- 1 Decreto Lei no. 18 570, de 8 de julho, do Ministério das Colónias. Diário do Governo: I série, nº 1 (...)
1O “Acto Colonial” — corpo legal que definia a relação entre a metrópole e as colónias —, aprovado em 1930 e integrado na Constituição de 1933, estabeleceu as linhas mestras da política colonial das primeiras décadas do Estado Novo português (1933-1974). Nele, registava-se que era “da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica e essencial de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam.” Desde então, os domínios ultramarinos de Portugal passariam a denominar-se “colónias”, constituindo o “Império Colonial Português”.1
- 2 A Comissão de Cartografia era um organismo auxiliar da Secretaria de Estado da Marinha e do Ultrama (...)
- 3 Em finais de 1945, um novo diploma legal (Decreto Lei nº 35 395) reorganizou a Junta, convertendo-a (...)
2De forma a concretizar estes princípios, o Ministério das Colónias empreendeu uma importante reforma: em 1936 foi extinta a Comissão de Cartografia2 e, em sua substituição, foi criada a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (JMGIC), cuja missão primordial era a de promover o reconhecimento científico das colónias3 (Castelo, 2012). Por dificuldades várias, a Junta só iniciou os seus trabalhos a partir de 1940, tendo-se definido um plano de investigação científica quinquenal (1942-1947) onde, para além de várias missões ao ultramar, também se previa a edição de memórias elaboradas a partir do material entretanto coligido, bem como a impressão de novos mapas e de um “Atlas do Império Colonial”, até porque, “sem cartas geográficas, sem o estudo da geologia, da flora, da fauna, da antropologia, etc., não é possível fixar um plano administrativo consciencioso” (Portugal, 1945: 96).
3Entre 1929 e 1945, tanto a Comissão de Cartografia como a JMGIC desenvolveram nada menos de 12 missões de investigação colonial, de natureza geográfica, hidrográfica, etnográfica, antropológica, botânica e zoológica (por seu turno repartidas em várias campanhas): cinco missões a Moçambique, três a Angola, duas a Timor e igual número de missões à antiga Guiné Portuguesa.
4Foi neste contexto político e institucional que, em 1948, a JMGIC e o Ministério das Colónias publicaram o Atlas de Portugal Ultramarino e das Grandes Viagens Portuguesas de Descobrimento e Expansão, sob coordenação geral do seu presidente, o engenheiro José Bacelar Bebiano. Trata-se de uma obra de grandes dimensões (50 x 36 cm), composta por 110 mapas impressos a cor no Instituto Geográfico e Cadastral, sob a direção técnica de António G. da Graça Costa, chefe da Secção de Publicação de Cartas do referido Instituto, com datas que variam entre 1940 e 1948.
5A edição deste atlas correspondia à concretização de um dos objetivos estatutários da Junta, o de divulgar os resultados das missões de investigação, e que aqui eram apresentados de uma forma condensada, através de um atlas colonial temático. Os editores justificavam a edição pelo facto de o Atlas Colonial Português, editado pela Comissão de Cartografia, em 1914, estar há muito esgotado. No entanto, dado que a missão da Junta era mais ampla que a da anterior Comissão, o atlas, para além de mapas “estritamente geográficos” (Portugal, 1948: [1]), compunha-se de outros de cariz hipsométrico, demográfico, etnolinguístico, geológico-mineral, fitogeográfico e económico (atividades e relações económicas).
- 4 Corresponde à monografia Grandes viagens portuguesas de descobrimentos e expansão, antecedentes his (...)
6Uma vez que no discurso colonialista do regime o precedente histórico das “descobertas” ocupava uma posição central, a segunda parte do título da obra — … e das Grandes Viagens Portuguesas de Descobrimento e Expansão —, ganhava uma maior dimensão e explicava a inclusão de dez mapas históricos, assim como a indicação de que esta temática seria desenvolvida numa obra autónoma, o que veio a acontecer em 1951.4
7É interessante notar a atenção dedicada ao Brasil, enquanto espaço lusófono e exemplo do “padrão eloquente das nossas qualidades expansionistas”, tal como se expressava no prólogo, materializando-se em dois mapas históricos dedicados àquele país sul-americano. O primeiro destes mapas, intitulado Explorações portuguesas no continente Sul Americano, no Século XVI, figura as 24 Capitanias-Donatárias em que se dividiu o território do Brasil, desde o litoral até ao limite estipulado pelo meridiano de Tordesilhas (Figura 1); o segundo, denomina-se Explorações portuguesas no continente Sul Americano no Século XVII. Em ambos, as explorações foram representadas por pequenos retângulos numerados, distribuídos pela cartografia da América do Sul, correspondente ao nome do explorador e a uma data. Nenhum percurso foi reconstituído, ao contrário daquilo que foi feito no mapa que mostra as explorações em África.
Figura 1: “Explorações portuguesas no continente Sul Americano, no Século XVI”
Carta integrada no Atlas de Portugal Ultramarino (Carta 9). Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1948
© Mapoteca do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG-IGOT-ULisboa – AT-C-1)
8A comissão executiva da JMGIC apresentava esta edição do atlas como sendo provisória, uma vez que antevia a necessidade de preparar uma nova, mais completa e cuidada, que levasse em linha de conta as sugestões e as correções propostas pelos leitores, até porque já haviam sido identificadas algumas falhas sem, contudo, ter tido tempo para as emendar. Algumas destas deficiências prendiam-se com a falta de uniformidade que um atlas deveria apresentar relativamente à tipologia cartográfica utilizada ou ao nível da apresentação da legenda de alguns dos mapas temáticos impressos.
9O prefácio termina realçando o papel das várias instituições e colaboradores que concorreram para a realização do atlas, destacando-se, entre todos, o Instituto Geográfico Cadastral, “onde muitas das cartas foram desenhadas e todas gravadas e impressas” (Portugal, 1948:[2]). Em todo o caso, no final da obra, publica-se uma longa lista das entidades e dos indivíduos que participaram na realização de cada um dos mapas dos diferentes territórios coloniais portugueses.
10O Atlas organiza-se em duas partes, sendo a primeira, composta por dez mapas históricos dedicados às viagens de exploração geográfica dos portugueses em África, na Ásia e na América e por três mapas de referência geral do Império Colonial português, um mapa da demografia ultramarina (Figura 2), um mapa da rede de transportes de Angola e Moçambique e um mapa hipsométrico do continente africano. A segunda parte forma o corpo principal da obra e representa as várias colónias do Atlântico ao Índico, em 97 mapas assim distribuídos: Arquipélago de Cabo Verde, 21 mapas; Guiné, oito mapas; Ilhas de S. Tomé e do Príncipe, 13 mapas; Angola, 17 mapas; Moçambique, 14 mapas; Estado da Índia, 12 mapas; Macau e Territórios Vizinhos, quatro mapas e Timor, oito mapas (Figuras 3 a 5).
11Este desequilíbrio na representatividade dos territórios reflete, pelo menos em parte, os trabalhos desenvolvidos pelas várias missões científicas ao ultramar. No relatório de atividades apresentado em 1945, a JMGIC referia que Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Macau “têm já a sua completa representação em cartas geográficas regulares” (Portugal, 1945: 119), pois os trabalhos geodésicos, cartográficos e hidrográficos já tinham sido concluídos pelas várias missões geodésicas e geográficas, e os mapas devidamente publicados durante as décadas de 1920 e 1930 (Santos, 2006). Por sua vez, as colónias de Moçambique, Índia e Timor, tinham em estado adiantado os trabalhos de levantamento cartográfico, contudo sem estarem concluídos, ao passo que na Guiné e em Angola os trabalhos estavam bastante mais atrasados.
Figura 2: “Carta demográfica do Império Colonial Português”
Integrada no Atlas de Portugal Ultramarino (Carta 11). Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1948
© Mapoteca do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG-IGOT-ULisboa – AT-C-1)
Figura 3: “Carta hipsométrica do arquipélago de Cabo Verde”
Escala 1:500.000, integrada no Atlas de Portugal Ultramarino (Carta 26). Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1948
© Mapoteca do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG-IGOT-ULisboa – AT-C-1)
Figura 4: “Esboço geológico e mineiro de Angola”
Escala 1:6.000.000, integrado no Atlas de Portugal Ultramarino (Carta 64). Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1948
© Mapoteca do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG-IGOT-ULisboa – AT-C-1)
Figura 5: “Colónia de Moçambique: divisão administrativa”
Escala 1:4.000.000, integrado no Atlas de Portugal Ultramarino (Carta 76). Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1948
© Mapoteca do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG-IGOT-ULisboa – AT-C-1)
12Relativamente aos outros domínios científicos, só a hidrografia recebia quase a mesma atenção, enquanto se verificava um atraso significativo no desenvolvimento das restantes investigações, pelo que muitos dos resultados apresentados pelos mapas geológicos, botânicos, zoológicos, etno-antropológicos e económicos eram considerados esboços, em virtude dos estudos parciais e provisórios de que se dispunha.
13Em suma, o Atlas de Portugal Ultramarino constituiu uma obra de aparato, para funções de propaganda da ação colonial e que, presumivelmente, deve ter sido pensada para ser editada em 1940, de forma a coincidir com a “Exposição do Mundo Português”, destinada a celebrar o “Duplo Centenário da Fundação e da Restauração da Nacionalidade (1140 e 1640)”, mas que serviu mais para afirmação do regime político do Estado Novo e da sua política imperial. De acordo com os seus organizadores, o atraso na edição ficou a dever-se às atribulações provocadas pela II Guerra Mundial, assim se justificando a desatualização da informação de alguns mapas.
14Tendo conhecido uma ampla circulação, o Atlas falhou, no entanto, na sua missão de se afirmar como obra divulgadora dos esforços científicos dos portugueses no Ultramar. Efetivamente, muitos dos mapas e esboços geográficos das várias colónias portuguesas correspondem a versões reduzidas, redesenhadas e atualizadas de outros que já eram conhecidos e que haviam sido publicados pela Comissão de Cartografia, em alguns casos duas décadas antes. Contudo, pretendia distinguir-se dos anteriores atlas coloniais com a inclusão de vários mapas temáticos, que permitiam ampliar a caracterização da geografia física e humana dos territórios coloniais. Não obstante, mereceu amplas críticas, pelo menos da parte dos geógrafos portugueses.
15Francisco Tenreiro, na análise cartográfica que realizou sobre a ilha de São Tomé e Carlos Alberto Medeiros, no estudo sobre os mapas do arquipélago de Cabo Verde, não dedicaram mais que algumas palavras circunstanciais ao Atlas, sem lhe reconhecerem mérito científico digno de menção (Tenreiro, 1961; Medeiros, 1967). Contudo, as críticas mais contundentes foram feitas por Orlando Ribeiro, num texto escrito em 1949, mas só recentemente publicado (Ribeiro, 2017 [1949]). Nele foram apontadas as inúmeras e indisfarçáveis falhas técnicas, tanto no que se refere ao desenho, quanto à escolha da projeção cartográfica, à omissão das escalas e das fontes, ou a má e incorreta representação de fenómenos, como a hipsometria ou a distribuição da população:
(…) se esta reserva é injusta ou exagerada, ela deve-se apenas às falhas, erros e deficiências de critério, que o Atlas abundantemente proporciona ao exame crítico (...). Com excelente apresentação gráfica e a chancela do organismo oficial, bom ou mau, o Atlas, vai correr mundo: levando infelizmente a toda a parte o claro testemunho do atraso da Cartografia e da Geografia colonial no país que outrora abriu caminho a estes estudos! (Ribeiro, 2017 [1949]: 665)
16Não obstante, até ao fim do Império, em 1975, a JMGIC desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento e na divulgação dos reconhecimentos científicos dos territórios ultramarinos portugueses, e em especial a Geografia portuguesa.