1As perspetivas teóricas de Bourdieu (1984) e Peterson (1992) têm sido centrais na discussão de fenómenos relacionados com práticas culturais, especialmente quando discutido sociologicamente o gosto. Este artigo tem como base teórica essas duas perspetivas, tentando combiná-las para perceber a potencial influência que a mediação digital pode ter nos fenómenos do gosto contemporâneo. Quando estas teorias foram concebidas, era imprevisível que se edificasse o cenário tecnológico que hoje encontramos. A facilidade de acesso a equipamentos e tecnologias digitais que, por sua vez, concedem acesso a um acervo quase ilimitado de objetos culturais, proporcionaram uma mudança paradigmática nas dinâmicas comunicacionais. Por estes motivos, este cenário poderá ter alterado alguma das dinâmicas pessoais e entre indivíduos, tendo em especial conta as que dizem respeito ao consumo musical. Com este novo quadro de comunicação digital em rede, será que as forças tecnológicas figuraram algum tipo de democracia cultural? Poderá existir algum nível de mitigação de desigualdades? E qual, afinal, a atual relação entre forças sociais e apegamento estético?
2Para responder a estas questões, ir-se-á usar como base os dados do Inquérito às Práticas Culturais de 2020 realizado pelo Instituto de Ciências Sociais, com o objetivo de estudar a relação do uso da internet (e das suas tecnologias associadas, neste caso, o streaming musical) com três variáveis: a escolaridade mais elevada completada, a faixa etária e a classe socioprofissional ACM (Almeida, Costa e Machado, 1994; Costa e Mauritti, 2018).
3Em primeiro lugar, irá fazer-se uma breve introdução teórica onde discutimos as principais teorizações sociológicas sobre práticas culturais — da distinção à omnivoridade — e de que maneira se podem interligar, acrescentando também uma curta consideração sobre o consumo digital na contemporaneidade. Depois, apresentar-se-á a metodologia, onde figuram os pressupostos de operacionalização da classe socioprofissional ACM, sendo relevante mencioná-los antes de se partir para análise dos resultados em si. Quanto aos resultados, far-se-á primeiro uma menção aos hábitos de utilização da internet em Portugal, pondo em contraponto as categorias mencionadas e percebendo também a relação entre classe socioprofissional e utilização da internet. Seguidamente, executar-se-á o mesmo que no ponto anterior, mas com um olhar específico sobre a utilização de plataformas musicais de streaming, pretendendo perceber quem as usa e que diferenças se podem encontrar entre vários segmentos da população portuguesa. Finalmente, tentará perceber-se práticas culturais relacionadas com a música e o streaming, retirando algumas conclusões sobre o gosto. Para isso, será utilizada uma análise de correspondências múltiplas para ilustrar essas relações.
4Quando nos referimos, na sociologia, às práticas culturais e ao gosto é quase inevitável a menção à obra A Distinção de Pierre Bourdieu (1984) e ao habitus como um fator explicativo do mesmo. Estes conceitos partem da teoria dos campos (Bourdieu, 1977) que assenta na hipótese de os indivíduos estarem distribuídos no espaço social segundo diferentes tipos de capital: económico (nomeadamente, dinheiro e bens que se podem converter em dinheiro, etc.), cultural (educação, facilidade de compreensão de ideias abstratas e aquisição de bens culturais, etc.) e social (status, redes sociais e contactos mobilizáveis). Aqui, o espaço social é considerado através de um eixo onde se cruzam duas dimensões: o volume do capital e o tipo de capital (cultural ou económico). Nas diferenças do acúmulo destas duas dimensões, os indivíduos são posicionados de diferentes maneiras. É de notar que esta posição no eixo pode variar segundo a trajetória, onde se tem em conta a evolução ou alteração do capital consoante o tempo, podendo resultar numa mobilidade social ascendente ou descendente, possível individualmente ou em grupos. A posse de diferentes tipos e volumes de capital promove diferentes condições de existência e de experiências de vida, sendo produzidos diferentes habitus — quadros de referência de inclinações e disposições para agir que orientam o indivíduo no mundo social. Estas disposições são “estruturadas e estruturantes” (Casanova, 1995), ou seja, são determinadas por condições estruturais (os processos de socialização, as diferenças e mudanças nos espaços e nas relações sociais, assim como as mobilidades) que têm efeitos estruturantes na deliberação das ações dos indivíduos. É um mecanismo que se forma inconscientemente, com tendência a ser cumulativo, mas dificilmente alterável. N’A Distinção (1984), Bourdieu sugere que existe uma homologia entre o posicionamento no espaço social e o estilo de vida, ou melhor, entre estrato social e gosto. Assim, diferentes gostos são estruturados por diferentes posicionamentos no espaço social. Bordieu provou estatisticamente que à data, às classes sociais francesas mais desfavorecidas e com menos capitais, correspondiam gostos entendidos como mais populares, como o pop e o rock, enquanto nas classes sociais mais privilegiadas e com maior volume de capitais, existia uma associação à música socialmente vista como erudita, como a música clássica. Consoante o posicionamento no espaço social, o gosto desenvolve-se de diferentes maneiras, sendo este moldado pela origem de classe e servindo como uma forma de distinção.
5Esta proposta ainda gera discussão, mas com mudanças notáveis nos modos de consumo, comunicação e acesso às diferentes formas culturais, surgem diferentes visões sobre os fenómenos do gosto. Uma das mais célebres, a de Richard Peterson (1992), sugere que aos indivíduos privilegiados em termos de capitais corresponde uma procura pela variedade e pelo ecletismo cultural como forma de distinção social e não apenas uma adquirição por um gosto mais erudito. Já os indivíduos menos privilegiados continuam limitados a uma menor e menos cultivada diversidade cultural. Assim, a cultura considerada erudita continua a restringir-se a uma minoria das classes mais privilegiadas, mas quem compõe esses estratos não apresenta um comportamento elitista em relação aos restantes produtos culturais, existindo também um envolvimento com a cultura popular. Estes indivíduos são os “omnívoros” culturais (Peterson e Kern, 1996; van Eijck e Lievens, 2008; Lizardo e Skiles, 2012) que ultrapassam fronteiras de classe e se envolvem com várias expressões culturais, tanto eruditas como populares. A omnivoridade está associada à passagem do “snobismo cultural”, que glorifica as artes eruditas e despreza a cultura popular, para uma forma de consumo cultural que se mostra favorável ao apreço por vários tipos de manifestações culturais, das mais elitistas às mais populares. Assim, os omnívoros culturais encontram-se numa posição especialmente vantajosa pois conseguem mobilizar uma maior diversidade de gostos a seu favor, convertendo-os em capital social.
6No confronto entre estas perspetivas, o consenso parece ser aquele em que a omnivoridade dos indivíduos não significa obrigatoriamente que as disposições estratográficas sejam ignoradas (Bennett et al., 2008; Lizardo e Skiles, 2012; Savage e Gayo, 2011; Warde e Gayo-Cal, 2009). Bourdieu (1984) afirma inclusive que qualquer mudança no sistema de bens induz a mudanças nos gostos, pelo que a ideia de que os padrões ilustrados n’A Distinção se mantêm sempre vigentes é refutada pelo próprio autor, existindo um dinamismo inerente ao próprio conceito de espaço social. Atualmente, o modelo mais consensual é o de que as elites culturais tendem a ser caracterizadas pela variedade dos seus gostos (e das suas práticas), enquanto as classes trabalhadoras tendem a apresentar um gosto mais “unívoro” (Coulangeon e Lemel, 2007). Coulangeon e Lemel (2007) também afirmam que a teoria da distinção continua a demonstrar a sua capacidade heurística, mas que a omnivoridade não deve ser invalidada devido a isso. O facto de o gosto continuar a ser um delimitador de classe não implica automaticamente a validação total da teoria da distinção. O gosto exclusivo pela cultura erudita é apenas referente a uma pequena percentagem de indivíduos, incluindo aqueles dos estratos sociais mais privilegiados. No entanto, o que se nota essencialmente nos defensores restritos da teoria da omnivoridade é que existe, no fundo, uma falta de compreensão dos pressupostos bourdieusianos que não implicam uma separação binária e dicotómica entre classes elevadas / cultura erudita e classes baixas / cultura popular (Lizardo e Skiles, 2012).
7Peterson move-se no debate entre as elites e as massas onde os sujeitos escolhem livremente e onde cada classe social corresponde a um tipo de objeto e de prática. Pelo contrário, Bourdieu oferece uma teoria complexa de campos sociais, elaborada e relacional, em que as diferenças e distinções são o resultado de posições relativas dentro de um campo, independentemente da sua natureza. Apesar de introduzir conceitos importantes para esta discussão, Peterson tem uma visão essencialista da omnivoridade, como se as práticas e preferências culturais se tornassem características próprias do indivíduo e como se todos os indivíduos tivessem as mesmas condições de consumo e as mesmas motivações para o fazerem. A visão de Bourdieu, onde o gosto é social e não inato, objetivo e estrutural, e não necessariamente consciente (Ariño Villarroya e Llopis-Goig, 2021), parece estar mais fundamentada. Assim, torna-se relevante a visão holística que a teoria de Bourdieu acrescenta, mas tendo em conta que a omnivoridade poderá potencialmente ser vista como uma característica que os indivíduos podem ou não apresentar, não deixando de ser regida pelo habitus e tendo por base as suas próprias condicionantes socioculturais. Não obstante, a perspetiva de Bourdieu beneficia de interpretações que tenham em conta o atual paradigma comunicacional.
- 1 Fonte: INE. Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação pelas Famílias (20 (...)
- 2 Fonte: INE. Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação pelas Famílias (20 (...)
8Nos mais recentes anos foram várias as mudanças na forma como se consome música, transformações essas especialmente marcadas pela alteração do centro de gravidade da indústria musical, assim como de outras indústrias culturais, do formato físico para o formato digital, e pela utilização cada vez mais acentuada das plataformas online destinadas à mediação e consumo. Serviços de streaming musical como o Spotify ou o Apple Music passaram de um nicho de utilizadores para o modo dominante de distribuição musical. Em Portugal, 69%1 da população entre os 16 e os 74 anos utiliza a internet para ouvir música, número que aumenta quanto menor for a faixa etária: 91,7% dos 16 aos 24 anos; 89,7% dos 25 aos 34 anos; 76,1% dos 35 aos 44 anos, 64,3% dos 45 aos 54; mas apenas 46,9% dos 55 aos 64 anos; e 37,4% dos 65 aos 74 anos. Estes resultados têm vindo a aumentar a cada ano, sendo que em 2016 apenas 49,2%2 dos portugueses diziam utilizar a internet para ouvir música. O gradual uso das tecnologias digitais e da comunicação em rede para ouvir música trouxe implicações que afetam não só a indústria musical em si, como as práticas dos indivíduos. Põe-se agora como hipótese que o acesso a um acervo musical praticamente infindável a preços baixos, ou mesmo gratuitos, tenha tido um impacto nas práticas e no consumo e que a crescente fluidez entre indivíduo e tecnologia tenha trazido novas dinâmicas no que toca ao processo construtivo do gosto, marcado atualmente por um elevado processo de digitalização (Airoldi, Beraldo e Gandini, 2016). Mais do que desmaterializado, o consumo musical foi “rematerializado”, com novos dispositivos em rede a tornarem-se indispensáveis para consumir formatos intangíveis, mas sendo esse mesmo consumo alicerçado por uma série de outras práticas já existentes (Magaudda, 2011). Assim, a integração das tecnologias digitais alterou algumas dinâmicas que envolvem práticas relacionadas com outras formas de ouvir música, tal como acontece quando ao ouvir uma canção na rádio, de seguida a possamos procurar em plataformas digitais, saber mais sobre o artista que acabámos de ouvir, assim como ouvir outras canções desse mesmo artista, entre outras ações possíveis apenas com essa pesquisa. O processo de consumo não é necessariamente novo, mas é alterado pela presença das tecnologias digitais.
- 3 O site do APIS, de onde foi retirada a base de dados, encontra-se em: http://www.apis.ics.ulisboa.p
9Para esta pesquisa, foram utilizados dados secundários provenientes do Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020 realizado pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS), retirados do Arquivo Português de Informação Social (APIS),3 sobre a população residente em Portugal, incluindo as regiões autónomas, com 15 ou mais anos de idade. A amostra foi constituída por 2000 entrevistas, sendo estratificada segundo as regiões NUTs e selecionando-se aleatoriamente cada localidade. Aí, utilizou-se o método random route à seleção do domicílio e do respetivo entrevistado. Neste estudo, foi utilizado um ponderador que corrige as distorções na amostra em termos de sexo, idade e instrução, com base nos dados do Censos 2021.
10Foram feitas análises estatísticas descritivas univariadas e bivariadas, assim como análise multivariada (análises de correspondências múltiplas) através do programa estatístico IBM SPSS.
11A categoria socioprofissional foi operacionalizada com base na tipologia ACM, seguindo de perto os contributos de Almeida, Costa e Machado (1994), e a mais atual operacionalização de Costa e Mauritti (2018). A tipologia foi construída cruzando as variáveis “situação perante a profissão” (patrão, trabalhador por conta própria, trabalhador por conta de outrem) e “profissão” (segundo a classificação ISCO08: International Standart Classification of Occupations). Esta tipologia foi escolhida porque incorpora na sua génese os contributos de Bourdieu (que neste caso em específico muito interessam à pesquisa), bem como de outros sociólogos de referência na análise das classes sociais (Goldthorpe, Wright, Berteaux ou Savage). O facto de possuir um conjunto de propriedades facilmente atualizáveis e comparáveis com diferentes modelos permite uma análise contemporânea fidedigna das classes. Na tipologia ACM (Costa e Mauritti, 2018), distinguem-se cinco categorias, ou se preferirmos, cinco lugares de classe: (1) os operários (O) — trabalhadores das indústrias, oficinas, construção e transportes, geralmente caracterizados por escolaridade baixa e pertencentes a uma faixa etária mais envelhecida; (2) os empregados executantes (EE) — trabalhadores com profissões relacionadas com atividades de serviços, de comércio e administrativas, caracterizados pela sua heterogeneidade, composto por indivíduos de idades e escolaridades distribuídos por vários níveis e onde são mais frequentes trabalhadoras do sexo feminino; (3) os trabalhadores independentes (TI) — trabalhadores que realizam atividades de cariz autónomo, trabalhando por conta própria e sem salário, sendo que geralmente apresentam baixos rendimentos e níveis de escolaridade; (4) os profissionais e técnicos de enquadramento (PTE) — trabalhadores com posições superiores ou intermédias nas respetivas estruturas organizacionais estatais ou empresariais, e que apresentam formação escolar superior; (5) os empresários, dirigentes e profissionais liberais (EDL) — incorporam três diferentes situações profissionais: os empresários, que têm propriedade ou dirigem organizações económicas privadas; os dirigentes, que ocupam os cargos mais elevados de organismos estatais ou privados; e os profissionais liberais, que exercem atividades autónomas, mas com qualificações, rendimentos e prestígio social elevado. De notar que uma boa parte desta categoria incorpora os pequenos empresários, que se aproximam mais, em termos de relações sociais e estruturais, aos TI.
- 4 Em 2021, 75% dos portugueses dizem utilizar internet todos os dias, abaixo da média de 80% da UE e (...)
12Nos mais recentes anos, a internet e as suas utilizações práticas têm sido incorporadas no quotidiano dos indivíduos. Apesar de Portugal continuar nas franjas da União Europeia quando falamos de utilização frequente de internet4 este valor tem aumentando e mostra-se especialmente relevante, e até acima da média europeia, quando se trata de jovens e jovens adultos até aos 34 anos. É de notar que em 2021, pela primeira vez, a faixa etária dos 35 aos 44 anos ultrapassou a média europeia, evidenciando a penetração da internet nas práticas diárias, fenómeno associado também a um acesso mais generalizado a dispositivos tecnológicos (Lapa e Vieira, 2019) e à renovação da faixa etária.
13Existe uma forte tendência de não utilização da internet nas faixas etárias mais elevadas, especialmente nos indivíduos com 65 ou mais anos (74,9% não utilizam a internet, segundo os dados do Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses). No entanto, este problema não se relaciona necessariamente apenas com a idade, como fazem notar Lapa e Vieira (2019). Variáveis como a escolaridade ou a condição perante o trabalho são também explicativas para a utilização ou não da internet. Esta afirmação vai de acordo com o que é registado na figura 1, onde a frequência de indivíduos que não utilizam a internet é visivelmente inferior quanto menor for o nível de ensino completado. Devido a especificidades histórico-demográficas da população portuguesa, a maioria dos indivíduos que apresentam níveis de menor escolaridade são também os indivíduos com uma faixa etária mais avançada, tornando-se este grupo especialmente prejudicado no que toca à falta de acesso e utilização de várias práticas disponibilizadas através da internet, resultando num aglomerado de desvantagens sociais e económicas.
Figura 1 Respostas à questão: é utilizador da internet? segundo o nível de ensino mais elevado que completou (%)
Fonte: Inquérito às Práticas Culturais 2020 (n = 2000).
14Já em relação ao indicador socioprofissional ACM, as duas categorias que estão em maior dimensão na amostra, os operários (O) e os empregados executantes (EE), apresentam resultados bastante diferentes (figura 2). Enquanto na categoria dos O os resultados da utilização da internet se mostram os mais baixos entre as diferentes classes, a categoria dos EE apresenta resultados bem mais elevados. Também neste caso, podemos aferir o peso que a escolaridade pode ter na utilização da internet: no caso dos EE, cerca de 61,5% dos pertencentes a esta categoria têm, pelo menos, o 12.º ano de escolaridade (3.º ciclo do Ensino Básico) concluído; os O apresentam apenas 31,3% de indivíduos com este nível de escolaridade terminado. Neste caso, a idade também pode apresentar-se como uma variável explicativa, onde os O se apresentam em maior dimensão nas faixas etárias mais elevadas, sendo a mais predominante a dos 65 ou mais anos (40,0%) e, de seguida, a dos 45 aos 64 anos (34,1%). No caso dos EE a distribuição por faixas etárias encontra-se bem mais dispersa, mas a que está em maior dimensão é a dos 45 aos 64 anos (35,7%) e, de seguida, a dos 25 aos 44 anos (31,9%). Já os trabalhadores independentes (TI), também apresentam um baixo valor de utilização da internet, que pode ser explicado pelos baixos níveis de qualificação que normalmente apresentam — neste caso, 60,0% dos inquiridos que pertencem a esta classe socioprofissional possuem escolaridade apenas até ao 9.º ano. Quanto às categorias dos profissionais técnicos e de enquadramento (PTE) e dos empresários, dirigentes e profissionais liberais (EDL), em termos de utilização percentual não apresentam grandes diferenças entre si, à primeira vista. No entanto, ambos parecem ser explicados por diferentes motivos. Enquanto na categoria PTE a escolaridade parece ter um peso inegável — 87,6% dos PTE têm, pelo menos o ensino secundário, e 69,7% são detentores de um grau universitário - o mesmo não está tão claramente expresso no caso dos EDL — cerca de 60,6% têm o ensino secundário ou grau mais elevado, enquanto apenas 31,6% apresenta um grau universitário.
Figura 2 Respostas à questão: é utilizador da internet? consoante a categoria socioprofissional ACM (Almeida, Costa e Machado) (%)
Fonte: Inquérito às Práticas Culturais 2020 (n = 1810, correspondendo àqueles que pertencem a alguma classe socioprofissional).
15Será mais provável, portanto,um utilizador da internet pertencer a uma faixa etária mais jovem e que tenha completado, pelo menos, o 9.º ano de escolaridade e que se encontre numa classe socioprofissional com profissões relacionadas com atividades em estruturas organizacionais estatais ou empresarias, quer seja de uma perspetiva de serviços ou administrativa (no caso dos EE), como em posições intermédias, superiores ou de direção (no caso dos EDL e PTE). Estes dados corroboram anteriores pesquisas, que evidenciam que os fatores enunciados são preditores da utilização da internet (Lapa e Vieira, 2019; Vieira, 2018; Martinho e Lapa, 2022). Apesar das maiores adesões às tecnologias, sobretudo devido a questões relacionadas com a mudança estrutural do sistema informacional, que obrigaram a uma maior e mais vasta utilização de aparelhos digitais e em rede, o fosso digital replica a habitual fratura das desigualdades sociais e os mais destituídos dos vários capitais, especialmente o capital cultural institucionalizado, continuam a ser os mais prejudicados ao nível de práticas tecnológicas (Helsper, 2022). É também de realçar a contribuição de Martinho e Lapa (2022), que notam que a inclusão digital não deve ser necessariamente marcada por um estado fixamente binário devido à natureza evolutiva da tecnologia, sendo o seu acesso pautado por reconfigurações constantes que podem acompanhar ou acentuar desigualdades digitais. Poderá ser considerado um “espectro digital” que atenta diferentes maneiras de relação com a tecnologia ao longo do seu processo evolutivo. Assim, aqueles que cresceram já envolvidos na sociedade informacional, com uma adaptação adequada às tecnologias de informação e comunicação, possuem uma vantagem sobre aqueles que não dispuseram dessa oportunidade (Martinho e Lapa, 2022). Por estes motivos, os menos prováveis a utilizar a internet são, geralmente, os menos escolarizados, os mais velhos e os trabalhadores agrícolas ou das indústrias, oficinas, construção e transportes ou aqueles que já estão reformados.
- 5 Fonte: INE. Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação pelas Famílias (20 (...)
16Existe uma camada mais específica de indivíduos que utilizam serviços de streaming online para ouvir música. Daqueles que disseram utilizar a internet, apenas cerca de metade (57,4%) afirmam ouvir música através de serviços online como o Spotify, contrariando dados do INE que apontavam para uma utilização de serviços de música online a rondar os 70%.5 A acrescer a este dado, a maioria dos utilizadores destes serviços não o faz frequentemente (diariamente ou várias vezes por semana) e os que o fazem são apenas 35,4% dos utilizadores. Dos não utilizadores (42,6%), a maioria são indivíduos nas faixas etárias mais avançadas, sendo que 74,8% das pessoas com 65 ou mais anos não utilizam de todo a internet para ouvir música. Os que mais utilizam estão na faixa etária oposta, a dos 15 aos 24 anos, onde 60,7% usam frequentemente estes serviços, mas também na faixa dos 25 aos 44 anos, onde 43,8% adotam esta prática com alguma frequência (várias vezes por semana ou diariamente). É possível percebermos uma muito maior predominância do uso destas tecnologias nas faixas etárias mais jovens: a relação entre estas e a audição de música em plataformas de streaming é muito mais próxima, quaisquer que sejam as categorias de utilização (várias vezes por mês, por semana ou diariamente). No entanto, enquanto os jovens, dos 15 aos 24 anos, têm hábitos onde se mostra que a utilização diária é mais frequente, os jovens adultos, dos 25 aos 44 anos, ouvem música online, mas com mais diversidade na frequência de consumo: nem sempre diariamente, mas geralmente várias vezes por mês ou por semana. Já em relação às faixas etárias mais avançadas, quanto maior a idade, menor será a probabilidade de utilizar streaming online para consumir música.
17Em relação à escolaridade, é de realçar uma tendência ascendente, como é possível observar na figura 3, ou seja, quanto maior o nível de escolaridade maior é o hábito de utilizar plataformas online musicais. No entanto, é de apontar que é apenas com a frequência universitária ou com a obtenção de grau universitário que os valores da categoria “Nunca” se mostram mais baixos, sendo que, mesmo com a conclusão dos 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico ou do Ensino Secundário os valores desta mesma categoria são elevados, rondando sempre a metade em cada nível de escolaridade mencionado. Estes dados confirmam que mesmo aqueles que possuem níveis mais elevados de escolaridade podem mostrar um afastamento do capital cultural institucionalizado e do capital cultural incorporado. Como já havia observado Teixeira Lopes (2009), apesar de a educação formal ser uma condição necessária, não é uma condição determinante para o envolvimento com diferentes disposições culturais, incluindo aqui a audição de música.
Figura 3 Respostas à questão: “com que frequência ouve música a partir da internet (através de qualquer serviço de streaming como o Spotify)?”, segundo o nível de ensino mais elevado que completou (%)
Fonte: Inquérito às Práticas Culturais 2020 (n = 1388, correspondendo aos utilizadores da internet).
18Finalmente, em relação à estratificação socioprofissional, as três classes que auferem tipicamente rendimentos mais baixos e têm níveis de escolaridade inferiores (O, EE e TI) são também aquelas que exibem níveis de utilização de plataformas de streaming musical mais baixos, sendo que nestas três categorias quase metade dos indivíduos que as compõem afirmam que nunca usam tecnologias online para ouvir música, como é observável na figura 4. No entanto, é na classe dos O que vemos a segunda maior percentagem de indivíduos que utilizam diariamente esta tecnologia (16,7%), sendo imediatamente precedidos pelos PTE (17,1%). Contudo, estes resultados devem de ser contrapostos face ao peso da utilização da internet dentro de cada classe socioprofissional. Da classe O, menos de metade dizem utilizar internet no seu dia-a-dia, ou seja, estamos a referirmo-nos a 16,7% dos 47,5% que compõem a amostra de utilizadores de internet que são operários. É nesta classe socioprofissional que se nota uma maior utilização diária do streaming musical, mas, por outro lado, é onde existe também a maior percentagem de não utilização da internet. No caso dos PTE, trata-se de 90,3% desta classe socioprofissional que utiliza internet, portanto, face a estes resultados, poderia até ser expectável que a percentagem de utilização diária de plataformas de streaming musical fosse mais elevada neste grupo. Quanto aos resultados das classes que auferem rendimentos mais elevados e têm níveis de escolaridade também mais elevados, os EDL e os PTE, apesar de apresentarem valores inferiores na categoria “Nunca” quando comparados com as restantes classes, estes dois grupos exibem diferenças entre si. Observando novamente a figura 4, os PTE apresentam valores mais elevados nas categorias que apontam algum nível de uso ou uso frequente de plataformas de streaming musical, com destaque para as duas categorias centrais; já os EDL têm uma presença forte na utilização semanal, mas mais baixa na categoria diária e nas restantes que denotam um uso moderado.
Figura 4 Respostas à questão: “com que frequência ouve música a partir da internet (através de qualquer serviço de streaming como o Spotify)?”, segundo o grupo socioprofissional ACM (%)
Fonte: Inquérito às Práticas Culturais 2020, segundo utilização da internet (n = 1238, correspondendo aos utilizadores da internet que pertencem a alguma classe socioprofissional).
19Num plano geral, e comparando entre todas as classes socioprofissionais, é possível perceber que as classes de mais baixo rendimento e escolaridade (O, EE, TI), apresentam níveis de utilização de streaming musical mais baixos, mas quando olhamos para as práticas dentro de cada classe socioprofissional estas são suficientemente diversificadas entre si. Mesmo estando esta falta de utilização mais acentuada nas classes sociais mais baixas, este não parece ser um fenómeno que se mostre exclusivamente nelas, existindo práticas variadas em todas as classes.
20Podemos perceber que, para quem já era utilizador da internet regularmente, o uso de plataformas de streaming musical não é tão extensivo como poderia ser figurado. Esta utilização é um fenómeno que toca preferentemente as faixas etárias mais jovens e mais escolarizadas, mas pode ser frequente entre as diferentes classes socioprofissionais. Estes dados podem jogar a favor do argumento da democracia cultural, tal como explicada por Teixeira Lopes (2009), que nega a cultura como forma de hierarquização social, e que a encara como um direito universal, aberta e que aceita todas as formas de expressão, onde a cultura dita erudita e a cultura popular são avaliadas da mesma forma e não assumem qualquer tipo de superioridade entre si, e onde o público não é uma massa homogénea, mas sim um conjunto de pessoas com as suas especificidades, ou seja, não renegando as desigualdades sociais em função da noção de consumidor ou visitante. Assim, existindo um acesso cada vez maior à internet e às suas diferentes ramificações, seria expectável que a sua utilização fosse mais acentuada, particularmente em pessoas mais instruídas. A questão está precisamente nos dois termos utilizados, sendo que acesso não equivale a utilização, ou seja, não é por existirem infraestruturas generalizadas que facilitam o acesso a objetos do âmbito cultural que eles serão utilizados automaticamente. Apesar de existir um acervo quase infinito de conteúdos culturais online, podemos perceber, pelos dados que têm sido expostos, que a exclusão e a divisão digital são uma realidade concreta, que vai além da simples dicotomia de ter ou não acesso à internet (van Dijk, 2005; Martinho e Lapa, 2022). Para além disto, na linha do habitus de Bourdieu há que ter em conta que as preferências pessoais e as diferentes motivações são importantes no tipo de envolvimento com a cultura. Mesmo que um indivíduo, para além de ter acesso, possa envolver-se com a cultura devido a determinados privilégios com base nos diferentes tipos de capital, se este não se interessar por determinada forma cultural, não a vai procurar. Se não procura esse envolvimento fora da rede, também não o irá procurar devido à utilização da internet (van Deursen e Helsper, 2018). A perspetiva aqui usada é aquela que acredita que o uso da internet não confere poder a nenhuma classe ou estratificação em especial, mas sim que este uso (ou não uso) replica as estruturas habituais da sociedade (DiMaggio e Garip, 2012), sendo também credível a hipótese que confere à presença online uma força ampliadora da estratificação existente, sugerindo que as desigualdades saem ainda mais reforçadas com a utilização de ferramentas online (Scheerder, van Deursen e van Dijk, 2020).
21Apesar de a sociologia da cultura ser já um domínio consolidado na investigação portuguesa (Baptista, Mendes e Machado, 2021), no seu contexto académico tem sido geralmente difícil encontrar fontes fidedignas de informação que analisem o gosto como uma variável quantitativa, quer seja este o gosto musical, quer seja de qualquer outra vertente artística. Com os baixos recursos que se têm alocado à investigação académica em Portugal, conjuntos de dados que possam ser representativos e que ao mesmo tempo tenham disponíveis categorias e variáveis específicas que interessem particularmente a este tipo de estudo são raras, apesar de até existirem aqueles que desacreditam o estudo do gosto através de métodos puramente quantitativos pois desvirtuam os significados atribuídos a cada expressão artística, atribuindo etiquetas relativamente vagas para descrever estilos e objetos musicais (Atkinson, 2011), não sendo essa a perspetiva aqui utilizada.
22Apesar de absolutamente relevante em termos de investigação para diferentes temáticas que concernem a sociologia da cultura, e até outras especialidades sociológicas, quando tentámos estudar o gosto musical utilizando o Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses de 2020, encontrámos algumas limitações. Não podemos afirmar que esta questão seja totalmente ignorada, mas toma forma sobre uma variável que pode originar alguns problemas empíricos. Assim, apenas podemos analisar o gosto musical, ou neste caso, a prática cultural que reflete o gosto, através da presença dos inquiridos em concertos, sendo que estes concertos são discriminados com base no género musical. Não existe uma questão no guião do inquérito que trate especificamente o gosto musical por si só, para além de apenas se poder selecionar o último concerto em que se esteve presente, não havendo espaço para a seleção de múltiplas hipóteses, o que reduz ainda mais o tipo de análise possível. Este facto cria alguns problemas: temos de assumir que o indivíduo que vai a um concerto de determinado estilo musical, gostará desse estilo musical, rejeitando a hipótese de que possa ir como acompanhante (e tal poderá acontecer, tal como já apontado por Lahire [2008]) ou por qualquer outro motivo; nem todos os indivíduos têm a mesma disponibilidade para ir a concertos, seja por motivos financeiros, físicos, ou de qualquer outra ordem, ao contrário da audição de música que pode ser uma prática relativamente acessível e com baixos custos associados. No entanto, tal como observamos no quadro 1, apesar de existirem diversos motivos que podem impossibilitar sujeitos de frequentarem mais vezes concertos ou espetáculos, o principal motivo que as leva a não o fazer é, segundo as respostas dadas, a falta de interesse — destes, cerca de 87,0% pertencem às classes com menores níveis de instrução e rendimentos (O, EE e TI). É necessário ter em consideração os motivos de ordem económica, da falta de tempo para o lazer, da necessidade de descentralização dos espetáculos ou da perceção da idade dos indivíduos que os leva a crer que não devem ou não podem frequentar espetáculos. Assim, tendo em atenção estes problemas, e admitindo que as idas a espetáculos ao vivo de determinados géneros musicais convergem com o habitual gosto musical do indivíduo, e que as não idas se deparam mais com questões de falta de tempo ou interesse, utilizaram-se as variáveis “último concerto em que esteve presente” e “último festival ou festa local a que assistiu” como as que representam o estilo musical dos indivíduos.
Quadro 1 Motivos pelos quais os inquiridos não frequentam mais vezes concertos ou espetáculos ao vivo (em percentagem)
Fonte: Inquérito às Práticas Culturais 2020 (n = 2000).
23Fazendo uma breve análise sobre os públicos dos concertos, podemos concluir que a maioria dos indivíduos que os frequenta usa a internet (94,2%), pertence a uma faixa etária adulta (46,7% estão na faixa dos 25 aos 44 anos e 27,7% no segmento dos 45 aos 65 anos, sendo que são apenas 8,4% com 65 ou mais anos) e tem pelo menos o ensino superior (cerca de 72,5% dos indivíduos, sendo que se acrescentarmos aqueles com pelo menos o 9.º ano de escolaridade, teremos 87,2%). Os que usam serviços de streaming são cerca de 75% dos que vão a espetáculos de música ao vivo, mostrando que existe uma transferibilidade das práticas online para as práticas off-line (van Deursen et al., 2017; Hargittai e Hinnant, 2008). Estes resultados espelham o afastamento de certas camadas da população relativamente a certas práticas culturais. É de ressalvar também que há só uma pequena franja da população que frequenta concertos: dos 2000 inquiridos, apenas 24,1% responderam estar presentes num espetáculo de música ao vivo no último ano e 24,6% disseram ter ido a um festival de música, mesmo sem contar com o ano pandémico. Ir a um concerto é, em Portugal, um fator de distinção social.
- 6 O pop e o hip-hop (ou derivações destes géneros), mais até que o rock, dominam as listas dos tops m (...)
24Em relação ao estilo musical, o pop/rock é, sem dúvida, o género de música onde existe a maior frequência de idas a concertos, sendo que cerca de 54,8% do total de idas são de concertos destes estilos musicais. Este género é seguido pela música clássica (8,8%) e música tradicional ou folclórica (8,6%). A dominância do pop/rock pode ser explicada, para além da óbvia popularidade6 de ambos os géneros, pela escolha dos autores em englobar ambos os estilos musicais numa mesma etiqueta. Esta opção acaba por ser um defeito desta variável, visto que o pop e o rock apresentam estéticas e públicos diferenciados, devendo ser tratados como categorias diferentes. O mesmo se passa com outras categorias que são aglomeradas, como é o caso das músicas do mundo (ska, salsa, blues, etc.) que são todas reunidas num mesmo conjunto. Contudo, existem estilos musicais que poderiam ser considerados nesta etiqueta que ficam de fora e apresentam uma categoria própria, como é o caso da música africana ou da música popular brasileira/bossa nova. Entende-se que esta escolha por parte dos autores do inquérito se possa deparar por uma estratégia para obter mais respostas e menos resultados residuais, mas ao existir uma aglomeração excessiva, acaba por se perder uma análise mais fina. Para além disto, as etiquetas podem causar alguma confusão na sua designação: por exemplo, na etiqueta “latino-americana” tanto podemos referirmo-nos a espetáculos de tango como podemos fazê-lo em relação a espetáculos de reggaeton. Ambos são estilos que devêm de influências estéticas latino-americanas, mas que apelam a públicos bastante diferentes entre si.
25Foi realizada uma análise de correspondências múltiplas (ACM), devido à sua capacidade de traduzir graficamente resultados, especialmente quando “é necessário interagir com espaços de análise multifacetados e relacionais, definidos à custa de indicadores (quase exclusivamente) categorizados” (Carvalho, 2007: 23-24). O método ACM possibilita a identificação das associações privilegiadas entre as categorias em análise, permitindo encontrar grupos ou perfis homogéneos. Neste caso, foram usadas como categorias ativas o “último concerto” segundo o estilo musical, o “último festival/festa local” segundo o tipo de festival e a “frequência com que ouve música através de serviços de streaming como o Spotify”, de modo que se percebesse como se espalham os indivíduos no espaço social segundo o estilo musical dos espetáculos que frequentam e os seus consumos de streaming. Como variáveis suplementares foram usadas aquelas que têm sido apresentadas nos resultados anteriores: a escolaridade, a faixa etária e a classe socioprofissional ACM. As variáveis ativas e as variáveis suplementares foram separadas graficamente para que haja uma melhor visibilidade entre figuras.
Figura 5 Configuração topológica do espaço de práticas online e off-line relacionadas com música
Legenda: Quando existe um F antes do estilo musical, referimo-nos a um festival, quando existe um M, referimo-nos a um concerto. Por exemplo: FTrad, Música mundo — Festival de Música Tradicional e Músicas do mundo; MFolclorTrad — Concerto de música folclórica e tradicional.
Fonte: Inquérito às Práticas Culturais 2020.
- 7 As respetivas medidas de discriminação encontram-se em anexo.
26Foram identificadas duas dimensões,7 a dimensão 1 (explica 14,3% de variância), onde se destaca o consumo online de música através de plataformas de streaming; e a dimensão 2 (explica 11,6% de variância) onde se destacam os consumo off-line, neste caso, a ida a concertos e a festas/festivais, discriminados por estilo musical. Cruzando estas duas, percebemos no plano algumas relações entre a utilização da internet e a ida a espetáculos ao vivo. Repare-se que no eixo do y, existe uma oposição entre os resultados dos quadrantes à sua esquerda (2.º e 3.º) e à sua direita (1.º e 4.º), separando-se os indivíduos por classes, escolaridade e idade e, por sua vez, também por gostos e variedade de consumo, quer seja este off-line ou online. A parte esquerda do eixo é caracterizada pelo ecletismo, pela variedade de ida a espetáculos ao vivo e pela variedade no uso de plataformas online, enquanto a parte direita é o seu oposto, caracterizada pela quase ausência das práticas enunciadas. No 1.º quadrante existe a presença das classes populares (operários, empregados executantes e trabalhadores independentes), muito separadas de práticas relacionadas com a ida a concertos, excetuando os concertos pop/rock e as festas locais. Já no 4.º quadrante, e estando estas categorias próximas das classes mais populares, podemos perceber que a resposta Nunca (utiliza serviços streaming como o Spotify) se aproxima dos níveis de escolaridade mais baixos (1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico ou sem 1.º ciclo/analfabetismo) e das faixas etárias mais avançadas, especialmente a faixa dos 65 ou mais anos.
27Já os 2.º e 3.º quadrantes são aquele onde existe maior densidade de categorias. Observa-se uma associação forte entre gostos de variados géneros como o rap/hip-hop, a música folclórica ou tradicional, bossa nova ou fado, e a utilização da internet em várias modalidades (de diariamente a várias vezes por ano), fazendo sentido que estas categorias estejam relacionadas com um público mais jovem (entre os 15 e os 44 anos), mais escolarizado (com o ensino universitário ou ainda a frequentá-lo) e com classes socioprofissionais que normalmente apresentam posições superiores, os PTE e os EDL.
28Quanto mais jovens e mais escolarizados são os indivíduos, mais associações gráficas existem entre práticas musicais e consumos online. Aqueles que mais se envolvem com o consumo de música online, parecem ser também aqueles que mais investem no consumo fora da rede. A exceção aqui acontece nas festas locais e nos concertos de pop/rock, havendo uma alusão à teoria de Bourdieu e à homologia entre posição social e gosto, visto que são as classes mais populares que estão associadas a este consumo também mais popular e menos variado. No lado oposto, encontramos as classes dominantes, sendo possível observar uma maior associação entre espetáculos de estilos considerandos mais eruditos. Por outro lado, é curioso que os PTE e os EDL tenham associações também a estilos mais populares, como o hip-hop/rap. Apesar de existir apenas uma resposta por inquirido, não sendo possível testar plenamente a teoria da omnivoridade, não deixa de ser interessante como as respostas das classes socioprofissionais PTE e EDL podem obedecer a uma lógica omnívora, havendo a apropriação de estéticas distintas, como o caso do hip-hop e do fado ou da música popular brasileira/bossa nova, não esquecendo que estes também se encontram próximos de festivais de música tradicional/do mundo e da música clássica.
29É notório que as classes dominantes (EDL e PTE) são as que estão presentes numa maior variedade de concertos com diferentes estilos musicais e as que mais utilizam plataformas de streaming para ouvir música. Já as classes dominadas (O, EE, TI) parecem não ter as mesmas oportunidades para esse consumo e mostram-se muito afastadas de práticas associadas à música, parecendo que as práticas online reconhecem esse afastamento.
Figura 6 Configuração topológica do espaço social
Legenda: EB (Ensino Básico); PTE (Profissionais e Técnicos de Enquadramento); EDL (Empresários, Dirigentes e Profissionais Liberais); EE (Empregados Executantes); TI (Trabalhadores Independentes); O (Operários).
Fonte: Inquérito às Práticas Culturais 2020.
30Assim, estas figuras ajudam-nos a compreender que existem perfis socioculturais que obedecem a diferentes lógicas e que podem acentuar-se segundo diferentes variáveis sociodemográficas. Estas variáveis não são inertes nem apresentam um caráter determinativo, mas é seguro afirmar que há certas tendências estatísticas entre elas. Nestes casos, pode tornar-se relevante a pesquisa de Lahire (2004, 2006, 2008) que, apesar de não negar que tendências estatísticas existem, alerta para a necessidade uma análise mais fina, sendo que o gosto e as práticas de cada indivíduo resultam de múltiplas socializações que acontecem no decorrer da sua vida e das suas condições sociais únicas. A variação intraindividual de práticas e preferências culturais, não é mais que o sintoma, ao nível do social interiorizado, da pluralidade da oferta cultural e também da pluralidade dos grupos sociais responsáveis por apoiar ou rejeitar as diferentes ofertas culturais. Tal variação é produto de uma diferenciação social elevada e, mais precisamente, de uma pluralidade de influências socializadoras, do contexto e do tempo de uma determinada prática cultural.
31Através do que foi exposto foi percebido, que em Portugal, a democratização crescente do acesso à tecnologia parece não ser suficiente para mitigar desigualdades e para podermos falar de uma democracia cultural. Parece existir, em vez disso, um mais facilitado acesso à cultura que pode explicar porque é que o fenómeno de consumo de música online seja relativamente frequente entre todas as classes, para aqueles que utilizam internet (nestes utilizadores já é possível identificar divisões). Não obstante, e em consonância com muita da literatura contemporânea sobre as chamadas desigualdades digitais de 3.ª ordem (Helsper, 2012; Lapa e Vieira, 2019; Martinho e Lapa, 2022), aqueles que apresentam menor nível de escolaridade, mais idade, e que auferem menos rendimentos, continuam a ser os que são mais afastados do acesso à internet e da efetiva capitalização das tecnologias que derivam dos usos avançados destas. Ou seja, existem certas características sociais que conferem aos indivíduos uma menor probabilidade estatística de utilizar a internet e todos os serviços e oportunidades que o seu uso informado e capacitado pode trazer. Neste caso, as diferenças que encontrámos entre grupos não parecem acontecer necessariamente por se tratar da utilização de streaming musical em si, mas por se tratar da utilização de uma tecnologia que necessita de um certo nível de literacia digital. Por isso, mesmo que os dispositivos estejam disponíveis para a generalidade da população, se não existirem competências para os adotar, muito dificilmente haverá um resultado positivo do envolvimento da população com a tecnologia (Scheerder, van Deursen e van Dijk, 2020).
32A acrescer a isto, a utilização de streaming musical não é tão extensiva como poderia ser figurado — apenas 53,7% da população utiliza esta tecnologia, segundo os dados do Inquérito às Práticas Culturais de 2020. Este é um fenómeno que diz respeito a faixas etárias mais jovens, mais escolarizadas, mas que não é necessariamente exclusivo das classes socioprofissionais mais privilegiadas. Foi possível perceber que a falta de interesse, de tempo e de recursos financeiros são os principais motivos que afastam pessoas, especialmente aquelas que pertencem a classes socioprofissionais mais populares, deste tipo de práticas culturais. As suas motivações pessoais são fatores importantes no envolvimento com a cultura e, mesmo que haja competências para existir um envolvimento com a tecnologia, se não existir um interesse prévio por determinada forma cultural, isso não será procurado online (van Deursen et al., 2017; Hargittai e Hinnant, 2008). Sabemos, então, que quem usa a internet tem mais tendência a frequentar espetáculos, a ouvir música através dela, a utilizá-la para aceder a diferentes formas de cultura. Aqueles que mais se envolvem com o consumo de música online são também aqueles que mais se envolvem no consumo fora da rede. No entanto, é importante ressalvar que isto acontece não porque a internet configure diferentes poderes aos indivíduos, mas porque quem utiliza a internet em Portugal tem normalmente associado a si outros tipos de privilégios, especialmente de ordem económica e social. A utilização de tecnologias online apenas replica, e por vezes aumenta, a habitual hierarquização social de desigualdades (Scheerder, van Deursen e van Dijk, 2020).
33Quanto ao gosto, é de notar que as classes com os capitais mais elevados também mostraram proximidade a estéticas mais “populares”, para além da proximidade à música considerada mais erudita. Concluímos que diferentes perfis socioculturais obedecem a diferentes lógicas, mas continuam a ser muito mais frequentes as práticas relacionadas com o consumo musical variado nas classes mais privilegiadas de capitais. Bourdieu (1984) já havia apontado que o desenvolvimento do gosto é também feito consoante a necessidade. Quando existe tempo para explorar o gosto, torna-se uma necessidade a elaboração do mesmo, enquanto se não existir tempo, nem recursos, essa necessidade é suprimida por outras necessidades mais urgentes.
34Concluímos que políticas públicas mais inclusivas para a adoção de tecnologias de modo informal nas faixas etárias mais envelhecidas e menos escolarizadas podem fazer a diferença e criar ligações mais fortes não só com a cultura, mas também com outros domínios de interesse e que lhes configurem novas oportunidades (sociais, laborais ou no acesso ao conhecimento e informação, etc.). No entanto, esta abordagem deverá ser compreensiva: não deve apenas dar-se às pessoas as informações ou os equipamentos que lhes permitam aceder à internet, mas conferir uma abordagem pedagógica, que aumente não só o conhecimento, mas também o bem-estar e as formas de contacto com a música, bem como com outro tipo de bens culturais.
35Este estudo foi financiado por fundos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da bolsa de doutoramento com a referência 2022.13064.BD.
Quadro Medidas de discriminação da análise de correspondências múltiplas
Legenda: a variáveis suplementares;
Nota: as pontuações a negrito indicam a dimensão onde a variável mais discrimina; quando estão sublinhadas indicam que também podem discriminar nessa dimensão.