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História da geografia e geografia histórica
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O livro Evolução, Raça e Ambiente. Darwinismo Social e formação da Geografia americana em Ellsworth Huntington e Ellen Semple, de Fernando José Coscioni
Sergio Nunes Pereira
Referência(s):

Coscioni, Fernando José. Evolução, Raça e Ambiente. Darwinismo Social e formação da Geografia americana em Ellsworth Huntington e Ellen Semple. Salvador: Sagga, 2022, 216 p.

Texto integral

1Não são comuns estudos em português sobre o passado do pensamento geográfico disciplinar, fato que, em si, já singulariza Evolução, Raça e Ambiente. Mas Fernando Coscioni acrescenta outros motivos para saudarmos a publicação desse livro, fruto de uma pesquisa de doutorado particularmente bem-sucedida. Coscioni já havia escrito uma dissertação de mestrado sobre Richard Hartshorne (1899-1992), personagem dominante no cenário acadêmico da geografia anglo-saxônica em meados do século XX; contudo, em vez de dar-se satisfeito com tal incursão historiográfica, o autor optou na sequência de seus estudos por um recuo cronológico ainda mais acentuado, chegando ao final do século XIX e início do XX para testemunhar o encontro do darwinismo social com o nascimento da geografia humana nos Estados Unidos. Tratava-se, nesse caso, de um capítulo remoto do pensamento geográfico naquele país, cercado de questionamentos por seu imbricamento com o ambiente social e político dominante no período, de feição nitidamente conservadora.

2Tais questionamentos poderiam partir de diferentes premissas, como as implicações ideológicas inerentes ao tema ou o rarefeito ambiente acadêmico norte-americano então existente, se temos em conta a geografia humana – Davis era um caso à parte. O que me tocava pessoalmente, no entanto, ia muito além dessas constatações evidentes. Por dever profissional, eu conhecia os personagens e o contexto geral da formação da geografia nos Estados Unidos, mas não estava convencido da utilidade de voltar em detalhe a eles, pelo menos em um programa didático de história do pensamento geográfico em nível de graduação. Afinal, porque apresentar aos alunos autores como Ellen Semple e Ellsworth Huntington se eles representam versões vulgarizadas de Ratzel ou coisa pior – no caso de Huntingon –, como a crença nas influências climáticas sobre a história dos povos, condenada pelo geógrafo alemão? Em outras palavras, reabilitar Ratzel ou poupá-lo de interpretações simplificadoras conduzia a certos silenciamentos que, no fundo, constituem o desconhecimento voluntário de uma história. Seria esse o preço a pagar?

3Outra forma de ver a questão é admitir que lançar luz sobre esses autores ajuda a fazer uma história da geografia melhor, que transcenda o pensamento geográfico em si, balizado ou não em Ratzel. Mais do que ler autores em função de outros é preciso conhecê-los em sua dimensão intrínseca, relacionada ao conjunto de ideias científicas e filosóficas de uma época, por um lado, e à trama da institucionalização dos saberes acadêmicos em um determinado momento e lugar, por outro. Enfim, trata-se efetivamente de fazer pesquisa historiográfica em suas diversas matizes: intelectual, contextual e documental. É justamente isso que Fernando Coscioni se dispõe a fazer nesse livro – e cumpre extremamente bem a tarefa. De um ponto de vista estritamente pessoal, o trabalho me convenceu sobre a necessidade de se voltar a autores que eu tinha deixado e lado ou simplesmente contornado em minha prática docente. No entanto, vale a pena voltar a eles, em benefício de uma história da geografia articulada com a história das ciências e a história social das ideias. Para justificar esse argumento é necessário recorrer à estrutura do livro e alguns aspectos de seu conteúdo.

4Antes de mais nada, é preciso dizer que o autor domina perfeitamente a arte da pesquisa e da escrita acadêmicas. Estamos diante de um trabalho situado na contramão do voluntarismo. Ao contrário. Coscioni dá mostras que se preparou metodicamente para sua elaboração, no plano teórico-metodológico, no diálogo com a literatura historiográfica, no repertório documental e na recomposição da trama contextual que cerca seu objeto. Ao recorrer à história da geografia, o faz acercando-se dos autores que a compreendem na linha da sociologia do conhecimento e da história social das ciências. É com David Livingstone e Vincent Berdoulay que ele dialoga mais frequentemente; no entanto, no que me pareceu um “achado bibliográfico”, traz à baila também o menos conhecido Henry Aay, com sua crítica ao “presentismo historiográfico” dos manuais que contam a história da geografia disciplinar. Alargando as fronteiras desse subcampo particularmente intrometido em outras áreas do conhecimento, como é a história da geografia, Coscioni fundamenta sua investigação na tradição da história intelectual, de François Dosse e Robert Darnton, e na contribuição de Pierre Bourdieu, com sua indefectível noção de campo intelectual. Quando digo “fundamenta”, não exagero. É com base nessas referências que são definidos os três planos de análise que compõem o livro: a força do darwinismo social no ambiente intelectual e político do começo do século XX; a construção de um subcampo disciplinar num país então periférico no pensamento geográfico da época; e, finalmente, a estrutura conceitual presente na obra de Huntington e Semple, que vem à tona em seus textos.

Figura 1 – Capa do livro Evolução, Raça e Ambiente. Darwinismo Social e formação da Geografia americana em Ellsworth Huntington e Ellen Semple de Fernando José Coscioni

Figura 1 – Capa do livro Evolução, Raça e Ambiente. Darwinismo Social e formação da Geografia americana em Ellsworth Huntington e Ellen Semple de Fernando José Coscioni

Salvador: Sagga, 2022, 216 p.

5Esse vasto programa é desenvolvido de forma bastante organizada, através de nove capítulos, distribuídos equitativamente em três blocos temáticos sequenciais. No primeiro deles (capítulos 1-3), centrado na noção de darwinismo social, essa corrente de pensamento é destrinchada em suas ideias-fonte (Spencer e o próprio Darwin), situada em termos de sua recepção nos Estados Unidos e relacionada à institucionalização da geografia humana nesse país. No primeiro movimento, há uma preocupação nada ociosa de diferenciar o darwinismo social do darwinismo tout court, que aporta valor didático ao trabalho. Somos, assim, lembrados que uma teoria científica elaborada a partir de problemas específicos de pesquisa – como o darwinismo – é transformada em visão geral sobre a ordem da natureza e o lugar do homem nela, acionando elementos psicológicos, racionais e morais – o darwinismo social. Obviamente, encontramos intérpretes dessa dinâmica evolutiva que a veem como tendência universal e cumulativa, como Herbert Spencer, sem atentar para a dimensão de aleatoriedade e acaso que Darwin permitia atribuir aos processos naturais. Por outro lado, como o debate motivado por essas ideias transcendeu em muito o âmbito asséptico das academias, iremos encontrar no próprio Darwin, em trechos de sua correspondência ou mesmo em subtítulos de alguns escritos, termos como “raças favorecidas” ou “mais avançadas”, que só fizeram lançar mais confusão no debate. As ideias darwinistas nos Estados Unidos sofreram, portanto, uma inflexão ao serem moldadas ao cenário político e ideológico no país, com seus aspectos efervescentes: exaltação da competição entre os indivíduos, justificação do Destino Manifesto e a suposta superioridade racial anglo-saxônica, que alimentava argumentos eugenistas. Inevitável e complicado enredo para a geografia humana norte-americana nascente.

6O conteúdo restante do livro é dedicado a Huntington e Semple, seguindo a mesma métrica, ou seja, três capítulos para cada autor. Nos dois casos, os primeiros capítulos cumprem a função necessária de apresentação de personagens que geralmente ocupam poucas linhas ou mesmo notas de rodapé em histórias da geografia acadêmica ou do pensamento geográfico. Temos acesso, dessa forma, a episódios que marcaram a formação intelectual e a trajetória profissional de dois nomes importantes da incipiente geografia humana norte-americana, que por vezes colheram mais insucessos do que os louros esperados numa carreira acadêmica (sobretudo em se tratando de Huntington). Reprovações, contratos parciais e recepção nem sempre favorável dos escritos fizeram parte dessas trajetórias, que nos são contadas por Coscioni de forma criteriosa. Para tanto, o autor se vale não apenas de ensaios biográficos, mas de cartas e resenhas de jornais e revistas consultadas nas universidades de Yale e do Kentucky, onde estão guardados, respectivamente, os Huntington e os Semple Papers. Em outras palavras, a dimensão documental não foi esquecida no livro.

7Na sequência, Coscioni debruça-se sobre os escritos mais importantes dos geógrafos, elegendo uma obra-chave para cada autor, às quais dedica capítulos inteiros. São assim verdadeiramente escrutinadas Civilization and Climate (1915/1924), de Huntington, e Influences of Geographic Environment (1911), de Semple (capítulos 5 e 8, respectivamente). Ao mesmo tempo, em capítulos que cercam os referidos, o autor discute em que medida questões aí tratadas aparecem também em trabalhos de menor fôlego ou estudos prévios que acabaram incorporados às obras principais, como o questionário feito por Huntington com o objetivo de medir o grau de civilização de diversas regiões do mundo, distribuído a dezenas de acadêmicos, funcionários coloniais, empresários e viajantes. Se poderia dizer que esse conjunto constitui o “coração do livro”, mas vale ressaltar que sua fruição é potencializada pelos capítulos precedentes. O fio narrativo é construído com habilidade: relatos biográficos e exame de fontes se encaixam bem com a análise dos fundamentos epistemológicos e filosóficos das obras escolhidas, por meio de uma autêntica exegese textual. Constata-se, dessa forma, que Coscioni domina com segurança os instrumentos de investigação em história da geografia, das ciências e das ideias. É justamente tal confluência que faz desse livro um trabalho tão completo.

8Finalmente, caberia destacar duas questões. A primeira tem a ver com o momento científico e acadêmico em que os personagens em tela trazem à luz suas ideias. Huntington e Semple, assim como outros geógrafos do final do século XIX e início do século XX, produzem um conhecimento científico que de forma alguma se restringe ao campo da geografia, seja ela humana ou física. Na realidade, campos disciplinares são bem difíceis de delimitar nessa época, particularmente nos ramos incipientes das ciências humanas que se estabeleciam nos Estados Unidos. Na teoria da civilização de Huntington eram levadas em consideração a herança biológica (raça), o ambiente físico (clima, solo e outras condições naturais) e a cultura (religião e instituições etc.). De modo semelhante, Semple adotava o programa antropogeográfico de Ratzel, na confluência de duas áreas do conhecimento, além de buscar o lugar preciso dos fatores geográficos numa teoria da história. Nos dois casos, as referências empíricas e os sistemas explicativos mobilizados transcendiam aquilo que seria reconhecido, posteriormente, como geografia. Estamos diante, portanto, de uma história do conhecimento que não cabe dentro do acanhado nível disciplinar, como sabe muito bem o autor desse livro. Por isso não nos oferece uma história paroquial, mas uma investigação que recobre os níveis contextual, epistemológico, social e institucional de seu objeto.

9A segunda questão remete a um aspecto bastante óbvio, talvez por isso mesmo esquecido. Qual a utilidade de um trabalho acadêmico resultante de uma longa pesquisa? Trabalhos assim se justificam pelo ineditismo ou por lançarem nova luz sobre um tema já conhecido, desfazendo visões estabelecidas. No presente caso, devido à carência, no Brasil, de estudos em história do pensamento geográfico que contemplem as relações entre geografia humana e darwinismo social, persistem visões simplificadas – beirando a caricatura – de personagens que encarnam momentos da disciplina identificados com o conservadorismo social e político. Coscioni não inventa outro Ellsworth Huntington nem outra Ellen Semple. Apenas os reveste de informações biográficas e interpretações textuais baseadas em seus escritos originais, de uma maneira jamais realizada até agora em nosso país (possivelmente em outros também). Os que pretendem conhecer melhor esses autores devem ler esse livro. Mas a sugestão vale também para o que se interessam pela história das ciências e do pensamento social e político do final do século XIX e início do século XX, assim como os que se mobilizam por questões de pesquisa em história da geografia. O presente livro é guia precioso para diversos fins, que transcendem os âmbitos disciplinar e autoral evidenciados em seu título. Por essa razão é tão bem-vindo.

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Índice das ilustrações

Título Figura 1 – Capa do livro Evolução, Raça e Ambiente. Darwinismo Social e formação da Geografia americana em Ellsworth Huntington e Ellen Semple de Fernando José Coscioni
Legenda Salvador: Sagga, 2022, 216 p.
URL http://journals.openedition.org/terrabrasilis/docannexe/image/11674/img-1.jpg
Ficheiros image/jpeg, 109k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Sergio Nunes Pereira, «Redesenhando caricaturas»Terra Brasilis [Online], 17 | 2022, posto online no dia 30 junho 2022, consultado o 02 junho 2023. URL: http://journals.openedition.org/terrabrasilis/11674; DOI: https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.11674

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Autor

Sergio Nunes Pereira

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