- 1 Expressão utilizada no Filme M8 : quando a morte socorre a vida (Jeferson De, 2020). No Entanto, u (...)
- 2 Expression employée dans le film M8 : quando a morte socorre a vida (« M8: quand la mort porte sec (...)
- 3 Expression used in the movie M8 - Quando a Morte Socorre a Vida (M8 - When Death Helps Life, Jefer (...)
- 4 Expresión utilizada en la película M8 : quando a morte socorre a vida (M8: cuando la muerte socorr (...)
[...] Não vão nos matar agora porque ainda estamos aqui [...] E nada disso é fácil, nada disso é sem dor e desconforto. Ao tatear a possibilidade de uma coletividade forjada no movimento improvável de um estilhaçamento, vai ser sempre necessário abrir espaço para os fluxos de sangue, para as ondas de calor e para a pulsação da ferida. Politizar a ferida, afinal, é um modo de estar juntas na quebra e de encontrar, entre os cacos de uma vidraça estilhaçada, um liame impossível, o indício de uma coletividade áspera e improvável. Tem a ver com habitar espaços irreparáveis, avançar sobre caminhos instáveis e estar a sós com o desconforto de existir em bando, o desconforto de uma vez juntas, tocarmos a quebra umas das outras. (Mombaça, 2021: 13-26).
- 5 A palavra Loop é de origem da língua inglesa que significa “circuito” ou “sequência” na tradução p (...)
1Não vão nos matar ! Foi esse o grito de desconforto e indignação que demos assim que terminamos de assistir os filmes M8 : Quando a vida socorre a morte e “Dois Estranhos”. O primeiro, um longa-metragem do cinema brasileiro, que conta a história de um jovem negro, candomblecista e periférico que ingressa na Universidade Federal de Medicina do Rio de Janeiro por meio de Políticas de Ações Afirmativas e, em sua primeira aula de anatomia, se depara com um cadáver de um jovem também negro sob a identificação de “M8”; o segundo, um curta-metragem norte americano que, com base na morte de George Floyd e de diversas outras histórias de agressão à população negra, apresenta um jovem negro que, asfixiado numa teia do racismo estrutural, encontra-se preso no loop temporal5 de uma história de violência policial, onde o mesmo dia segue se repetindo e, independente das estratégias que este jovem negro crie para não morrer, no final ele acaba sempre morrendo.
- 6 O Termo “genocídio” tem sido muito utilizado nas análises sobre a violência antinegra no Brasil. N (...)
2Os dois filmes além de abordar questões enfrentadas por todas/os nós negras/os, a exemplo do racismo institucional, questões referentes à interseccionalidades (de raça, gênero, sexo, classe, religiosidades) (Collins & Bilge, 2021 ; Davis, 2016), políticas afirmativas de ingresso e permanência nas universidades públicas do Brasil, violência policial e necropolítica, nos suscitou os seguintes questionamentos retóricos : a quem interessa a política de morte a corpos pretos/as? Como evitamos este genocídio6, uma vez que, num loop temporal, o racismo sempre consegue alcançar e alvejar o corpo negro/a? Como lutar para existir numa sociedade em que a cor dos nossos corpos carrega a inexistência social ?
3Violências físicas e sistêmicas, exclusão social, espancamentos, encarceramento em massa, espetacularização das mortes, genocídio, feminicídio, estupro, negligência hospitalar, ecogenoetnocidio (Arboleda Quiñonez, 2018), intolerância à religiosidade de matriz africana são alguns dos muitos problemas que a população negra enfrenta no Brasil. Problemas atuais que possuem suas raízes vinculadas ao projeto de modernidade, que ao colocar a Europa como centro do mundo, criou marcadores brutais de civilização com ideias a partir da concepção de raça, língua, religião, gênero, cultura entre outros, que legitimaram e continuam legitimando outros povos como atrasados, primitivos e selvagens (Maldonado-Torres, 2019). Marcadores que estabelecem e mantêm a estrutura da matriz colonial tendo como principais fundamentos as formas racializadas das relações de produção que definem as bases da colonialidade do saber, do poder e do ser no mundo moderno (Fernandes, 2020).
4A colonialidade, nascida do colonialismo, mantém um padrão de poder global, que naturaliza a violência, perpetrada contra os povos colonizados, contribuindo para o atraso social, o aniquilamento do imaginário dos diversos povos, das suas culturas, das suas línguas e das suas representações simbólicas, bem como para a manutenção e a propagação das desigualdades, violências, necropolítica e injustiças sociais. Necessário salientar que as políticas de morte, uma violência sócio-histórica da racialização e da total expropriação de valor (Mbembe, 2017), está relacionada à colonialidade do poder, em que seus princípios e procedimentos desumanizadores e cruéis foram forjados a partir da expropriação colonial apoiando-se no processo de escravidão dos povos africanos. Este é o processo político-econômico e jurídico que inventa o ser “negro” não como sujeito, mas como coisa. Processo em que a população negra perde o estatuto de pessoa e é transformada em corpos-objetos, corpos-mercadorias e corpos-moedas na fronteira entre vida e morte (Borges e Fernandes, 2018).
- 7 Para aprofundamentos consultar Balibar, Étienne & Wallesrstein, Immanuel, 2021. Raça, Nação, Class (...)
- 8 Para aprofundamentos consultar Ferreira Da Silva, Denise, 2019. A Dívida Impagável. Tradução Amilc (...)
5Da afluência entre o chamado conhecimento científico e a expropriação colonial surge uma projeção dos delírios organizados pela razão universal eurocêntrica7, uma atuação que Mbembe (2017) vai chamar de “razão negra” e Denise Ferreira da Silva (2019), chamará de “negridade”. A “razão negra” é todo um conjunto de discursos e de práticas que incidem em arquitetar, descrever, reproduzir como também fazer circular fórmulas, textos, rituais, com o objetivo de inventar o Negro como sujeito de raça e exterioridade selvagem, passível de desqualificação moral e de instrumentalização prática (Mbembe, 2017 : 58). Já a “negridade”, é todo um conjunto específico da racialidade-colonialidade em que, como episteme moderna e colonial, a tarefa da “racialidade” é anunciar em uma classificação de igualdade/desigualdade e identidade/diferença os efeitos temporais daquilo que Hegel chamou de “capacidade produtiva da razão universal” entre os coletivos humanos (Ferreira Da Silva, 2019 : 104)8. A negridade “[...] não possuí poder emancipatório justamente por funcionar como um significante da violência que, ao ser mobilizado com sucesso, justifica o que seria, do contrário, inaceitável, como o assassinato de pessoas negras por meio da violência (estatal) policial” (Ferreira Da Silva, 2019 : 145).
6Portanto, quando falamos que “vidas negras importam”, somos levadas a pensar sobre a materialidade desta vida e sua humanidade, pois tanto na análise feita por Mbembe (2017), quanto na equação de valor ético feita por Denise da Silva (2019), a vida da população negra ocupa o lugar da vida negativa, ou seja, da vida que não tem valor. É desta forma que as políticas de morte aos corpos negros foram/são asseguradas pelos parâmetros da Racialidade.
7Sabemos que “todo racismo histórico é ao mesmo tempo institucional e sociológico” (Balibar e Wallerstein, 2021 : 78), como também entendemos que não tem como discutirmos o racismo sem abordarmos o sexismo. Deste modo, politizar a ferida colonial, que é o racismo e o sexismo, trazendo para o debate de uma agenda pública suas diversas formas de expressão é uma tarefa cada vez mais imprescindível, principalmente por acreditarmos ser esse tipo de discriminação estruturante das relações sociais. A análise política sobre os racismos e sexismos precisa reconstruir a gênese de fenômenos passados no intuito de avaliar de que maneira o racismo e o sexismo operam na sociedade. Até porque, o “[…] racismo obedece a uma lógica sem falhas” (Fanon, 1968 : 45) e suas dinâmicas estão inseridas na vida das relações econômicas, sociais, culturais, políticas e, essencialmente, nas relações psicoemocionais, o que nos leva a analisar a agressividade do Estado contra os corpos da população negra. Ressaltamos que o racismo, que não conseguimos ainda ultrapassar, funciona sempre como uma abertura para violências possíveis. É um loop do “devir-negro no mundo” sempre a atualizar o que seriam as novas pretas e pretos habitando o mundo, fazendo o racismo atravessar nossos corpos de diversas formas, seja através da negação dos direitos em setores básicos da sociedade, seja através das “balas perdidas”, que nos matam todos os dias. Embora muitas vezes pareça que o alvo da “bala perdida” seja individual, reforçamos aqui, tratar-se de um fator que afeta sempre o coletivo. O medo da morte é uma ação coletiva da população negra, como também a luta por justiça social e contra a violência aos nossos corpos negros/as é uma resistência coletiva. E somos nós, mulheres pretas, incluindo as transexuais (avós, mães, madrinhas, tias, namoradas), que sentimos o efeito devastador do extermínio de crianças e jovens negros/as quando o estado armado invade as comunidades, os becos, as quebradas, as periferias, as favelas e vielas.
8Fruto do encontro de três pesquisadoras/professoras negras retintas, ativistas, que guardam histórias ancestrais em seus corpos e buscam manter a memória de luta e reexistência através dos estudos sobre comunidades quilombolas, comunidades-terreiro e ações afirmativas para o povo negro, este artigo apresenta um recorte de lutas individuais e coletivas e tem como objetivo compreender como os processos de mobilizações e ativismos da população negra se desenvolvem no Brasil, especificamente na Bahia a partir do Movimento de protesto Black Lives Matter (BLM).
9O BLM, movimento de protesto, se caracteriza não só como gritos, reivindicações, convocações alertando sobre a violência policial contra a juventude negra, mas contribuiu/contribui para uma tomada de consciência em relação a ação da polícia como um “braço” do estado, que não é só uma força da aplicação da lei, mas em nome de uma suposta segurança e ordem pública exerce a função de regulamentar os corpos negros (Ferreira Da Silva, 2014), escancarando a operação da violência racial e instaurando a ordem do mundo contemporâneo “[...] face à brutalidade que perdura desde o escravismo dos impérios coloniais” (Ferreira Da Silva, 2019 : 146). Necessário destacar que o movimento BLM ganhou espaço a partir das redes sociais e com os conhecidos tweets (postagens), mobilizou muitas pessoas a saírem às ruas exigindo respeito e um basta ao extermínio da juventude negra. A utilização da hashtag (#) em Black Lives Matter, como um movimento transnacional, atravessou as fronteiras dos EUA mobilizando ainda mais a juventude negra brasileira, especificamente a juventude da região metropolitana de Salvador que, há décadas, vem organizando através de movimentos e entidades, táticas de lutas e denúncias contra o genocídio da população negra.
10Ao pensarmos sobre as diversas formas de resistências que a população negra foi criando para denunciar as inúmeras formas de extermínio, para a escrita deste artigo organizamos as reflexões em dois momentos: no primeiro, uma breve contextualização do Mapa da violência na Bahia/Brasil e as influências transnacionais #BLM em defesa das vidas negras e a luta contra o racismo antinegro. No segundo, o ciberativismo foi utilizado como dispositivo metodológico e base de análise, para apresentar a influência das redes e as trocas políticas, midiáticas e científicas entre ativistas negros/negras e simpatizantes como consciência política, luta e resistência contra a violência racial antes e depois do movimento BLM, destacando o atual momento de enfrentamento à pandemia da covid-19. Consideramos que estas mobilizações, a partir do ciberativismo serviram, no Estado da Bahia, como um chamado para ação de antigas reivindicações que já ocorriam em todo o mundo, mas que viram na #BlackliveMatter, ou como chamamos no Brasil #VidasNegrasImportam, uma ferramenta para pensar o mundo e denunciar as barbáries contra a população negra, a exemplo de projetos desenvolvidos por Cetilá Itas e da campanha “Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta”, os quais apresentaremos ao longo do texto.
11Verificamos que a partir de 2005 no Brasil, com o aumento da violência policial, que vem se intensificando nas grandes metrópoles, as mobilizações do ativismo negro têm ganhado maior visibilidade, principalmente, a partir dos protestos transnacionalizados, devido as ocorrências de violência policial nos EUA e a utilização da #Black Lives Matter contra o genocídio da juventude negra.
- 9 Cf.“Fórum Brasileiro de Segurança Pública foi criado em 2006 na aposta política de que os desafios (...)
12Neste tópico abordamos as mobilizações organizadas pelas/os ativistas do Vidas Negras Importam em Salvador-Bahia com o objetivo de discutir as articulações por meio das redes sociais e os processos envolvendo as mobilizações locais. Metodologicamente, utilizamos dados quantitativos de pesquisas realizadas pela Central Única das Favelas (CUFA); os Atlas da Violência produzidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)9; os Mapas das Violências Homicídios e Juventude no Brasil (2013) e os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Analisamos a comunidade virtual com 9.914 membros na rede social Facebook da “iniciativa brasileira Vidas Negras Importam” fundada em Salvador-Bahia, em 2015, por Cetilá Itas, uma mulher negra, estudante do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que inicialmente organizou em 2014, o “Projeto Itinerante Próxima Parada” voltado para pessoas que vivem em situação de rua, com o objetivo de incentivar o hábito da leitura e da escrita. Consideramos que apesar da população brasileira ser formada por mais de 50% de negros/as ainda continua excluída e silenciada nas decisões fundamentais para reverter a opressão racial perpetuada pelo racismo estrutural com a anuência do estado brasileiro. Nesse sentido, tanto os/as negros/as da Bahia como de outros estados do Brasil têm feito a mesma afirmação: Vidas negras importam !
13O Brasil é um país com abismais desigualdades e apresentá-las, ainda que de forma sucinta possibilita compreender as lutas negras, envolvendo limites, avanços, denúncias e conquistas que se confundem com a própria história brasileira. Trata-se de uma sociedade marcada por uma profunda desigualdade racial, pois como já apresentamos na introdução, abriga um triste legado em seu período colonial, maculado pelo regime escravocrata, agravado por ter sido a nação que mais sequestrou africanos/as, entre os séculos XVI e XIX, sendo o último nas Américas a acabar com o “trabalho forçado dos escravizados” (Paixão, 2014 : 19). Soma-se ao distante e inegável passado a permanente e contínua desigualdade racial, que se reinventa no presente, sustentada nos mecanismos do racismo que é “[...] sempre estrutural e integra a organização econômica e política da sociedade de forma inescapável. [...] Fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea”. (Almeida, 2019 : 15). Importante salientar que os fatos do presente se somam àqueles do passado distante, formando um acúmulo de desvantagens que incidem com mais força sobre a maioria dos/as negros/as (Santos, 2014).
14Dessa maneira, a organização da própria estrutura racial da sociedade brasileira, engendrada, para tentar convencer a população, que existe interesse por parte do estado brasileiro em reverter os índices da desigualdade racial e de violência sistêmica. Essa tentativa de convencimento seria indício de que “o racismo já não ousa se apresentar sem disfarces” ? (Fanon, 1980 : 40), ou a desfaçatez sempre foi um dos principais instrumentos do “racismo à brasileira”? Como destacou Abdias do Nascimento (1978 : 76), ao mencionar a contribuição do dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues: na “[...] caracterização das nossas relações de raça”: “Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas [...]. Mas fazemos o que talvez seja pior: Nós os tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite”.
- 10 “Quando o mito é tomado alegoricamente inverte-se num relato com dois aspectos, ambos igualmente n (...)
15No Brasil essa negação tem sido persistente, impedindo e ou retardando a adoção de políticas públicas para enfrentar as violências, que recaem sobre os corpos negros provocando exclusão racial e altos índices de morte, sobretudo, entre os mais jovens. A situação se agrava em virtude da construção, segundo Florestan Fernandes (2008), do “mito da democracia racial” que consiste em responsabilizar o negro pela própria condição de desigualdades, liberando o “branco” de qualquer responsabilidade, obrigação ou solidariedade morais. Nesse sentido, produziu um paradigma sobre a realidade brasileira que não coincide com esta realidade10, ou seja, de acordo com Gomes (2005) negava a desigualdade racial entre brancos e negros como resultante do racismo, afirmando existir entre estes dois grupos igualdade de oportunidades e de tratamento. Esse persistente mito da igualdade entre pretos e brancos, de um lado, busca negar a discriminação racial brasileira, e, de outro, perpetua estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre a população negra. Essas ideias forjadas ideologicamente, reforçadas das mais variadas formas tornaram-se aceitas pela população por meio de mecanismos ideológicos, políticos e simbólicos, que foram e continuam sendo internalizadas pelos distintos grupos étnico-raciais brasileiros. Em síntese, a lógica da suposta democracia racial encobre e disfarça a “espantosa realidade do genocídio dos negros no Brasil” (Nascimento, 1978 : 76). Realidade esta, historicamente, evidenciada nas estatísticas em que apresentam :
[...] mortes por causas externas ou mortes por causas violentas que são, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), aquelas ocorrências que resultam de homicídios, suicídios e acidentes. Estas ocorrências são referidas no sistema de classificação internacional de doenças (CID) em sua 10ª revisão - CID 10 - onde estão agregados os dados relativos a causas externas de morbidade ou mortalidade relativas as lesões acidentais – acidentes de trânsito, de trabalho, quedas, envenenamentos, afogamentos e outros tipos de acidentes – e as lesões intencionais – agressões, lesões autoprovocadas e eventos de intenção indeterminada. As informações deste sistema são fornecidas pelos estados através das suas secretarias de saúde e consolidadas através da área técnica de informações do Ministério da Saúde. No entanto, estas estatísticas não coincidem necessariamente com as informações prestadas pelos sistemas de segurança pública (Freitas, 2015a : 38).
- 11 Cf. Waiselfisz, Julio Jacobo (2013 : 7) : “Pela legislação vigente no Brasil (Lei nº 15, de 31/12/ (...)
16Para Freitas (2015a), apesar das inconsistências dos dados oficiais11, eles também possuem convergências significativas na comprovação da gravidade do problema, evidenciando que os homicídios são um problema nacional e a sua extensão necessita ser discutida pelos distintos atores sociais. Importa salientar que essa gravidade se aprofunda, ou seja, não se trata de um cenário homogêneo, pois, o perfil da violência homicida está segmentado por classe, faixa etária, sexo, região/território e, em especial, por raça/cor.
Como tudo no Brasil, também a vitimização letal se distribui de forma desigual : são sobretudo os jovens pobres e negros, do sexo masculino que tem pago com a vida o preço de nossa insensatez coletiva. O problema alcançou um ponto tão grave que já há um déficit de jovens do sexo masculino na estrutura demográfica brasileira. Um déficit que só se verifica nas sociedades que estão em guerra. Portanto, apesar de não estarmos em guerra, experimentamos as consequências típicas de uma guerra. (Soares, 2004 : 130).
17Nessa perspectiva, para Soares (2004 : 131) “nenhuma generalização se sustenta. Sua multiplicidade também o torna refratário a soluções uniformes [...]”. Sendo assim, Gomes e Laborne (2018) enfatizam que a juventude negra tem conferido publicidade a sua situação de violência. Essa denúncia tem alcançado diferentes fóruns e atores políticos que atuam em prol das questões juvenis, tais como : a União Nacional dos Estudantes (UNE), o Encontro Nacional de Jovens Negros (ENJUNE), os coletivos negros partidários ou não, militantes orgânicos de Movimentos Negros e pesquisadores do assunto. A pauta do extermínio da juventude negra vem se transformando de denúncia, em luta por direitos.
18De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021), o Brasil possui uma extensão territorial com 8.510.345,538 km² com uma população estimada em 213.317.639 (duzentos e treze milhões, trezentos e dezessete mil e seiscentos e trinta e nove pessoas) divididos em cinco regiões, a saber : Região Norte; Nordeste; Sudeste; Sul e Centro Oeste, totalizando 26 estados e 1 Distrito Federal e 5.570 municípios. Sendo o Nordeste, a maior região brasileira composta por nove estados, dentre os quais se encontra o Estado da Bahia, com 417 municípios, subdivididos em 27 territórios de identidades, com uma população de 14.985.284 (catorze milhões e novecentos e oitenta e cinco mil e duzentos e oitenta e quatro pessoas). Deste total, o IBGE estima para 2021 aproximadamente 2.900.319 (dois milhões, novecentos mil e trezentos e dezenove) em Salvador, capital do estado e campo desta pesquisa com uma população composta por 19,2% de brancos ; 20,9 pretos e 59,3% pardos, sendo que o IBGE agrupa pretos e pardos na categoria negros. Assim, Salvador concentra um índice de 80,2%, tornando-a a cidade mais negra do Brasil que, por sua vez, é também composta de maioria negra, conforme o gráfico a seguir :
Gráfico 1 : População de Salvador por cor/raça (2020)
19Em se tratando da composição sociodemográfica de Salvador, apresentamos uma síntese dos dados levantados pelo IBGE, responsável desde 1975 pela coleta e divulgação do Censo Demográfico de toda a população brasileira a cada 10 anos, que anualmente calcula e divulga as “projeções populacionais para o total do país” (IBGE, 2020 : s/p). Nessa perspectiva, o município de Salvador :
[...] em 2019, o salário médio mensal era de 3.4 salários mínimos. A proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 28.7%. Na comparação com os outros municípios do estado, ocupava as posições 4 de 417 e 5 de 417, respectivamente. Já na comparação com cidades do país todo, ficava na posição 59 de 5570 e 581 de 5570, respectivamente. Considerando domicílios com rendimentos mensais de até meio salário-mínimo por pessoa, tinha 36.8% da população nessas condições, o que o colocava na posição 414 de 417 dentre as cidades do estado e na posição 3211 de 5570 dentre as cidades do Brasil. (IBGE, 2020 : s/p).
20A Central Única das Favelas (CUFA) realizou em 2020 uma pesquisa quantitativa “Periferia, racismo, violência”, com 1.826 brasileiros negros/as e não negros/as, em 74 cidades de todas as classes sociais e regiões do país. Dentre os dados levantados estão os que envolvem o episódio que provocou a morte do estadunidense George Floyd, quais sejam :
91% dos brasileiros souberam do caso; 56% afirmam conhecer casos similares e “83% acreditam que casos como esse ocorrem com frequência no Brasil. 49 milhões de brasileiros (29% dos adultos) declaram ter sofrido algum tipo de constrangimento durante abordagem policial. Homens negros de baixa renda estão mais expostos à violência policial do que homens brancos de baixa renda. (CUFA, 2020 : 2).
21Gomes e Laborne (2018) explicam que movimentos da juventude negra brasileira têm denunciado que a morte letal de jovens negros não tem como única causa o fato de serem na sua maioria pobres e viverem em situação de maior vulnerabilidade, posto que, é atravessada fortemente pela raça. Em outras palavras, podemos perceber que “ser negro é um determinante para que a violência incida com mais força sobre essa parcela da população. Essa constatação não é nada mais do que a afirmação da existência do racismo, mesmo tendo este sido considerado como um crime inafiançável e imprescritível, desde a Constituição Federal de 1988”. (Gomes e Laborne, 2018 : 6).
22Inclusive no Atlas da Violência (2017 : 30), produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), relata que : “de cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras. Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra”. Importa destacar que o Brasil tem 138 municípios com população igual e superior a 100 mil habitantes com taxas de Mortes Violentas Intencionais (MVI) acima da média nacional. Somados, eles respondem por 37,3% de todas as MVI do país. A Bahia tem 17 deles com taxas acima da média nacional”. (FBSP, 2020 : 29). Observaremos estes dados no gráfico 2 a seguir :
Gráfico 2 : Taxas de Mortes Violentas Intencionais de municípios com 100 mil hab. ou mais
Fonte : Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021).
23Após o Brasil ter atingido o ápice de Mortes Violentas Intencionais (MVI) em 2017, quando a taxa desse tipo de mortes :
[...] chegou a 30,9 para cada grupo de 100 mil habitantes, os anos de 2018 e 2019 foram marcados por reduções sucessivas dessas mortes. Todavia, em 2020, a tendência de queda foi revertida e houve um crescimento de 4% em relação ao ano anterior. A taxa de mortes violentas intencionais no Brasil foi de 23,6 por 100 mil habitantes em 2020. No ano passado, o país não só teve que conviver com a dor das milhares de mortes por Covid-19, mas com a retomada do crescimento das MVI, categoria que soma homicídios dolosos (83% do total da categoria em 2020), latrocínios (2,9% da categoria em 2020), lesões corporais seguidas de morte (1,3% da categoria em 2020) e mortes decorrentes de intervenções policiais (12,8% da categoria em 2020). (FBSP, 2021 : 21).
24E mais, podemos observar estes dados nos gráficos 3 e 4 a seguir :
Gráfico 3 : Mortes Violentas Intencionais- por tipo de ocorrência e raça/cor
Gráfico 4 : Mortes Violentas Intencionais – por faixa etária
25Esses dados sintetizam os brasileiros que se encontram em permanente risco de morrer de forma violenta e intencional, ou seja, são os jovens negros as maiores vítimas em todas as categorias de MVI’s. Segundo o Atlas da Violência (2021), a disparidade entre a distribuição populacional do país em termos de raça/cor - a população brasileira é constituída por 56% de pessoas negras (soma de pretos e pardos) e 43% de brancos (IBGE) - e aquela verificada entre as vítimas de MVI’s é um forte indicativo que precisa receber toda a atenção das políticas públicas de segurança. Afinal, enquanto os negros são 56% da população brasileira, continuam representando, ano após ano, pelo menos 70% do total de vítimas de Mortes Violentas Intencionais no Brasil. Nesse contexto, para Gomes e Laborne (2018) :
[...] as ações em nível do Estado, no Brasil, ainda são tímidas. Tem sido muito mais enfática a consciência social e política, a publicização dos dados sobre violência e vulnerabilidade com recorte raça/cor por órgãos e institutos de pesquisa e a denúncia dos mais diversos movimentos e ações coletivas da juventude negra. Estes últimos podem ser visualizados pela leitura das páginas no facebook e canais do Youtube protagonizados por jovens negros e negras contendo as suas próprias análises e declarações, a fim de informar e esclarecer a juventude e população em geral sobre a agravante situação de violência (Gomes e Laborne, 2018 : 10).
26Neste sentido, o povo negro tem sido responsável por organizar ações coletivas visando o enfrentamento das violências, que recaem com muita força sobre os jovens negros, sobretudo, que por sua vez afeta todos os familiares, que precisam substituir “o luto pela luta” por justiça. Aliás, as redes sociais são ferramentas utilizadas para denunciar casos de racismo e outras violências, bem como divulgar reuniões e manifestações presenciais a fim de levar a luta para o espaço público. Nessa perspectiva, a inciativa local do movimento “Vidas Negras Importam” ganha mais força e visibilidade nas redes sociais a partir de um Movimento Artístico e Político Independente, em 2015, na cidade de Salvador-Bahia, como já mencionamos, coordenado por Cetilá Itas, militante e fundadora do movimento. Na descrição do grupo no Facebook informa que foram :
[...] impulsionadas/os por múltiplas experiências de vida, começamos a ocupar espaços públicos onde havia grande concentração de pessoas em situação de rua. Naquela época, pensávamos na importância em atrair pessoas de diversos seguimentos da sociedade civil e sensibilizá-las sobre as nossas pautas, também reconhecíamos a importância de dar visibilidade a populações invisibilizadas e democratizar alguns debates que estavam concentrados geralmente em ambientes institucionais. A partir daí ampliamos as nossas ações e diálogos, mas também fomos engolidas/os por uma estrutura violenta que abalou de algum modo as nossas subjetividades, e por conseguinte, vidas pessoais. Nas arenas percebemos o tamanho da nossa força e os nossos limites frente a uma série de violências que desestabilizaria qualquer pessoa. Ainda mais pessoas que vivem em um dos países que mais matam ativistas no mundo. Então, refletimos com lucidez sobre as nossas dificuldades socioeconômicas, nossa saúde mental e criamos estratégias para atuarmos com responsabilidade em relação as nossas vidas. (Facebook, Vidas Negras Importam, Salvador, 2021. Disponível em : https://www.facebook.com/119290428420861/posts/1430027284013829/. Acesso em 10 de jul. de 2021).
27Em entrevista concedida ao “Toda Bahia : notícias da Capital e do Interior”, em 29/07/2021, Cetilá Itas aponta as dificuldades enfrentadas por ativistas, a exemplo da : saúde mental, falta de apoio, constantes perseguições e agressões, isto porque, algumas pessoas pensam que o grupo estaria filiado a um partido político ou recebem dinheiro de organizações do exterior. No entanto, Cetilá Itas adverte que não existe nenhuma relação de codependência com grupos de outros países já que “somos sujeitos da sociedade civil que nos sentimos no direito de reivindicar, de realizar nossas ações, sem, necessariamente sermos de um partido”12.
28Nesse contexto de 2015 a 2018, inspirado no Movimento norte americano Black Lives Matter, o “Projeto Itinerante Próxima Parada” decidiu promover intervenções e saraus nas escolas e em bairros de Salvador, como : “Projeto Itinerante Próxima Parada”, um chamado à reflexão sobre vidas negras e sua importância, pautando as identidades dos sujeitos sociais; Também ao pensar que “Vidas Negras Importam”, o movimento iniciado por Cetilá Itas enfatiza que “Mulheres Negras Importam”, “Homens e Mulheres Trans Negros e Negras Importam”, “Crianças e Jovens Negros Importam”, “Idosas/os Negras/os Importam”, “População Negra em Situação de Rua Importa”, “Comunidades Negras Tradicionais Importam”, “População Carcerária Negra Importa”, Pessoas Negras com Deficiência Importam”, “Gays e Lésbicas Negros e Negras Importam”, “Profissionais do Sexo Negras Importam” e demais grupos de negros/as, que estão à margem e são vitimados pela intolerância e reproduções de ódio ao diferente, prática racista, homofóbica e sexista.(Facebook, Vidas Negras Importam, Salvador, 2021).
29Portanto, as mulheres negras brasileiras têm enfrentado a violência racial, como demonstrado nos dados empíricos o crescimento das MVIs provoca profundos sofrimentos, sobretudo, porque as mães perdem os seus filhos para todas as categorias de MVIs. Nesse sentido, são afetadas de forma irremediável tanto pela violência que resulta em morte, como aquelas reveladas pelas injustiças decorrentes da ausência de condições para acessar o sistema de justiça, tornando a punição dos culpados uma luta dolorosa, ocasionando, em muitos casos, as impunidades.
- 13 Os estudos sobre o ciberativismo se concentram em grandes movimentos que se mobilizaram em torno d (...)
30Caracterizado pelos movimentos globais e locais que encontram, na internet, “um campo fértil para as suas manifestações, protestos e petições, difusão de informações e denúncias” (Di Felice, 2013 : 75), o termo ciberativismo13 surgiu pela primeira vez no início de 1990 e foi se intensificando quando a juventude negra passou a usar todo o potencial das redes on-line para denunciar os conflitos culturais, religiosos e políticos, tanto os locais, como os globais, usam para compartilhar informações diversas e se articularem nas atividades cotidianas e comunitárias. Mas, uma das características mais marcantes das ocupações realizadas está na singularidade da participação no contexto do ciberativismo, o cuidar de si, cuidar do outro, mas depois cuidarmos do mundo e suas complexidades. Segundo Di Felice (2013) :
A segunda característica identificada dos diversos movimentos net-ativistas se expressa na singular não linearidade de suas ações. Essa, de fato, apresenta-se como o conjunto de ações não apenas humanas, isto é, não apenas expressões da vontade de um sujeito ator, de movimentos sociais ou de opinião, mas resultado da sinergia de diversos actantes (circuito informativo, dispositivos, smartphones, câmaras digitais, gravadores, redes sociais, como Facebook, movimentos sociais, indivíduos, etc.) (Di Felice, 2013 : 58).
31O autor traz uma das características do ciberativismo no contexto atual, que é a singularidade nas autorias, nas participações ciberculturais com os compartilhamentos de narrativas digitais imagéticas, audiovisuais e textos falando das nossas emergências como seres conectados no mundo ecossistêmico. No entanto, pequenos movimentos locais e o nível de conectividade que a juventude negra está vivenciando colaboram para o levante dos movimentos sociais como sementes de mandacaru plantadas nos desertos dos que nos separam geograficamente, mas nos aproximam a partir das identificações e afetamentos nas conexões em redes (Borges, 2019).
32Dessa maneira, neste tópico falaremos de alguns contextos conectivos que unem a juventude negra da Bahia com todas as juventudes negras do mundo : a luta pelo direito de não morrer pela violência do racismo institucional. Utilizamos a etnopesquisa online (Borges, 2019) como metodologia por compreendermos que a pesquisa online vem disputando espaços no campo das pesquisas contemporâneas, principalmente no contexto da pandemia da covid-19.
33A partir da hashtag #Reajaousejamorta como dispositivo de aprendizagem, buscamos os rastros digitais (Bruno, 2012) do movimento em : Site Oficial do Reaja ou Seja Morto ou Seja Morta, sites do G1, redes sociais digitais como : Facebook e Instagram e em várias revistas online. Cartografamos algumas características destes movimentos e nos interessamos sobre como localizar a luta pela vida e contra a violência policial frente as abordagens das diversas formas utilizadas pelos movimentos sociais no contexto da Cibercultura (Levy, 1999).
- 14 Doutora Maria da Conceição Evaristo de Brito, mulher, negra, linguista, pesquisadora e docente uni (...)
34As mobilizações contra a violência policial e em defesa de justiça global ao redor do mundo foram marcadas pela rápida conexão entre países. A necessidade se deu porque não tem um dia que as nossas redes sociais digitais, não sangrem com o tombamento do corpo negro, alvejado/abatido por uma “bala perdida”, que crava na nossa existência digitalizada nas redes sociais. Como diz Conceição Evaristo14 : “a noite não adormece nos olhos das mulheres, há mais olhos que sono onde lágrimas suspensas virgulam o lapso de nossas molhadas lembranças” (Evaristo, 2017 : 26). Os nossos perfis estão sempre marcados em convites de eventos para mais um ato público contra o genocídio da juventude negra periférica. Ressaltamos, que a maior parte das mobilizações são organizadas por mulheres (mães, irmãs, primas, madrinhas, tias, avós, filhas, sobrinhas, namoradas, companheiras) de muitos homens/jovens (sempre) negros, que tiveram suas vidas interrompidas pelas políticas de morte.
35As mobilizações online são uma das características dos movimentos sociais da contemporaneidade, principalmente, aqueles que estão articulados pelos direitos humanos sem precisar levantar a bandeira de partidos políticos, apesar de lutar por ações políticas que garantam a existência negada aos que estão no contrafluxo da sociedade conservadora. Esse novo formato de produção e compartilhamento de informação tem revolucionado as velhas mídias de massa e, criando um modelo de produção de conhecimento e de mobilização social, faz surgir o que Bentes (2015 : 12) conceitua de “[...] uma nova ecologia “midialivrista” em que a mídia somos nós”, e mais :
Essa proliferação e disseminação pós-mídias de massa já está acontecendo e criando uma nova ecologia "midialivrista", uma quantidade enorme de coletivos, redes, grupos e também ''perfis". Pessoas que individualmente começam a se ver e assumir como produtores relevantes de conteúdos. Essa percepção de que a mídia somos nós, esse conjunto de singularidades que podemos acessar, com quem podemos interagir e trocar realmente, é uma mutação antropológica (Bentes, 2015 : 12).
36Dentro dessa nova configuração, a juventude negra periférica, alijada e violentada diariamente pelas mídias de massa, tem encontrado nas redes digitais, espaços comunicacionais férteis para as suas militâncias. É dessa mutação antropológica midiática (Bentes, 2015), que o movimento “Reaja ou seja Morto/a” usa as redes sociais digitais, desde 2012, para denunciar e lutar contra a violência promovida pelo estado brasileiro. Seu foco tem sido o genocídio da juventude negra, seja pelo encarceramento em massa, seja pela militarização da polícia que mata, a cada 23 minutos, um jovem negro no Brasil.
37A Campanha “Reja ou Seja Morta, Reaja ou Seja Morto” interage a nível global, e foi formada em 2005, a partir da organização unificada de vários movimentos sociais do Estado da Bahia, mas que ao longo da sua história vai conectando os/as jovens negros/as do Brasil. Um dos objetivos da Campanha é lutar pelas vidas negras a partir da politização das suas mortes.
Figura 1 : Ato Em defesa da Vida organizado pelo Movimento Reaja em 2005
Fonte : Blog da Campanha Reaja ou Seja Morto/a, 2021.
38A Campanha ganha força nas redes sociais digitais a partir da Chacina do Cabula, bairro de Salvador, em que a Polícia Militar (PM) da Bahia executou 12 jovens negros, entre 15 a 28 anos de idade e deixou mais seis pessoas gravemente feridas, em 06 de fevereiro de 2015. A chacina aconteceu numa localidade chamada Vila Moisés, no bairro do Cabula. Nas redes sociais lemos :
O governador da Bahia, Rui Costa, talvez embalado pelo calor dos embates do clássico Ba-Vi (Bahia X Vitória – times de futebol do estado da Bahia) [Grifo nosso], utilizou a seguinte metáfora futebolística para defender os policiais : “É como um artilheiro em frente ao gol que tem que decidir em alguns segundos como é que ele tenta botar a bola para dentro do gol e fazer o gol. Depois que a jogada termina, todos os torcedores da arquibancada, se foi feito o gol, vão bater palma e dizer que foi um golaço e vai repetir várias vezes na televisão. Se o gol foi perdido, o artilheiro vai ser condenado porque se tivesse chutado desse jeito ou daquele jeito a bola teria entrado”. E completou, na linha do já conhecido mantra : “A Polícia Civil vai detalhar a apuração e, se algum fato justificar o afastamento de alguém, isso será feito. Mas nesse momento não há nenhum indicativo de afastamento dos policiais (Henrique Mendes, « Policiamento no Cabula é reforçado após mais de 10 mortes em confronto », Globo, 2015. https://g1.globo.com/bahia/noticia/2015/02/policiamento-no-cabula-e-reforcado-apos-12-mortes-em-confronto-policial.html).
39O descaso na fala e a postura do governador do Estado da Bahia em relação a chacina dos jovens negros, foi um dos dispositivos de afroativismo do “Reaja ou Seja Morto/a”. O discurso do governador levantou midiaticamente a juventude negra de Salvador, que usando a potência das redes sociais digitais conectou jovens do Brasil e do mundo. No site do “Reaja ou Seja Morto/a” tem uma aba nomeada como Galeria, em que o movimento conseguiu reunir depoimentos de jovens negros/as, de vários países norte-americanos, a exemplo dos EUA, como também houve uma grande mobilização dos países da América Latina nos atos que aconteceram em 2015 a até os dias atuais.
Figura 2 : AfroAtivismo do Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto no Facebook
Fonte : Facebook, 2021.
40Ao desenvolver a etnopesquisa online (Borges, 2019), sobre os movimentos sociais que lutam contra o genocídio da juventude negra na Bahia a partir do Black Lives Matter, encontramos 132 publicações (jornais, revistas, blogs e sites) que apresentam a “Campanha do Reaja ou Será Morta/o” e suas lutas desde 2005. Di Felice (2013) denomina de contextos conectivos. O primeiro contexto conectivo que o movimento utiliza é a denúncia da colonialidade do poder sobre os corpos negros. Vejamos a seguir a fala de Hamilton Borges dos Santos no Portal Geledés :
Lídice da Mata, Otto Alencar, Rui Costa e Paulo Solto, todos brancos beneficiários do racismo, fazem suas campanhas ao largo de nossas dores, contam com apoios importantes de líderes negros que se escondem e envergonhados e nada dizem sobre as promessas de mais repressão, polícia e cadeia na agenda eleitoral. Um dos cúmulos de todo esse processo, foi um convite para celebrar o aniversário da Frente Negra Brasileira, numa atividade de Campanha eleitoral diante de tantos mortos, que como sabemos, olham, os que negociam nossa ancestralidade na bolsa de valores de cargos e migalhas, e dizem que disputam nosso projeto por dentro (Santos, Portal Geledés, 2014).
Figura 3 : A violência Racial e Policial denunciada a nível nacional
41Para Hamilton Santos (2014), as engrenagens presentes na estrutura do racismo institucional perpassam pela criminalização da pobreza, a ausência de políticas sociais de reparação histórica da população negra e vai até a cooptação do movimento negro para que este silencie as suas lutas. “Só os/as pretos/as dessa sociedade racista contemporânea sabem e sentem na pele o quanto a colonialidade tem um efeito genocida sobre nosso corpo e nosso povo” (Borges e Fernandes, 2018 : 85). E o Estado, segue seu processo de produção do racismo institucional como tecnologia de opressão (Andrews,1985).
Nós nos acostumamos a depositar crisântemos nos túmulos de nossa gente morta pela política de Segurança Pública na Bahia, tocada igualmente por todos os governos. Acostumamos-nos ao silêncio de nossos irmãos negros quando somos perseguidos por falarmos o que não pode calar; acostumamos-nos as dores das mães, a indiferença das ONGs, ao desprezo das organizações de Direitos Humanos e ao apoio dos nossos em cadeias, favelas, vilas e nas ruas (Santos, 2014).
42A “Reaja ou Seja Morto/a” também usa as redes sociais digitais para a politização das mortes da Juventude Negra a partir da denúncia do Estado, mas também para conscientizá-la a romper com a lógica colonial de pensar e agir frente as violências. As Marchas nas ruas do Cabula, em Salvador, os atos nas universidades e praças públicas são dispositivos de aprendizagem para formação da juventude, especificamente, a negra. Esses espaços sempre foram lugares das lutas cotidianas dos movimentos sociais. Sendo que o Movimento Negro sempre ocupou os espaços públicos e as universidades para levantarem suas bandeiras contra a violência do Estado.
43Podemos ver, portanto, que as reflexões sobre : violência policial, feminicídio das mulheres negras, não escolarização e ausência da população negra em espaço de poder e a necropolítica midiática (Mbembe, 2016), estão na agenda das ações da “Reaja ou Seja Morto/a”. O Movimento Reaja vê mais progresso, nas barricadas que se montam politizando a morte cruel de nossa gente, nos protestos, no cheiro de pneu queimado com sabor de crisântemos e girassóis (Santos, 2014). Vejamos a figura 4 a seguir :
Figura 4 : III Marcha Internacional contra o Genocídio do Povo Negro, 2015
Fonte : Esquerda Diário, 2021. Disponível em : https://esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=2206
44Os coletivos digitais que fazem o afroativismo, com uma proposta de empoderamento dos/as negros/as, têm se multiplicado a cada dia. Freitas (2015b) classifica esse movimento como mídias comunitárias populares, já a pesquisadora Bentes (2008), o classifica como mídia multidão. Os dois pesquisadores têm catalogado como os movimentos sociais independentes e sem nenhum vínculo partidário têm se apropriado das mídias digitais nas disputas narrativas em contraponto com as mídias de massa que recalcam, desqualificam e estereotipizam os grupos populares que não detêm o capital midiático.
As emissões ao vivo têm sido associadas a posts, hashtags, tweets e memes online, para criar ondas de intensa participação em que a experiência de tempo e de espaço, a partilha do sensível, a intensidade da comoção e engajamento constroem um complexo sistema de espelhamento, potencialização entre redes e ruas (Bentes, 2015 : 20).
45Sobre este complexo sistema de espelhamento explicado por Bentes (2015), podemos observar a intensa comoção e engajamento da juventude negra brasileira, tendo o movimento "Black Lives Matter", como um verdadeiro potencializador para mobilizar diversas pessoas a irem às ruas e mesmo nas redes sociais, a denunciar os dolorosos e cruéis casos de racismo estrutural, que se intensificaram no contexto da pandemia da covid-19, a exemplo da morte de Ryan Andrew, 9 anos, morto pela polícia em Salvador, em 26 de março de 2021; a de Micael Silva, 11 anos, Salvador, morto em 2020.
46Com todos estes casos de assassinatos, a pergunta que surge é : O que tem em comum essas crianças e jovens mortos/as? São todas/os negras/os, periféricas/os e lidas/os como corpos matáveis (Mbembe, 2016). O racismo antinegro que vivemos, sequela de um projeto iniciado desde a escravização, nos empurrou e continua nos empurrando para um loop de exclusão, vulnerabilidade e morte. Somos obrigadas/os a acompanhar, todos os dias, a trágica confirmação de um projeto genocida contra a população negra, em que crianças, jovens, mulheres, homens negros/as têm tido suas vidas terrivelmente interrompidas.
47A luta contra estas políticas de mortes aos corpos negros tem sido cada vez mais constantes e o ciberativismo tem contribuído muito, porque além de utilizar o digital em rede como forma de estabelecer modelos comunicacionais na contemporaneidade, proporciona um espaço aliado de comunicação aos movimentos sociais/raciais, desconstruindo o discurso único presente na imprensa de massa, como também contribui para a multiplicidade de informações, convocações para ir às ruas, às audiências, promove reflexões, debates, denúncias sobre a violência aos nossos corpos negros/as e contra o Estado brasileiro e suas ações de ódio e violência contra a população negra, nos interligando a diversos movimentos nacionais e internacionais de luta e resistência contra o racismo e o sexismo (Borges e Fernandes, 2018 : 76).
48As mobilizações do BLM não são somente reações ao desconforto e indignação provocados pela mediatização dos casos de violências policiais contra as pessoas negras nos EUA. Estas mobilizações, a partir do ciberativismo serviram, no Estado da Bahia, como um chamado para ação de reivindicações antigas que já ocorriam em todo o mundo. No entanto, viram na #BlackliveMatter, ou como chamamos aqui no Brasil #VidasNegrasImportam, uma ferramenta para pensar o mundo, no qual a população negra seja livre para existir, para viver e exercer o seu direito de ir e vir sem que a cor da sua pele seja alvo do sistema neocolonial que coisifica, apreende, humilha, expulsa e mata a população negra. O BLM também nos possibilitou revisar e refletir sobre a ferida colonial que é o racismo e o sexismo e de como o pensamento moderno guiou/guia todo o discurso científico, econômico, jurídico e político inventando o ser negro para justificar o seu aniquilamento.
49Portanto, historicamente no Brasil, por força do pensamento moderno, a presença do corpo negro causa desconforto, desde o suposto “fim da escravidão”, quando se inicia a varredura dos corpos negros dos centros das metrópoles que se aspiravam europeizada. Com isso, ao longo da história vamos percebendo que há um limite para o acesso de corpos negros em determinados espaços considerados hegemonicamente de prestígio, e o corpo negro é aquele a quem não se atribui liberdade de transitar livremente pelos distintos espaços sociais. Há lugares construídos para a presença do negro, bem como há espaços arquitetados para a presença do branco. “Até morto, o branco mora bem” (Santos, 2020 : 132).
50A constituição desses espaços obedece sempre a uma lógica de desenvolvimento e de relações de poder que também provocam a morte do corpo negro. Isto porque existem diversas formas de morte, as quais se apresentam de várias maneiras para a população negra, e elas, muitas vezes, se mostram tanto nos dados estatísticos, como apresentamos no decorrer do artigo, como em situações mais particulares, como a inexistência e/ou a ineficácia de políticas públicas que atendam de fato os direitos básicos da população negra, a exemplo de uma educação pública e de qualidade que garanta não só o ingresso da juventude negra, mas sua permanência na educação básica e/ou universitária. Importante destacar também que essa inexistência e/ou ineficácia inscreve-se como uma das estratégias das políticas de morte aplicadas à população negra brasileira, pois à proporção que o Estado se abstém de organizar e garantir os direitos fundamentais da população negra, como o direito à vida e à dignidade, legitimam as políticas de morte, que consequentemente aumentam os homicídios entre a juventude negra não somente no estado da Bahia, mas em todo o território brasileiro.
51Em síntese, a necropolítica pode estar inserida não apenas no que diz respeito à execução física de corpos negros, todavia no silenciamento, na exclusão, no encarceramento em massa e na violação destes corpos. Assim, compreendemos que as diversas instituições sociais funcionam como “braços” de coerção do estado, principalmente a polícia, que representa o estado armado e em nome de uma suposta segurança e ordem pública desempenha a função de controlar e de eliminar os corpos negros. Enfim, a nossa cor nos lembra cotidianamente sobre os constantes perigos de morte que corremos e de que estamos por nossa própria conta.
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