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Recensão

O Mundo do Trabalho a Partir de Baixo. Retratos e Percursos [Renato Miguel do Carmo, Jorge Caleiras, Isabel Roque, Rodrigo Vieira de Assis, 2023, Lisboa, Editora Mundos Sociais, CIES-Iscte]

Sara Nunes
p. 173-176

Texto integral

  • 1 Das quais se destaca o último volume de uma trilogia de obras sobre a relação entre precariedade la (...)

1O livro O Mundo do Trabalho a Partir de Baixo. Retratos e Percursos (2023) é fruto da continuada parceria entre os autores Renato do Carmo, Jorge Caleiras, Isabel Roque e Rodrigo Vieira de Assis, e decorre da “(re)imaginação sociológica” dos dados produzidos no âmbito do projeto “EmployALL: A crise do emprego e o Estado Social em Portugal”. Em linha com produções científicas anteriores,1 os autores centram-se sobre as complexas dinâmicas de precarização laboral dos trabalhadores e a relação deste fenómeno com o recrudescimento de situações de vulnerabilidade social, factos que têm vindo a marcar, de forma prolongada, o mercado de trabalho português.

  • 2 Ver a obra O Trabalho Aqui e Agora. Crises, Percursos e Vulnerabilidades (2021), dos mesmos autores

2A obra procura compreender a complexidade dos processos de precarização laboral a partir da análise de percursos de vida individuais, centrando-se sobre “situações concretas, vivências, sentimentos e (re)ações” (p. 2). Para tal, os autores voltam a mobilizar o conceito de “retrato sociológico” proposto por B. Lahire (2002),2 operacionalizando-o empiricamente através do retrato inédito das vidas de oito trabalhadores em situação laboral precária. Ao identificar as subjetividades e pluralidades disposicionais à escala individual, numa tarefa tipicamente sociológica de objetivação da complexidade através do exercício analítico e reflexivo, os autores procuram reconhecer um conjunto de padrões e caraterísticas transversais à classe trabalhadora em Portugal.

3No primeiro capítulo da obra, a apresentação do objeto de estudo e da abordagem teórico-metodológica traduz, desde logo, a centralidade e pertinência de uma investigação desta natureza, quer no plano temático quer no plano científico. Em primeiro lugar, por trazer para o debate público e científico a discussão de um problema sociológico que é, também, um problema social premente. Em segundo lugar, pelo seu enfoque compreensivo acerca dos “processos sociais de precarização do mercado de trabalho, das suas caraterísticas e consequências” (p. 2), uma abordagem particularmente relevante no atual contexto social e científico, pautado pela predominância de pesquisas de caráter extensivo, centradas nas estatísticas e na descrição de grandes agregados. A obra distingue-se ao “[colocar] em relevo o lado mais pessoal e irredutível” (p. 2), numa lógica de complementaridade metodológica que permite aceder à realidade concreta e subjetiva dos sujeitos para lá dos números, reafirmando o papel das metodologias qualitativas no quadro da Sociologia do Trabalho, amplamente explorado em abordagens etno-sociológicas como a de D. Bertaux (2020), mas ainda por aprofundar no quadro académico nacional.

  • 3 Esta tipologia é desenvolvida com outro nível de aprofundamento na (já referida) obra O Trabalho Aq (...)

4Numa abordagem teórica típica da sociologia contemporânea, com enfoque sobre os processos de interação tradutores da dinâmica estrutura-agência, os autores procuram estabelecer relações de causalidade entre dinâmicas micro e macrossociais para a compreensão do fenómeno de precarização do trabalho em Portugal, apontando e discutindo, ao longo do segundo capítulo, três dimensões de análise fundamentais. A dimensão da precariedade, operacionalizada numa tipologia interpretativa a partir da qual os autores identificam perfis de precariedade prolongada,3 que cumpre o duplo propósito de definir o fenómeno de precariedade laboral prolongada a nível nacional e delimitar a população alvo do estudo, fatores relevantes na pesquisa de um fenómeno complexo e múltiplo. A dimensão das subjetividades, de caráter mais flexível, é captada através dos relatos subjetivos, não só acerca das experiências de precariedade no mercado de trabalho, mas na qual são evidenciados outros temas interligados “como a proteção social, a família, a escola […] que no seu conjunto ajudam a contextualizar a condição social económica e existencial [dos trabalhadores]” (p. 2), contribuindo para mapear as repercussões da precariedade laboral noutras esferas da vida e identificar a pluralidade das situações de vulnerabilidade social vividas. Por fim, a dimensão temporal, que se traduz na análise de como o tempo social é vivido e percecionado, permitindo aceder à relação dialética entre as dimensões de precariedade e subjetividade que concorre para a reificação da realidade social verificada no mundo do trabalho em Portugal.

  • 4 O trabalho de campo decorreu entre os anos de 2019 e 2020, sobrepondo-se ao momento mais intenso da (...)

5Como é caraterístico de investigações sociológicas de caráter biográfico, a dimensão temporal assume particular relevância, sendo possível, no contexto desta obra, encontrar algumas particularidades que a distinguem enquanto objeto do conhecimento científico. Nesse aspeto, o terceiro capítulo, no qual os autores detalham acerca das várias fases, desafios e oportunidades do processo de recolha empírica resultante para a construção dos retratos, constitui um importante contributo. O grande desafio que marcou o quadro mais lato de concretização do projeto de investigação que sustenta a obra — o advento da pandemia de Covid-194 — teve impactos, sobretudo, no trabalho de exploração e recolha empírica realizado, tendo sido, no entanto, transformado pelos autores numa das grandes potencialidades do projeto de investigação e das obras que dele decorreram. Ao incorporarem o contexto social da pesquisa na própria pesquisa sociológica, tentando “captar o modo como as duas crises foram experienciadas e impactaram a vida dos trabalhadores, conduzindo-os a situações, por vezes dramáticas” (pp. 2-3), os autores seguiram uma lógica de adaptabilidade às condicionantes do terreno, fazendo com que a obra demonstrasse flexibilidade e resiliência, tanto em termos metodológicos como empíricos. Do ponto de vista metodológico, as dimensões analíticas previamente definidas foram reformuladas de modo a incorporar temporalidades passadas, através da análise dos percursos profissionais e vivenciais dos indivíduos entrevistados; temporalidades presentes, os impactos da pandemia à data da pesquisa e estratégias de enfrentamento; e temporalidades futuras, as vidas perspetivadas no pós-pandemia. Do ponto de vista empírico, a dimensão temporal da pesquisa ganhou uma riqueza substancial e inovadora por via do estudo da relação entre precariedade laboral e vulnerabilidades sociais pari passu com os impactos da pandemia, transversais a vários campos da realidade social, mas sobretudo decorrentes da fragilização dessa relação, pois “parte significativa do trabalho de campo foi desenvolvida em contexto de pandemia, permitindo observar, de forma direta e sistemática, os efeitos imediatos do primeiro confinamento, ocorrido em 2020” (p. 14).

  • 5 Outros quatro retratos, apresentados previamente na obra O Trabalho Aqui e Agora. Crises, Percursos (...)

6Entre o quarto e o décimo primeiro capítulo, são apresentados os retratos traçados. Em cada capítulo é retratada a vida de um dos oito5 trabalhadores em situação de precariedade laboral. A estruturação da parte empírica da obra constitui, à semelhança de aspetos previamente destacados, outro aspeto positivo, “[permitindo] ao leitor obter diferentes camadas da leitura, da mais ligeira à mais aprofundada, mas complementares entre si” (pp. 3-4), num ato de “democratização” da obra.

7O livro finaliza com um conjunto de conclusões e reflexões em torno da pluralidade dos retratos traçados e das múltiplas e cumulativas vulnerabilidades que estruturam a classe trabalhadora em Portugal.

8Desse exercício de objetificação da realidade complexa, os autores extraem do universo social um conjunto de dimensões sociais e existenciais relativamente transversal “diríamos mesmo à condição da classe trabalhadora” (p. 193), a partir do qual emergem duas categoriais de enfrentamento da precariedade laboral com potencial heurístico para a construção de uma tipologia assente em “estratégias de resignação” e “estratégias de adaptação”. Enquanto as estratégias de resignação se prendem, sobretudo, com uma atitude de conformação com a imprevisibilidade das vidas precárias, procurando gerir e amenizar os efeitos do imprevisível, sem uma alteração substancial das práticas; as estratégias de adaptação passam por uma utilização exaustiva do tempo, traduzida em experiências de pluriatividade, com elevados custos sociais, mas necessárias para a manutenção de um nível de vida razoável.

9Através dessa construção tipológica, os autores sugerem que as estratégias identificadas, de resignação e adaptação, podem coexistir e imbricar-se no mesmo momento temporal, não sendo propriamente distintas nem estando encadeadas no processo de precarização laboral como se fossem fases evolutivas. Ainda assim, praticamente em todos os retratos traçados, verifica-se que os/as trabalhadores/as, após passarem por momentos em que as suas vidas são pautadas por estratégias de resignação, passam a adotar estratégias de adaptação à precariedade. Isto é, só após haver um reconhecimento, aceitação e resignação à condição de trabalhador/a precário/a parece haver adaptação a essa condição, fazendo com que as estratégias de resignação se constituam como momentos primários do processo de precarização, culminantes em estratégias de adaptação. Por outro lado, esta hipótese implica o reconhecimento e aceitação do/a trabalhador/a precário/a como tal, o que não é uma constante nos retratos traçados.

  • 6 A este respeito ver, por exemplo: Luís Capucha, Alexandre Calado e Pedro Estevão (2017), “Resilienc (...)

10Atendendo à pertinência (não só sociológica, como também social) desta tipologia, seria prudente amadurecer a lógica subjacente à operacionalização das categorias que a compõem, não só do ponto de vista conceptual, pois a ideia de estratégias de resignação/adaptação parece ter alguma proximidade com a discussão em torno do conceito de resiliência social,6 uma associação/relação inexplorada na obra; mas também do ponto de vista empírico, no âmbito do qual uma análise dos factos no espaço social, à la Bourdieu, poderia introduzir um outro nível de compreensão e clarificação.

11Em síntese, O Mundo do Trabalho a Partir de Baixo é um livro dialético — individual e coletivo, de contemporaneidade e de história. Uma obra que desperta curiosidade sociológica, ao mesmo tempo constituindo-se num objeto do conhecimento científico acessível a públicos diversos — académicos e não académicos — e irreverente, mas não menos pertinente para pensar as políticas de emprego, proteção social e legislação laboral. Embora não tenha pretensões de representar a totalidade de percursos laborais possíveis, o recurso aos retratos sociológicos, espelha a multiplicidade de trajetórias, dando “uma visão mais ampla sobre as transformações, uma compreensão sistémica de forma como o passado influencia o presente e o futuro e como as mudanças socioeconómicas podem limitar, ou simplesmente eliminar, o acesso a oportunidades […]” (p. 12). Uma visão a partir de baixo, dificilmente acessível através de outras metodologias, que permite abordar a singularidade dos indivíduos “sem perder de vista os contextos sociais nos quais as existências individuais ganham significado” (p. 20). Virtudes às quais acresce a (também) inovadora disponibilização em open acess, num ato de justiça social dirigido a todos/as os/as que nestes temas têm interesse.

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Bibliografia

Bertaux, Daniel (2020), As Narrativas de Vida, Lisboa, Mundos Sociais.

Carmo, Renato Miguel do, Jorge Caleiras, Isabel Roque, e Rodrigo Vieira de Assis (2021), O Trabalho Aqui e Agora. Crises, Percursos e Vulnerabilidades, Lisboa, Tinta-da-China.

Lahire, Bernard (2002), Portraits Sociologiques. Dispositions et Variations Individuelles, Paris, Nathan.

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Notas

1 Das quais se destaca o último volume de uma trilogia de obras sobre a relação entre precariedade laboral e vulnerabilidades sociais, assinado pelos mesmos autores e intitulado O Trabalho Aqui e Agora. Crises, Percursos e Vulnerabilidades (2021).

2 Ver a obra O Trabalho Aqui e Agora. Crises, Percursos e Vulnerabilidades (2021), dos mesmos autores.

3 Esta tipologia é desenvolvida com outro nível de aprofundamento na (já referida) obra O Trabalho Aqui e Agora. Crises, Percursos e Vulnerabilidades (2021), dos mesmos autores.

4 O trabalho de campo decorreu entre os anos de 2019 e 2020, sobrepondo-se ao momento mais intenso da pandemia, que teve início em 2019 e ficou marcado pelos sucessivos confinamentos.

5 Outros quatro retratos, apresentados previamente na obra O Trabalho Aqui e Agora. Crises, Percursos e Vulnerabilidades (2021), concorrem para a ilustração da pluralidade disposicional em estudo e são sintetizados pelos autores no anexo A.

6 A este respeito ver, por exemplo: Luís Capucha, Alexandre Calado e Pedro Estevão (2017), “Resilience: moving from a ‘heroic’notion to a sociological concept”, Sociologia, Problemas e Práticas, 85, 2017, pp. 9-25.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Sara Nunes, «O Mundo do Trabalho a Partir de Baixo. Retratos e Percursos [Renato Miguel do Carmo, Jorge Caleiras, Isabel Roque, Rodrigo Vieira de Assis, 2023, Lisboa, Editora Mundos Sociais, CIES-Iscte]»Sociologia, Problemas e Práticas, 106 | -1, 173-176.

Referência eletrónica

Sara Nunes, «O Mundo do Trabalho a Partir de Baixo. Retratos e Percursos [Renato Miguel do Carmo, Jorge Caleiras, Isabel Roque, Rodrigo Vieira de Assis, 2023, Lisboa, Editora Mundos Sociais, CIES-Iscte]»Sociologia, Problemas e Práticas [Online], 106 | 2025, posto online no dia 01 setembro 2024, consultado o 18 maio 2025. URL: http://journals.openedition.org/spp/14597

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Autor

Sara Nunes

CoLABOR — Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social, Lisboa, Portugal.

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Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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