1A pessoa ou personalidade é um tema de pesquisa ainda muito atual e, embora muitas correntes diferentes o tenham como ponto de partida, é indispensável investigar as fontes e traçar a história de um conceito tão fundamental. Esta pesquisa começou, por assim dizer, de trás para frente, isto é, com o filósofo alemão F. H. Jacobi, uma voz decisiva no panorama filosófico da década de 1790. Juntamente com outros autores de sua época (sobretudo Hamann e Herder), ele desponta como um crítico ferrenho do Iluminismo e é imediatamente rotulado como fanático por discordar das teses essenciais dos filósofos iluministas de Berlim. O que de fato distingue Jacobi deles é o significado especial que ele atribui à filosofia. Para ele, filosofia só pode ser pessoal, só pode ser história. Com isso, ele tenta resgatar um significado antigo, originalmente grego, de filosofia: filosofia como um modo de vida, uma escolha de vida ou uma arte de saber viver, segundo as recomendações do primeiro filósofo de todos os tempos: Sócrates. Essa posição de Jacobi fica particularmente clara quando comparada com a intenção oposta de Kant de fazer uma "história filosófica da filosofia", que seria a priori e a-histórica (não empírica), uma "arqueologia da razão pura". Tendo em vista as diferentes perspectivas sobre o próprio significado de filosofia – sobre a “Weltweisheit” (φιλοσοφία), como era traduzida até o século XVIII – a pergunta que nos cabe fazer é: como a história da filosofia deve ser entendida? Ou ainda: qual é a tarefa do historiador da filosofia? Para respondê-las é preciso entender como se conectam três conceitos principais: pessoa, história e filosofia.

2Kant apresenta seu conceito de história filosófica da filosofia de forma bastante clara em suas anotações manuscritas (lose Blätter F5 ou “folhas soltas”) da seguinte forma:

3“Uma história filosófica da filosofia não é, ela mesma, histórica ou empírica, mas racional, isto é, possível a priori. Pois, embora apresente fatos da razão, ela os toma emprestado não da narrativa histórica, mas os retira da natureza da razão humana enquanto arqueologia filosófica” (Kant, Loses Blatt E31, AA 23: 341).

7A filosofia viva é, portanto, incapaz de criar sua própria matéria e deve necessariamente tomá-la emprestada da história. Consequentemente, cada época tem sua própria verdade particular e cada posição filosófica é necessariamente uma escolha pessoal que constitui uma história da opinião. No tratado “Efusões casuais de um pensador solitário” (Zufälligen Ergießungen eines einsamen Denkers) de 1793, Jacobi oferece uma nova interpretação da doxa, que no decorrer da história da filosofia muitas vezes foi desvalorizada e até mesmo contrastada com o conhecimento verdadeiro. Ele recomenda que façamos um exercício mental hipotético: imaginemos que todas as nossas opiniões fossem destruídas, que fôssemos despojados de todos os nossos pensamentos, ideias, sensações, julgamentos e inclinações. O que restaria? Um princípio de vida vazio, sem individualidade, uma mera abstração. A identidade e a vida da pessoa também seriam destruídas e eu deixaria de ser eu mesmo. Seria apenas um eu abstrato.

8Assim como não existe alma sem corpo, não é possível um pensamento sem alguém que pensa. Jacobi aponta para a dependência entre o pensamento e a pessoa, ou seja, para a impossibilidade de se abstrair ou ir além de nosso eu concreto e encontrar um princípio de subjetividade universalmente válido com o qual se poderia construir uma filosofia pura. Essa nova apreciação da doxa corresponde, por sua vez, à ideia de que a verdade só é expressa individualmente e de um ponto de vista pessoal, já que ninguém possui a verdade absoluta e nunca a alcançará. A verdade absoluta seria precisamente a ausência de ponto de vista, já que englobaria todos eles. Não por acaso, para Fichte a filosofia é a ausência de ponto de vista (um entrar em si mesmo). Inversamente, para Jacobi filosofia é a afirmação de um ponto de vista (um sair de si mesmo) e, como resultado, deve haver tantos pontos de vista quanto há pessoas no mundo. A principal tarefa ou meta da filosofia não é definir o limite do conhecimento ou da razão, nem construir um sistema de uma só peça, mas levar uma vida virtuosa, harmoniosa e exemplar, em que o ser e a aparência, as palavras e as ações sejam consistentes e inseparáveis.

9O pensamento de Jacobi pode parecer um tanto estranho e inusitado quando comparado às tendências de sua época (especialmente à filosofia transcendental e ao período pós-kantiano) e, de fato, ainda hoje ele é subestimado por essa mesma razão, pois segue uma direção completamente diferente. Esse caminho começa com Sócrates, passa pelo estoicismo e culmina em Cícero. Jacobi faz referência ao estoicismo e a Cícero em suas obras, mas é mais provável que tenha tomado conhecimento dessas ideias indiretamente por meio do Iluminismo britânico (por meio de Hume, Thomas Reid, Ferguson, Shaftesbury etc.), período que ele estudou com afinco e conhecia como ninguém. Tal caminho é essencial para mostrar como a vida e a pessoa se identificam na Antiguidade e em que ponto começam a se distanciar e se separar na Modernidade. Com isso, talvez se possa compreender que a palavra filosofia não significa necessariamente sempre o mesmo, afinal se houvesse apenas uma filosofia, não precisaríamos mais filosofar. Jacobi se opõe justamente à tendência que vê nascer a partir de Aristóteles de identificar filosofia e ciência.

10Na Antiguidade, há uma distinção fundamental entre duas palavras gregas: biós (βίος) e zoon (ζῷον). A primeira se refere ao modo de vida, a segunda é a vida biológica que todos os seres vivos têm em comum. No livro “A arte de viver” (The Art of living, 2003), John Sellars explica de forma clara como o modo de vida (bios) e, portanto, a biografia, a anedota, era considerado o material filosófico mais autêntico na Antiguidade, já que a anedota contém e revela o ensinamento vivo de uma pessoa em suas ações. Em uma biografia da Antiguidade o objetivo era apresentar o ethos, ou seja, o caráter de um determinado indivíduo, e não apenas acumular fatos da vida; seu foco era compreender os próprios filósofos em suas atitudes e não suas filosofias enquanto doutrinas. Assim, a tarefa do estudante de filosofia não era aprender muitos conceitos ou argumentos, mas sim ser capaz de modificar seu caráter e sua própria vida; transformar suas palavras em ações e viver harmoniosamente.

11Ações no lugar de palavras (erga ou logoi - Ἔργα οὐ λογοι). As ações de um filósofo revelam muito mais sua posição, seu caráter do que apenas aquilo que ele diz. Esse é o cerne da filosofia de Sócrates: ele nunca disse explicitamente o que queria dizer. Ele é virtuoso, embora não possa explicar a virtude; ele é sábio, embora não saiba nada. Mas como isso é possível? Mostrando aquilo em que ele acredita com suas ações e seu modo de viver. Como resultado, Sócrates sempre foi o modelo para todas as diferentes escolas da Antiguidade, tanto para os estoicos quanto para os epicuristas e acadêmicos. “Tente ser como Sócrates” era o lema de todos os filósofos. Nesse contexto, a filosofia se desenvolve como uma arte de viver, de viver virtuosamente.

12Portanto, a doutrina filosófica deve ser comprovada pelo modo de vida do filósofo. E essa convicção era tão forte, que quando Cícero refuta Epicuro em De finibus, seu argumento mais taxativo consiste em dizer que o próprio Epicuro não vivia de acordo com seus ensinamentos. Epicuro era um homem que vivia de acordo com a virtude e o dever, embora ensinasse o prazer como único princípio. Isso, por si só, seria uma prova clara de que suas ideias não têm fundamento. Cícero acrescenta: “Há muitos que vivem de modo tal, que seus ensinamentos são refutados por suas vidas; e se de outros se diz que falam melhor do que agem, estes [os epicuristas] me parecem agir melhor do que falam” (Cícero, De finibus II, 80; 1988, p. 141).

Também é preciso reconhecer que a natureza nos confiou, por assim dizer, dois papéis [pessoas]. Um deles é comum, porque todos nós compartilhamos a razão e a primazia pela qual somos superiores aos animais, da qual deriva tudo o que é honroso e adequado e da qual se desenvolve o método para encontrar a ação correta. O outro é o papel atribuído particularmente a cada um. (Cícero. De officiis, III, 7. 1994, p. 91,93).

14Na verdade, “honroso” e “adequado” na tradução correspondem aos termos honestum e decorum, algumas das palavras mais importantes nos escritos morais e éticos de Cícero. Honestum também é frequentemente traduzido simplesmente como moralidade ou bem moral e decorum como propriedade ou adequação. Assim, todos devem conhecer sua própria natureza, de modo que possam encontrar o que é apropriado ou harmonioso entre a natureza comum e a sua própria natureza. É dessa noção que deriva o método de conhecer os próprios deveres.

15Tal decoro é a uniformidade da vida em atos e nunca é alcançado se ignoramos nossa própria pessoa ou imitamos a dos outros. Devemos conhecer nossa própria natureza minuciosamente (a exigência délfica “conhece-te a ti mesmo” retorna aqui) e ser juízes de nossas habilidades e vícios para escolher a ocupação e o ofício (officium) que melhor se adaptam a nossos talentos e inclinações e que melhor promovam o bem comum ou bem público.

17De acordo com a interpretação de Panécio, a ênfase recai sobre o que torna as pessoas diferentes e não sobre o que as torna semelhantes; a igualdade ou identidade humana não é a razão pela qual todos têm os mesmos deveres morais ou podem realizá-los. Ao contrário, a razão para tal deve ser buscada em outra premissa: na diferença natural de todas as pessoas, uma vez que o indivíduo concreto é criado a partir da confluência e conexão das duas pessoas, a geral e a particular. A igualdade no sentido de direitos iguais não consiste na eliminação das diferenças ou na universalidade, mas na legitimação das próprias diferenças, pois são elas que de fato unem as diversas pessoas em um mesmo desejo natural de realizar o bem comum, isto é, no desejo de conduzir a própria natureza em harmonia com a natureza comum e a felicidade dos outros. Se a diferença e a diversidade são a possibilidade de buscar o que é comum, temos um caminho absolutamente diferente daquele que a filosofia kantiana percorrerá, já que ela – e depois seus seguidores, sobretudo Fichte – enfatiza a universalidade e, para isso, deve descartar a pessoa e a diferença, o particular. Jacobi, por sua vez, segue precisamente esse caminho esboçado por Panécio e desenvolvido por Cícero.

18O que é singular na concepção de Panécio sobre a pessoa é a concretude e a especificidade que ele dá à harmonia estoica (homologia), pois para Zenão homologia era o estado no qual tomamos as decisões de acordo com as máximas irrefutáveis do Logos. Max Pohlenz descreve com muita propriedade essa transformação da ética estoica clássica:

É somente da interação desses quatro fatores [as quatro pessoas já mencionadas] que surge a personalidade do indivíduo concreto, e todos eles pertencem às condições naturais segundo as quais ele deve organizar sua vida se quiser evitar a discórdia interior, alcançar a harmonia da alma e a constância da conduta e cumprir seus deveres morais. Assim, pela primeira vez, a justificativa moral da personalidade individual é reconhecida... (Pohlenz , 1947, p. 201)

20Com o conceito de pessoa cunhado por Panécio é possível pensar uma unidade entre geral e particular em cada um, a unidade entre a humanidade universal e a pessoa particular, uma unidade que não elimina o particular, pois não se trata de impor uma harmonia universal a todos ou encontrar um princípio universal, mas de conhecer a si mesmo como indivíduo e realizar seu dever ético e político da melhor maneira possível na sociedade. O ideal abstrato estoico do sábio ganha um contorno histórico e concreto.

A grande e até mesmo a única pedra de escândalo contra toda a nossa crítica seria a possibilidade de demonstrar a priori que todos os seres pensantes são, em si, substâncias simples e que, enquanto tais (o que é uma conseqüência desse mesmo argumento), a personalidade lhes é, por conseguinte, inseparavelmente inerente e têm consciência da sua existência separada de toda a matéria (Kant, KrV, AA 04: B409-B410).

22Do ponto de vista metafísico, Jacobi se vale da Monadologia leibniziana para elaborar seu conceito de pessoa não apenas como a união indissociável entre alma e corpo, mas sobretudo para salientar a união entre individualidade e identidade, essência e existência, já que somente na vida empírica podemos falar de um eu verdadeiro. Qualquer outro “eu” é uma ficção intelectual. Sendo assim, um ser existente em ato é sempre individual e particular, ao contrário todo universal é desprovido de existência, já que nada mais contém senão determinações intrínsecas comuns a inúmeros indivíduos. A individualidade, sem a qual não há existência, é o cerne do pensamento de Jacobi e sua arma contra a filosofia transcendental não apenas de Kant, mas também de Fichte. A importância da existência individual é cristalina em um trecho relativamente conhecido de uma carta que escreve a Jean Paul:

• 8 O texto original é um jogo de palavras de Jacobi. O pronome derselbe/dasselbe é nominalizado na for (...)

Individualidade é um sentimento fundamental; individualidade é a raiz da inteligência e de todo conhecimento; sem individualidade não há substancialidade, sem substancialidade, em toda parte nada. (...) Puro egotismo é puro este mesmo [Derselbigkeit] sem o este [Der]. Este ou aquele é necessariamente sempre um indivíduo. Portanto, substancialidade está absolutamente no fundamento da identidade, e a individualidade no da substancialidade” (JBW I/12, p. 207-208).8

23Portanto, Jacobi se coloca em oposição total a Kant. Em um trecho de sua carta ao filósofo de Königsberg, ele afirma que, de acordo com a doutrina de Kant, a natureza (o representado em geral) ganha a forma da nossa faculdade interna de representar, “eu, ao contrário, estou mais inclinado a buscar a forma da razão humana na forma geral das coisas”. Consequentemente, Jacobi rejeita qualquer filosofia enquanto ciência, uma ciência que não reconhece nada acima de si mesma, mas é e produz tudo em si, uma ciência que quer ser Deus e acaba inevitavelmente no niilismo (JWA 1,1, 344).

25Por fim, assim como a sabedoria socrática se caracterizava pela harmonia entre palavras e ações, Jacobi recomenda ao seu leitor: “Pareça ser sempre o que você é e seja sempre o que parece ser” (JWA 1,1, 142). Como Cícero, Jacobi também poderia dizer que a filosofia tem a tarefa de nos conduzir a uma vida feliz, mas cada um interpreta a eudaimonia à sua maneira e é exatamente aí que reside a diversidade da humanidade.

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33KANT, I. Abteilung III: Handschriftlicher Nachlass. Lose Blätter zu den Fortschritten der Metaphysik. Loses Blatt E 31.

34HADOT, Pierre. Exercices spirituels et philosophie antique. Paris: Albin Michel, 1993.

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39Vol. 1,1: Schriften zum Spinozastreit; 1,2: Anhang, hrsg. von Klaus Hammacher, Irmgard-Maria Piske, 1998.

40Vol. 2,1: Schriften zum Transzendentalen Idealismus; 2,2: Anhang, hrsg. von Walter Jaeschke, Irmgard-Maria Piske, unter Mitarbeit von Catia Goretzki, 2004.

41Vol. 3: Schriften zum Streit um die gottlichen Dinge und ihre Offenbarung und Anhang, hrsg. von Walter Jaeschke, 2000.

42Vol. I, 1,1: Die Denkbücher Friedrich Heinrich Jacobis, hrsg. von Sophia Victoria Krebs, 2020.

43Vol. I, 1,2: Die Denkbücher Friedrich Heinrich Jacobis, hrsg. von Sophia Victoria Krebs, 2020.

44PANÉCIO, “Panezio. Testimonianze e frammenti”, A 81, ed. Emmanuele Vimercati. Milano: Bompiano, 2002, p. 117.

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47POHLENZ. “Die Stoa. Geschichte einer geistiges Bewegung”, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht: Herbert & Co, 1947.

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51______________. L’uomo greco. Tradução de Beniamino Proto Milano: Bompiani, 2006.

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