abarcariam seus leitores. O estilo descritivo misturou os cadernos de campo escritos e discutidos “em tempo real”, no contexto do curso de Antropologia 1, com uma primeira emergência de categorias e lógicas “nativas” e reinscrições da presença de pesquisadores e pesquisadoras em campo em primeira pessoa; escritas de reconstrução da experiência de campo retrospectiva, em que se organiza a divisão em eixos temáticos e a análise, contextualizando reciprocamente a teoria antropológica e as ideias da Ocupação, em que a presença em campo é matizada pela inscrição do aprendizado em antropologia. Uma justaposição de contextos12 compondo uma ficção com vários intentos persuasivos, ante a expectativa de autores, leitores e instâncias de prestação de contas (o departamento e o próprio orientador).

  • 13 De fato, a materialidade do acervo (a enorme estante que ocupa), junto com as atividades da revista (...)

24O relatório do NAUOcupação, afinal, em seu caráter de artefato híbrido, passou a fazer parte do Acervo do NAU, somando-se a pesquisas desenvolvidas em disciplinas de graduação e pós e iniciações científicas do NAU desde meados da década de 199013. Seus procedimentos, modos de fazer, repercutiram para além do teor etnográfico do trabalho, em fluxo conduzido por participantes e interlocutores para novas pesquisas.

Reflexões, refrações e difrações da Marginal Pinheiros às margens do Amazonas

  • 14 Algumas questões desse projeto estão antecipadas em Schor e Oliveira, 2012.

25A noção de “cadernos de campo compartilhados”, disponibilizados via internet aos membros do grupo foi incorporada nas pesquisas realizadas pelo Grupo de Etnologia Urbana – próximo exemplo do manual de Etnografias Urbanas – que se voltou para o Amazonas, primeiramente a partir do projeto Paisagens Ameríndias (2009-2012), seguido das dissertações e teses individuais, e na sequência com a pesquisa desenvolvida em parceria com o Núcleo de Estudos de Populações em Cidades da Amazônia Brasileira, coordenado pelos geógrafos José Aldemir de Oliveira e Tatiana Schor14, a partir de um projeto Pronex, “Cidades amazônicas: dinâmicas espaciais, rede urbana local e regional” (2013-2015), que promoveu incursões em municípios da calha do Solimões e Amazonas: Manacapuru, Tefé, Tabatinga, Parintins e, mais brevemente, Coari e Itacoatiara.

26 As primeiras incursões em 2009 dos três então estudantes de graduação, que criariam o GEU para participação do NAU no projeto Paisagens Ameríndias, buscaram compartilhar os relatos de campo via publicação em um blog e uso de marcação dos pontos e trajetos em Manaus com um dispositivo de GPS, criando experiências, ainda que incipientes, de acompanhamento em tempo real do trabalho de campo por outros membros do NAU. Este compartilhamento teve como efeito um envolvimento coletivo com as questões emergentes que mobilizaram outros estudantes de graduação, incluindo remanescentes do projeto da Ocupação, para outras incursões coletivas a Manaus. Estas engendraram a produção de recortes temáticos distintos, em diferentes graus entremeados com a investigação das presenças indígenas na cidade, e o estabelecimento progressivo de relações com comunidades Sateré-Mawé, acostumadas a receber pesquisadores, e que passaram a nos identificar como os pesquisadores de São Paulo, da USP e/ou do NAU.

  • 15 Prestes a defender a tese de doutorado “Y después de la coca, ¿qué?” Substituição de cultivos no Pu (...)

27Estas relações resultaram na produção em 2010 do primeiro Memorial Indígena Sateré-Mawé: trajetórias em Manaus, dirigido por Letícia Shimoda e, já no escopo da pesquisa de mestrado de José Agnello Andrade e das iniciações científicas de Rodrigo Chiquetto, Yuri Tambucci (esses três os primeiros membros do GEU) e Ana Luisa Sertã de Almada Mauro, na produção do segundo Memorial Indígena Sateré-Mawé: trajetórias em Parintins, dirigido por Diana Paola Gomez Mateus15, em janeiro de 2012. Ambos os produtos audiovisuais envolveram discussões de produção com interlocutores Sateré-Mawé, que selecionaram pessoas a entrevistar e temas a abordar; além de esforços coletivos com os participantes do NAU de cada produção para transcrição das falas gravadas e seleção de trechos para edição; e de edição para o corte final por parte das diretoras, com auxílio técnico do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. Uma vez prontos, dezenas de DVDs – financiados pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP – foram entregues aos interlocutores Sateré-Mawé, que a eles conferiram diferentes usos a partir de seus estilos de criatividade e socialidade próprios: material didático nas escolas indígenas, venda para turistas visitando as comunidades, modelo para projetos futuros e que continuaram a servir como cartão de visitas e materialização da parceria com o NAU.

  • 16 Não apenas plurais, no sentido da soma de esforços de diferentes indivíduos diferentemente situados (...)
  • 17 Disponível para download no site do Departamento de Antropologia da USP. https://antropologia.fflch (...)
  • 18 O antropólogo e cineasta Jean Rouch (1917-2004) produziu uma série de pesquisas e filmes em context (...)

28Ou seja, houve uma sucessão de esforços compósitos16 de autoria, com os interlocutores/coautores Sateré em campo, com interlocutores antropólogos não necessariamente autores no NAU, com instâncias universitárias da USP, cujo produto final, o artefato do DVD com cada memorial, enfeixa e materializa algumas cadeias relacionais e propicia outras, a partir de agências individuais e coletivas diversas. Em 2017, foi entregue na aldeia de Ponta Alegre, Terra Indígena Andirá-Marau, o Terceiro Memorial Indígena Sateré-Mawé: Ponta Alegre, e uma Cartilha Paradidática17, confeccionados por lógicas semelhantes. Já num momento de declínio da valorização do DVD como mídia, a cartilha é que foi celebrada pelos nossos interlocutores. São experiências que instanciam e complexificam a noção de antropologia compartilhada de Jean Rouch18, a partir do que Roy Wagner e Marilyn Strathern consideram sobre criatividade, trabalho e valor, posto que cada um desses produtos – chamados tipicamente de “retornos da pesquisa à comunidade” – de fato instanciam um feixe de relações e de trocas e ao mesmo tempo estabelecem perspectivas para outras produções e trocas.

  • 19 Que, no meu caso, incluem coescritas com um dos acadêmicos Sateré-Mawé, Josias Ferreira de Souza (s (...)

29Em termos de produtos escritos do GEU para um público acadêmico, José Agnello Andrade, Rodrigo Chiquetto, Yuri Tambucci e Ana Luísa Sertã, bem como seu orientador José Guilherme Magnani, tornaram-se autores de capítulos na coletânea resultante do projeto Paisagens Ameríndias (2012), recortando temas e perspectivas que foram investigadas tanto nas incursões coletivas quanto em idas individuais a campo, e que se valeram de dados de campo construídos e compartilhados. Ana Luísa Sertã, José Agnello, Rodrigo e Yuri desenvolveram pesquisas de mestrado que resultaram em dissertações e artigos (no caso de Ana Luísa Sertã, também um livro individual). José Agnello e eu, Ana Fiori, desenvolvemos também nossos doutorados, pesquisando com os Sateré-Mawé com quem nossas relações foram se consolidando ao longo dos anos e das várias presenças individuais e coletivas do GEU, resultando também em artigos19 e participações em congressos.

30A minha tese, Conexões da Interculturalidade:  cidades, educação, política e festas entre Sateré-Mawé do Baixo Amazonas (2018), em franca inspiração com a Poeira de Cantor que estrutura o livro Partial Connections de Marilyn Strathern (1991), estrutura-se também como um fractal, apresentando cinco capítulos, com duas partes cada, com cinco seções cada parte. Apresento esta estrutura no índice da tese como uma estrela, com linhas que percorrem e interligam estas seções, partes e capítulos. Como anunciado no subtítulo da tese, cada um dos cinco capítulos corresponde a um tema: 1) Conexões parciais e suas implicações teóricas e metodológicas, tais como a pesquisa coletiva; 2) Antropologia Urbana, a cidade como invenção de antropólogues e como experimento indígena; 3) Implicações e políticas da educação indígena a partir da noção de interculturalidade como um dispositivo, em acepção foucaultiana do termo; 4) A presença indígena na universidade em sua formação em Licenciaturas e suas circulações e relações com outros agentes; 5) As festas e o modo como diferentes conhecimentos e relações são ali articulados e atualizados, incluindo eventos escolares e esportivos e o ritual da Tucandeira. As duas partes de cada capítulo promovem um efeito especular entre si, em que cada seção é também uma retomada de um desses cinco temas, à luz da perspectiva estabelecida no capítulo à qual pertence. Na última seção da tese, comparo sua tessitura a de um bordado, relacionando a prática de conhecimento da escrita aos teçumes Sateré-Mawé e aos bordados de minha avó.

31Os jogos compósitos operados em minha tese envolvem diferentes coletivizações e individuações, sempre na perspectiva cruzada da antropologia urbana e etnologia indígena, tomadas como saberes localizados, e que se estremecem no oxímoro da Etnologia Urbana. Assim, faço uma comparação no primeiro capítulo entre os trabalhos do GEU e de pesquisadores do Cesta que eu descrevo na próxima seção deste artigo; um retraçar no segundo capítulo da linhagem da antropologia urbana do NAU, guiado por trabalhos de José Guilherme Magnani e Lilian de Lucca Torres citados anteriormente, à luz do livro de Geraldo Andrello, Cidade do Índio (2006), e de outras pesquisas que tematizam a presença indígena em cidades; um debate nos capítulos 3 e 4 com análises sobre interculturalidade, também em diálogo com um sítio eletrônico/experimento realizado por pesquisadores do Cesta, de inspiração latouriana, e com dissertações e teses de diferentes regiões do Brasil que investigam a presença indígena na universidade; e no capítulo 5 um contraponto sobre festas entre a etnografia do GEU com os Sateré-Mawé, a tese de Rita Amaral (1998) sobre festas brasileiras e a livre-docência de Beatriz Perrone-Moisés (2015), do Cesta, sobre festa e guerra entre os povos ameríndios. Sobretudo, estas coletivizações envolvem contatos de pesquisadores do GEU e diferentes pessoas e coletivos Sateré-Mawé (famílias, clãs, turmas de estudantes, associações, professores da escola indígena Rosa Cabral, na aldeia Ponta Alegre) registrados nos cadernos de campo compartilhados. Contatos que envolveram auxiliar e participar de aulas, de festas e eventos, de encontros com diferentes agências do governo e outros pesquisadores, do preparo de roçados e de farinha, de brincadeiras e jogos de futebol, de rodas de guaraná ralado em água, bebida chamada sakpó, e refeições, viagens de barco, moto, avião (incluindo por duas vezes a vinda de acadêmicos da licenciatura indígena PROIND à USP), entre muitas outras atividades que compõem a tessitura da vida e da etnografia, e que operam os diferentes modos de criatividade de que fala Roy Wagner, em A Invenção da Cultura (1975).

32Não apenas a minha tese, como parte considerável das pesquisas e produtos do GEU entre 2013 e 2016 também resultaram de outras conexões parciais que o senso comum acadêmico chama de “interdisciplinares”. Refiro-me aos produtos escritos do GEU que figuraram como produções derivadas da parceria entre o NAU e o Núcleo de Estudos e Pesquisas nas Cidades da Amazônia - NEPECAB, ainda que as práticas coletivas de pesquisa de campo tenham se dado menos no plano dos temas das dissertações e teses individuais dos pesquisadores do GEU e mais nas expedições realizadas nos municípios da calha do Solimões acima listados, sobre as quais foram produzidos relatórios organizados em eixos temáticos: “habitação”, “economia, comércio e mercados”, “transporte”, “lazer e festas populares” e “religiosidade” (metodologia de eixos temáticos diretamente herdada da pesquisa sobre as Ocupações).

  • 20 O então mestrando da Ufam, Heitor Pinheiro, veio a São Paulo oferecer uma oficina de uso de GPS e o (...)

33Houve, no decorrer do projeto, configurações diferentes da parceria entre geógrafos do NEPECAB- Ufam e etnógrafos do NAU-USP, que envolveu realização de oficinas lá e cá20, custeio de viagens e equipamentos, alguma publicação em parceria, e práticas coletivas de pesquisa. Em 2013 em Manacapuru, primeira cidade da expedição, fomos pareados para explorar setores da cidade divididos pela própria equipe, de modo que houvesse uma educação da atenção recíproca entre praticantes de geografia e etnografia, arranjo que não se repetiu nas outras expedições. Uma situação de campo que se tornou emblemática em nossas narrativas posteriores foi a observação de um grupo de crianças jogando bolinhas de gude em uma esquina em Manacapuru. Enquanto eu conversava com as crianças, tentando aprender as regras do jogo e esboçar um mapeamento da rede de parentela e vizinhança pelas quais circulavam, meu companheiro mestrando da geografia atentava para a ausência de saneamento de esgoto e o risco de certas doenças no local da brincadeira, uma atenção para o diagnóstico da infraestrutura urbana. Conexões epistemológicas e políticas parciais, cujas lacunas diziam respeito não apenas a fronteiras disciplinares, mas às inserções institucionais e as responsabilidades dela decorrentes. Coletivizações que trazem responsabilidades e responsa-habilidades (na expressão de Haraway, 2016) distintas. Infelizmente, este aspecto das conexões parciais epistêmicas e políticas entre o NAU e o NEPECAB foi pouco explorado nos produtos escritos, lá e cá, e os diálogos arrefeceram com o tempo, ainda que algum contato informal se mantenha por redes sociais.

34De todo modo, modos de individualização e coletivização marcam tanto as nossas parcerias institucionais (com o NEAI e o PPGAS-Ufam enquanto parte do Departamento de Antropologia, Centro de Estudos Ameríndios e Núcleo de Antropologia Urbana da USP; com o NEPECAB-Ufam enquanto antropólogos urbanos da USP) quanto as nossas parcerias com os amazônidas e, em especial os Sateré-Mawé. Para estes, em especial, a noção relacional de parceria é enredada em suas próprias cosmopolíticas na qual não-indígenas tomam parte de composições com outras tantas alteridades, e se manifestam nos sujeitos pesquisadores e participantes da pesquisa, na construção de dados, nos produtos resultantes. Cada coletivização e individualização advém da conformação e do recorte de redes, procedimentos que ora explicitam conexões de pessoas, instituições, teorias, recursos, e seu fluxo, ora realizam cortes que produzem repositórios dessas conexões e instanciam produtos e pesquisadores individuados. Que podem, por sua vez, entrar em novos fluxos e nutrir novas conexões e redes.

Redes, circuitos, recortes e perspectivas parciais

35Parte do esforço de inteligibilidade das práticas do NAU e da noção de etnologia urbana empreendido em minha tese envolveu uma comparação entre pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Etnologia Urbana e pesquisas reunidas em uma publicação do Centro de Estudos Ameríndios (CestA) intitulada Redes de Relações nas Guianas (2005). O intuito era:

comparar esforços coletivos que enfatizam respectivamente os conceitos de rede e de circuito, tendo entre as suas preocupações por um lado a superação de um modelo atomista de grupos locais, e de outro a superação de um diagnóstico de desagregação e cristalização cultural de comunidades indígenas urbanas (Fiori, 2018, p. 48)

36Para tanto, tomei de partida o nome do grupo, Etnologia Urbana, não apenas como um chiste ante os Grandes Divisores da Antropologia brasileira que realizaram uma divisão do trabalho entre a etnologia ameríndia e a antropologia urbana (ou das “sociedades complexas”, expressão desmontada por Marcio Goldman e Tânia Stolze Lima (1999), mas propondo conexões parciais entre o trabalho até então realizado pelo NAU e os modos de pesquisar mundos ameríndios. O livro das Redes, reunindo pesquisas de orientandes de Lux Vidal e Dominique Gallois (uma interlocutora querida e importante e membro da minha banca de defesa) buscaram pensar tanto as relações intercomunitárias e interétnicas, quanto as relações entre os diferentes grupos indígenas e múltiplos agentes coloniais, por meio de conexões variáveis e diferentes formas pelas quais estes coletivos ameríndios “pensam e gerenciam suas relações entre o próximo e o distante” (Gallois, 2005, p. 10). Os mecanismos de abertura para o exterior observados impediam a delimitação de totalidades, uma vez que suas dinâmicas complexas de interação não estabilizam dimensões interna e externa, o que conduziu ao emprego da noção de rede, em sua acepção latouriana, apreendendo processos e espaços de tradução e mediação.

37O GEU, por sua vez, partiu de um recorte ao mesmo tempo étnico (pois após as primeiras caminhadas em Manaus um contato bem-sucedido fora estabelecido com as comunidades sateré-mawé no bairro da Redenção), temático (lazer e tempo livre, presença indígena nas cidades) e geográfico (Manaus e seus arredores, instanciados sobretudo na dissertação de Andrade, 2012), dado pelo nosso alcance em seguir os trajetos de nossos interlocutores em suas relações e atividades na cidade. No desenvolvimento das pesquisas, estes recortes foram sendo em alguma medida rompidos. Rodrigo Chiquetto voltou-se para o futebol e o campeonato amador Peladão, Ana Luisa Sertã de Almada Mauro para os circuitos das sementes e as associações de mulheres indígenas, José Agnello Andrade para questões de habitação e mobilidade, e o ritual da tucandeira, Yuri Bassichetto Tambucci para as redes de navegação fluvial e eu para a educação intercultural indígena.

38Estas pesquisas, cada qual com diferentes articulações, mobilizaram a categoria de circuito célebre entre as pesquisas do NAU como um modo espacializado de recortar redes, conforme seguíamos nossos interlocutores. Entretecia-se mobilidade e parentela, por meio de linhas e emaranhados (ver Ingold, 2007, 2011) de deslocamento de pessoas e turmas Sateré-Mawé (também identificadas pelo sufixo –zada, em português). Circuitos que emergiam de seus locais de parada de regularidades na produção de seus deslocamentos, modos de aliança, de de vida e de parentes, a partir de categorias dos próprios Sateré-Mawé. O retorno para o desenvolvimento de doutorado de Diana Paola Mateus Gomez, que dirigira os Memoriais Indígenas de Parintins e da aldeia de Ponta Alegre, trouxe um novo contexto etnográfico ao GEU, com relações floresta, aldeias e cidades na Colômbia, envolvendo indígenas, campesinos e citadinos nas redes cocaleras.

39Poder-se-ia pensar que cada um destes recortes de pesquisa (individuais a cada participante do GEU, mas valendo-se das observações de idas a campo individuais e coletivas de todes, a partir dos acessos a relatos de campo, fotografias e dos contatos e alianças estabelecidas como grupo), tal como os eixos temáticos das pesquisas anteriormente citadas, seriam um empreendimento analítico moderno, decompondo uma totalidade pré-existente em diferentes partes. Argumento na tese que, ao contrário, estes recortes são “a construção de uma perspectiva, que elicia certo conjunto de relações, e que podemos passar de uma perspectiva a outra diferenciando o conjunto de relações” (Fiori, 2018, p. 55).

40Desse modo, o olhar “de perto e de dentro” que é aprendido por meio da “educação da atenção” de que falei anteriormente, deixa patente a natureza corpórea da visão produzida pelo procedimento etnográfico que ainda hoje é chamado de “observação participante”, incluindo nossas expedições e caminhadas e outras formas de interação e interlocução, portanto de fala, escuta, comensalidade, etc. É possível reunir aqui a perspectiva ecológica ingoldiana com a crítica de Donna Haraway à metáfora da visão como distanciamento de um sujeito cognoscente de todos e de tudo, o “truque de Deus” (Haraway, 1995, p. 19). Donna Haraway nos exorta a:

vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos de modo a nomear onde estamos e onde não estamos [...] a objetividade revela-se como algo que diz respeito à corporificação específica e particular e não, definitivamente, como algo a respeito da falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades. A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. Esta é uma visão que abre, e não fecha, a questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas visuais. (HARAWAY, 1995, p. 21, grifo meu)

41Arnld Schneider (2011), ao discutir as relações entre etnografia e o cinema experimental, menciona a especulação de Marcel Griaule de uma etnografia panóptica, em que um grupo de observadores faria registros de diferentes posições e em diferentes interações durante um ritual fúnebre Dogon, de modo a construir um retrato sintético do ritual. Schneider, no esteio de outras produções que mobilizam o conceito de “montagem”, lembra os problemas políticos que uma visão panóptica, totalizadora traz consigo, considera a multiplicação de miradas como a construção de perspectivas parciais, lacunares e por vezes incongruentes, úteis também para revelar os mecanismos de produção de saberes, narrativas e posicionamentos. De modo semelhante, argumentei em referência a nossos trabalhos:

A visão que se produz é uma política de posicionamento, em que o eu cognoscente é parcial, inacabado, capaz de juntar-se ao outro sem buscar tornar-se o outro. Ou seja, não nos tornamos nem idênticos à uma perspectiva sateré-mawé, seja ela produzida pelos próprios Sateré-Mawé ou por nossas ficções sobre eles, nem tampouco nos colocamos em uma posição absoluta de antropólogos-de-São-Paulo, ou qualquer que seja o marcador. Levamos em conta nossas divisões e contraditoriedades, multiplicidades heterogêneas e simultâneas, não totalizáveis, que realizam conexões parciais com sujeitos e coletivos sateré-mawé em diferentes contextos. Perspectivas constroem-se a partir de e resultam em certas imagísticas, pelas quais as relações e conexões são tornadas visíveis. (Fiori, 2018, p. 55-6)

  • 21 Coincidentemente, Cantor também é um dos nomes de nosso orientador, José Guilherme Cantor Magnani.

42Conexões parciais criam novas posições, novas lacunas e novas questões, aproximando-se da imagem fractal da Poeira de Cantor21 que Strathern apresenta no início de Partial Connections (1991). Strathern nos lembra que os recortes, níveis e contextos de análise, bem como as unidades de comparação, não são automaticamente dados em campo, mas construídos por este saber localizado antropológico.

Talvez o problema real seja que frequentemente os níveis e contextos de análises dos antropólogos e antropólogas ao mesmo tempo são parte e não são parte dos fenômenos que eles e elas espera organizar com eles. Por causa da natureza de recortes cruzados das perspectivas que estabelecem, um [nível ou contexto] pode sempre ser engolido por outro.[...] Nenhum critério externo escapa à contaminação por significados locais. Seus atributos não podem ser contados assim como podemos percebê-lo como uma entidade separada dos propósitos para os quais foram feitos (Strathern, 1991, p. 75)

Considerações finais

43As pesquisas do NAU podem ser pensadas como artefatos compósitos, derivadas de incursões a campo e relatos individuais e coletivos, compartilháveis e partíveis em recortes de lógicas e taxonomias diversas, e que podem também ser expressos em linhas narrativas, em jornadas sujeitas às suas próprias montagens. Os elementos compósitos não são necessariamente simétricos ou mesmo totalmente compatíveis, mas permitem estender e desenvolver habilidades e modos de conhecimento. Magnani, em nossas convivências no NAU, costuma traduzir algumas dessas experiências junto ao zen budismo, aproximando os achados etnográficos (in loco ou que emergiam nos debates e escritos) de satoris, enfatizando o caráter de impermanência e incompletude de qualquer trabalho, como uma estética wabi-sabi, e, para além do estranhamento, a ruptura da lógica em um koan. Fazer etnografia e ler antropologia (ou qualquer outro trabalho) são, de algum modo, semelhantes a observar baleias, Magnani nos disse muitas vezes. Observar a superfície da água por longos períodos – tal como ler um texto difícil ou enfrentar as agruras do trabalho de campo – pode ser frustrante, exigir muita paciência, mas de repente uma baleia emerge e tudo faz sentido. A baleia que navega o oceano do anthropological blues.

44Em termos da antropologia urbana praticada no NAU, há uma premissa de que a repetição do olhar de perto e de dentro, a partir de diferentes recortes, realiza um procedimento de magnificação, que permite comparar esses arranjos coletivos na cidade, perceber conexões e assim construir descrições da cidade (Magnani, 2012a). Substitui-se a ideia de passar de uma escala a outra, da microanálise para generalizações, para a manutenção de escalas em um jogo de figura e fundo (Wagner, 1975). Seguindo Roy Wagner, as cidades que descrevemos são inventadas, produtos de trabalhos que envolveram criar taxonomias, enumerar variáveis e diferenças que podem ser, em alguma medida, ordenadas – como os fatores de Louis Wirth, de tamanho, densidade e heterogeneidade, os de Redfield em seu continuum folk-urbano, ou as discussões das últimas décadas sobre centralidade e periferia, gentrificação e segregação urbana, como as desenvolvidas pelo GEAC – Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade, coordenado pelo professor Heitor Frúgoli, também na USP.

45Na tese, defendo que fizemos um exercício de ficção especulativa (Haraway, 2016) próximo ao de Ítalo Calvino, em As Cidades Invisíveis (1972) – que Bruno Latour astutamente mimetiza em seu site-artefato sobre Paris – no qual Marco Polo se incumbe de contar ao Khan as improváveis cidades que conheceu em suas viagens. Marco Polo oferece ao Khan uma narrativa sequencial que nos leva a identificar as variáveis entre as cidades e a pensá-las tanto comparativamente quanto em sistema, enquanto acompanhamos a narrativa da jornada do aventureiro. Em nossa frota fractal do NAU, a fim de narrar nossas experiências e compará-las, atravessamos as lacunas entre as cidades – e entre nossas pesquisas - como uma jornada, que permite à frota, por exemplo, navegar entre o rio Pinheiros e o Amazonas.

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Notas

1 Renato Rosaldo indica, em Culture and Truth (1989, p. 31) como o Mito do Etnógrafo Solitário criou um gênero de descrição social, a etnografia, amparada pelo objetivismo da divisão do trabalho entre o etnógrafo “desapegado” e “seu nativo” e moldada pelo contexto do imperialismo e do governo colonial. Produzia-se assim uma cultura congelada, apta a ser objeto de conhecimento científico.

2 Ver Andrade, 2012, 2018, Mauro, 2015, e Fiori, 2018, para discussões realizadas por membros do GEU; ou FIGUEROA, 1997, para uma investigação mais clássica.

3 Além da tese, discuto estas questões em “Cosmopolíticas interculturais” (2021), escrito em parceria com Leandro Durazzo, que oferece o contexto etnográfico Tuxá.

4 O trocadilho entre as magnificações do big man e o nome Magnani, entretanto, é irresistível diante de nossa tradição de piadas infames, consagrada nos nomes de mesas e sessões do evento Graduação em Campo (ver Chiquetto, Tambucci, Teixeira, Mahe, nessa edição especial).

5 Não sei dizer se o intervalo de exatos 10 anos entre cada pesquisa usada como exemplo foi intencional.

6 Várias vezes, a festa de Corpus Christi em Santana de Parnaíba foi o locus de exercícios de etnografia conduzidos por Magnani com suas turmas das disciplinas de Pesquisa de Campo em Antropologia e Práticas Culturais no Contexto Urbano, quando realizadas no primeiro semestre. No segundo semestre, o exercício era feito em cemitérios no Dia de Finados.

7 Para uma atualização da discussão da categoria de pedaço, ver Toledo e Spaggiari, nessa edição especial; para a categoria de circuito, ver Magnani, 2014.

8 Participei da concepção e dos pilotos dos projetos do SESC (iniciado por uma oficina da qual também participou Mariane Pisani) em 2014 e do CEU (realizando oficinas em seis CEUs em parceria com Enrico Spaggiari) em 2018, levados a termo posteriormente por uma equipe reconfigurada, com ajustes metodológicos. Há que se pensar que a publicização de algumas coletivizações também leva a alguns apagamentos, intencionais ou não, mas que tem uma curiosa incidência desproporcional de gênero.

9 Uma empresa de consultoria em pesquisa fundada por membros do NAU.

10 O livro menciona, em um mesmo parágrafo, o subgrupo NAU Jovens que reuniu um grupo de pesquisas em nível de graduação, mestrado e doutorado investigando práticas como pixação, raves, forró, straight edges, com alguns resultados figurando na coletânea Jovens na Metrópole (2007) e em artigos na Ponto Urbe e outros periódicos, além das próprias dissertações e teses (Ver artigo de Alexandre Barbora Pereira, nessa edição especial), e o subgrupo NAU Surdos (depois Grupo de Estudos da Surdez e Deficiência), iniciado a convite de parceria por linguistas da FFLCH/USP e que ganhou vida própria, tendo como principais resultados o doutorado de César Augusto Assis Silva (2010), Entre a deficiência e a cultura: análise etnográfica de atividades missionárias com surdos, publicado como livro com o título de Cultura Surda (2012) pela coleção Antropologia Hoje, e a dissertação de Cibele Assênsio (2015), que hoje realiza doutorado sob orientação de Silvana Nascimento (ver artigo de César Augusto Assis Silva e Cibele Assênsio nessa edição especial).

A menção rápida e com poucas consequências para o desenvolvimento do argumento de Etnografias Urbanas, a despeito do quanto até hoje serem provavelmente as duas linhas de pesquisa pelas quais o NAU é mais reconhecido no campo da antropologia brasileira, pode ser compreendida em parte por esta recomposição geracional na qual os autores referem-se com mais ênfase às pesquisas nas quais de fato participaram, coletivizando-se como pesquisadores do NAU para os quais há um caráter mais explícito da dimensão coletiva da pesquisa de campo, e deixando ao fundo – como ecos de iterações anteriores com efeitos fractais - outros coletivos do NAU cujas reflexões metodológicas e produtos explicitaram-se a partir de recortes mais individualizantes, ainda que remissões reciprocadas e agradecimentos mantenham algo do coletivo e o uso das práticas de pesquisa do NAU e da família de categorias proposta por Magnani garantam alguma linhagem, homogeneidade e comparabilidade.

11 O programa Ensinar com pesquisa à época envolvia remuneração mensal de R$300,00 por um ano, para estudantes preferencialmente a partir do 3º semestre de graduação e com renda familiar de até R$1500,00.

12 Caberia escrever mais sobre as justaposições de contexto e construção de autores, leitores e “nativos” (participantes de pesquisa, para utilizar a terminologia sancionada pelos Comitês de Ética em Pesquisa com seres humanos) nos exercícios etnográficos da pedagogia antropológica dos cursos de graduação.

13 De fato, a materialidade do acervo (a enorme estante que ocupa), junto com as atividades da revista Ponto Urbe e da organização do Graduação em Campo fez parte das estratégias de reivindicação do espaço físico para o NAU, antes mesmo de o convertermos em LabNAU com a redação de um estatuto e alguns trâmites burocráticos. Creio que Bruno Latour se divertiria com estes relatos da nossa Vida de Laboratório.

14 Algumas questões desse projeto estão antecipadas em Schor e Oliveira, 2012.

15 Prestes a defender a tese de doutorado “Y después de la coca, ¿qué?” Substituição de cultivos no Putumayo colombiano, sob orientação de José Guilherme Magnani.

16 Não apenas plurais, no sentido da soma de esforços de diferentes indivíduos diferentemente situados, mas em várias formas de acoplamentos nas etapas do processo, que transformam habilidades e modos de percepção e ação.

17 Disponível para download no site do Departamento de Antropologia da USP. https://antropologia.fflch.usp.br/files/inline-files/materiais_didaticos/cartilha-satere-alta.pdf

18 O antropólogo e cineasta Jean Rouch (1917-2004) produziu uma série de pesquisas e filmes em contextos africanos, tais como Mali, Níger, Gana e Costa do Marfim. Rouch experimentou diferentes formas de colaboração com seus interlocutores, da exibição das imagens captadas para que opinassem à formação de equipes em que temas, roteiros, personagens eram construídos conjuntamente. Sua obra envolve desde o filme transe Os Mestres Loucos (1955), à etnoficção Petit à petit (1968-1970)

19 Que, no meu caso, incluem coescritas com um dos acadêmicos Sateré-Mawé, Josias Ferreira de Souza (sobre a pandemia, ou seja, já depois do doutorado; ver Souza e Fiori, 2021), e com outro antropólogo também pensando conexões interculturais e cosmopolíticas, Leandro Durazzo, que realizou etnografia com os Tuxá (ver Fiori e Durazzo, 2021).

20 O então mestrando da Ufam, Heitor Pinheiro, veio a São Paulo oferecer uma oficina de uso de GPS e o software de georreferenciamento QGis no final de 2012, por exemplo. Alguns membros do NAU incorporaram seu uso em seus trabalhos.

21 Coincidentemente, Cantor também é um dos nomes de nosso orientador, José Guilherme Cantor Magnani.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Ana Letícia de Fiori, «Quando o campo é coletivo: a frota fractal do NAU e suas práticas de etnografia coletiva»Ponto Urbe [Online], 32 | 2024, posto online no dia 25 outubro 2024, consultado o 17 fevereiro 2025. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/16974

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Autor

Ana Letícia de Fiori

Doutore em Antropologia Social pela USP. Professore na Universidade Federal do Acre.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6264-2370

Email: morgotia@yahoo.com.br

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