Os desafios da economia solidária
Texto integral
1Necessidades sociais de natureza mais elementar, tais como o emprego, os consumos básicos ou a segurança social, voltaram a tornar-se preocupação quotidiana de milhões e milhões de cidadãos de todo mundo, incluindo os daqueles países que se dotaram de sistemas de protecção mais avançados.
2A falência dos sistemas de protecção – desde os mais eficientes aos mais rudimentares, associada às mutações do capitalismo nesta fase de intensa globalização e às reformas dos sistemas de protecção social dos Estados nacionais – deu lugar ao aparecimento de novas formas de organização da sociedade civil para dar resposta a essas necessidades. Neste processo, as antigas formas organizativas, tais como as cooperativas, têm sido o suporte da experimentação de novas práticas e novas configurações jurídicas, muitas vezes difíceis de classificar devido ao seu hibridismo, mas sempre sujeitas ao mesmo princípio da solidariedade.
3Solidariedade é, assim, um dos atributos que cientistas sociais associam a estas dinâmicas emergentes e economia solidária é uma expressão que se está a afirmar em muito lado para designar estas formas – velhas ou novas – de satisfazer as necessidades económicas e de existência sem passar pelo mercado ou pela sua lógica competitiva.
4Porém, e sem entrar em detalhes sobre o conceito, tem de se reconhecer que a designação de Economia Solidária está ainda pouco difundida entre os portugueses e ainda soa estranha para muitos. Paradoxalmente, a economia solidária, em Portugal, parece estar a sofrer um processo rápido de institucionalização mesmo antes de se ter constituído como uma realidade pujante. Na verdade, ela já entrou no discurso de alguns agentes políticos e é usada a torto e a direito por eles como uma fórmula mágica que estimula as populações mais marginalizadas a resolverem os seus próprios problemas.
5E, estando ainda em curso o amadurecimento desse conceito, compreende‑se que alguns o identifiquem com a economia social, tal como esta é entendida na Europa, nomeadamente, pelas instâncias da União Europeia. No mesmo sentido, no caso português, a economia solidária pode ser encarada como correspondendo, no essencial, ao “sector cooperativo e social”, previsto na Constituição como distinto, quer do sector público, quer do sector privado.
6Referir aqui o paradoxo da apropriação ou institucionalização da economia solidária em Portugal serve apenas para fazer sobressair os riscos que existem de degeneração do conceito. Tratando-se de uma designação ampla, com entendimentos eventualmente diferenciados em função dos contextos nacionais, o conceito de economia solidária presta-se bem a uma análise comparativa pelo facto de centrar a sua definição num atributo das relações sociais – a solidariedade – bem demarcável do padrão dominante dessas relações no campo económico.
7Como algumas investigações levadas a cabo em países com diferentes graus de desenvolvimento económico demonstraram, os fenómenos de dinamismo e mobilização da sociedade civil assumem características distintas, fruto do seu enquadramento em realidades sociais e económicas diferenciadas. Contudo, a comparação das experiências ocorridas em contextos diferentes é muito rica. Ela ajuda a compreender, desde logo, o modo como as lógicas de cooperação solidária se podem plasmar em diferentes configurações práticas sem perder a sua força; depois, permite detectar como os mesmos factores globais podem desencadear respostas distintas de acordo com as especificidades nacionais; ainda, ajuda a compreender a importância que têm, no processo de desenvolvimento da economia solidária, factores como a cultura participativa da sociedade civil, o grau de autonomia desta face ao Estado ou o papel dos movimentos sociais na procura de soluções alternativas à economia baseada na competição.
8Foi com estas preocupações que o CES organizou o seminário Desafios da economia solidária em Janeiro de 2008. O desafio consistia em abordar uma realidade nova, com contornos ainda não claramente delineados e muito diversa na sua morfologia, que se apresentava como uma alternativa ao modelo dominante das práticas económicas e sociais de cunho individualista moldadas pelo capitalismo. Desafio era também a troca de conhecimento e de experiências práticas entre dois países – Portugal e Brasil – simultaneamente próximos – pela sua língua, matriz institucional e lugar intermédio no sistema mundial – e distantes, pela sua localização geográfica, diversidade cultural e heranças históricas.
9Neste seminário a economia solidária foi escrutinada de diversos ângulos e perspectivas: de uma perspectiva teórico-epistemológica, discutindo questões como a do lugar dos saberes popular e militante na construção do objecto, a da construção conceptual e escolha dos atributos, a do enquadramento analítico do fenómeno ou a das metodologias de estudo; de uma perspectiva socio-política, discutindo as condições de emergência dos empreendimentos solidários, os modos de articulação e auto-regulação do campo da economia solidária, o papel dos actores e promotores externos (sindicatos, partidos, ONGs, movimentos eclesiais, etc.), a condição de movimento social ou os efeitos do reconhecimento institucional; e, de uma perspectiva comparada, discutindo as experiências brasileira e portuguesa, os sucessos e as dificuldades da economia solidária nestes países, tendo em conta a sua diferente pertença a espaços ou organizações de âmbito supranacional.
10O presente número da Revista Crítica de Ciências Sociais vem agora trazer a público um conjunto de textos que fixaram as intervenções havidas no seminário e que reflectem as preocupações e as perspectivas acima enunciadas.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Pedro Hespanha e Rui Namorado, «Os desafios da economia solidária », Revista Crítica de Ciências Sociais, 84 | 2009, 3-5.
Referência eletrónica
Pedro Hespanha e Rui Namorado, «Os desafios da economia solidária », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 84 | 2009, publicado a 01 dezembro 2012, consultado a 14 fevereiro 2025. URL: http://journals.openedition.org/rccs/536; DOI: https://doi.org/10.4000/rccs.536
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