1Ainda que com substanciais diferenças quanto ao reconhecimento público, Theodoro Sampaio (1855-1937) e Durval Vieira de Aguiar (1849-1900) foram responsáveis por duas importantes obras que descrevem aspectos geográficos, históricos, políticos e econômicos de vastas porções do interior do Brasil e da Bahia, em finais do século XIX, respectivamente, “O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina” e “A Província da Bahia”. Enquanto Sampaio, como membro da Comissão Hidráulica de 1879, escrutinou boa parte dos espaços habitados nas margens do Rio São Francisco, entre a foz (no limite das províncias de Alagoas e Sergipe) e o seu último ponto navegável, em Pirapora (Minas Gerais), além da Chapada Diamantina, Aguiar elaborou relatos de praticamente todos os termos (municípios) do interior baiano, como tarefa adicional (e pessoal) assumida durante uma viagem feita em 1882 para inspecionar destacamentos policiais interioranos e apaziguar uma contenda ocorrida em Xique-Xique.

2De tudo que fora relatado por ambos nas obras já mencionadas, vale destacar o apuro em descrever nucleações permanentes, enfatizando características urbanísticas e arquitetônicas, bem como aspectos atinentes às formas de reprodução social e econômica dessas localidades nas escalas intra e interurbana. Além disso, as obras destacam-se também pelas quase sempre detidas menções às populações que habitavam essas nucleações interioranas, enfatizando costumes, valores e crenças, ainda que tais caracterizações tenham sido feitas sob influência de um ponto de vista francamente etnocêntrico.

3Neste sentido, a leitura de ambas as obras enseja um exame comparativo sobre as visões que Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar expõem acerca dos espaços visitados, o que, no caso em tela, diz respeito, principalmente, à morfologia de assentamentos fixos – cidades, vilas e povoados – localizados nas margens do Rio São Francisco, em seu trecho baiano, mas enfatizando também aspectos relativos às idiossincrasias das formas de reprodução social e econômica naquele final de século e de regime monárquico em um território precariamente integrado aos centros econômicos e políticos do Brasil. O escrito ora apresentado cumpre, assim, o propósito de escrutinar esses aspectos anteriormente aventados naquele contexto espaço-temporal ribeirinho a partir de uma abordagem comparativa das localidades visitadas e descritas por Sampaio e Aguiar.

Breves apreciações sobre os autores e as obras de referência

4Em uma análise como esta, que emprega fontes datadas, não se pode prescindir de uma abordagem sobre o contexto sócio-histórico no qual as ditas obras estão inseridas, sob pena de perder-se a capacidade de compreensão daquilo que Maurício Abreu (2000) denomina “presente de então”. Ademais, é salutar considerar a possibilidade de dar ênfase à análise da obra a partir, também, do sujeito/autor e sua vivência da realidade descrita.

5Assim, é possível ter em conta, por exemplo, que Sampaio e Aguiar eram sujeitos plenos de suas capacidades intelectuais, narradores extremamente argutos e detalhistas das realidades que se lhes descortinavam e cujos relatos foram feitos em um breve lapso de três anos, estando, ambos, sob um mesmo contexto espaço-temporal, marcado por poucas e insignificantes transformações naquelas nucleações visitadas ao longo desse ínterim, o que, enfim, permite a comparação sem que haja maiores óbices analíticos. Este trecho do escrito trata, portanto, de realizar um enquadramento conjuntural das obras, mas sem desconsiderar algumas notas essenciais da biografia dos seus autores.

6Quanto a Theodoro Sampaio (1855-1937), esse notável brasileiro foi engenheiro por formação, geógrafo e historiador por escolha, com destacado papel como intelectual desde o transcurso da transição entre as fases imperial e republicana do país. Em 1879, integrou a Comissão Hidráulica instaurada por D. Pedro II para, entre outras atribuições, realizar estudos de navegabilidade do Rio São Francisco, tendo subido esse curso d’água da sua foz à localidade de Pirapora (Minas Gerais), período no qual “[...] escreveu no seu diário uma série de observações de cunho geográfico, econômico e antropológico, que foram, anos depois, reunidas e publicadas em livro que se tornou um clássico da geografia regional brasileira” (Lima 1981, 25-26).

7A obra em análise, intitulada “O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina”, é apenas uma das muitas contribuições que Sampaio produziu ao longo da sua vida. Como um dos mais prestigiados pensadores do seu tempo, teve destacada participação também na composição de equipes técnicas. Entre as quais: (a) as de ampliação da ferrovia Salvador-Juazeiro (1882), Comissão de Melhoramento do Rio São Francisco (1883), Comissão Geológica e Geográfica de São Paulo (1886-1892), Serviço de Águas e Esgotos do Estado de São Paulo (1892-1904) e da municipalidade de Salvador (1905-1929), entre outras; (b) criação ou fortalecimento de instituições de fomento à pesquisa e salvaguarda de acervos, como, por exemplo, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894), Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (1898) e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1902); e em (c) estudos e projetos sobre a normatização cartográfica no Brasil, construção do Túnel do Carmo (atual Américo Simas, em Salvador) (1912), construção da Cidade Luz (atual Pituba, também em Salvador) (1919), entre outras atividades (Lima 1981, Sá 2018, Jesus 2019).

8Em se tratando especificamente do livro “O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina”, a obra traz, como já mencionado, os relatos contidos no diário de viagem de Sampaio como membro da Comissão Hidráulica do Império. Ao longo da viagem foram utilizadas quatro cadernetas, que continham:

[...] informações sobre as providências para o bom andamento da comissão, dados técnicos obtidos e impressões do viajante diante de um quadro desconhecido (o que inclui topografia, clima, geologia, agricultura, mineração e também população, cidades e vilas), além de tabelas e ilustrações traçadas por mãos peritas. (Santana 2002, 14)

9Após os seis meses do deslocamento pelos 2.700 quilômetros correspondentes ao percurso entre a foz e Pirapora, os outros treze meses e mais 900 quilômetros referentes à viagem entre a referida localidade mineira e Salvador – tendo realizado estudos sobre a Chapada Diamantina – e terminados os trabalhos da comissão, os trechos das descrições de Sampaio relativas ao Rio São Francisco foram publicados pela primeira vez entre 1900 e 1902, enquanto a parte dedicada à Chapada Diamantina foi a público entre 1902 e 1903, por meio da revista mensal intitulada Santa Cruz, de São Paulo (Santana 2002).

10Nas descrições sobre os tipos humanos com os quais manteve contato, Sampaio deteve-se mais na abordagem sobre os ribeirinhos e sertanejos (mencionando de características fenotípicas a culturais), agricultores e barqueiros, dando ênfase, também, à mestiçagem, sobre a qual menciona que “Neste particular, é o vale do São Francisco um vasto cadinho em que todas as raças representadas na América se fundem ou se amalgamam” (Sampaio 2002, 95). Ademais, em diversas passagens, o autor demonstrava impressionar-se com a pobreza visível em quase todo o itinerário por ele percorrido, além de reclames quanto a uma suposta indolência de moradores locais com os quais os membros da Comissão Hidráulica toparam em vários trechos da viagem.

12O Coronel Durval Vieira de Aguiar (1849-1900), por sua vez, foi um militar de carreira tendo sido comandante do Corpo de Polícia da Bahia quando da proclamação da República e um dos artífices desse movimento na província (Nunes 2001), de modo que sua produção não é tão vasta. Antes disso, porém, em 1882, o ainda capitão fora designado pelo governo provincial para realizar inspeções in loco das unidades policiais localizadas no interior da Bahia, atividade a partir da qual, como resultado dos relatos feitos sobre as localidades visitadas, foi publicada, em 1888, a primeira edição do livro originalmente intitulado “Descripções praticas da Provincia da Bahia (com declaração de todas as distancias intermediarias das cidades, villas e povoações)”.

13Apesar do alto cargo como membro da polícia e do papel que desempenhou nas ações que resultaram na implantação da república na Bahia, Durval Vieira de Aguiar não angariou tanta notoriedade por sua obra, sendo, ainda hoje, uma biografia pouco conhecida. Isso não foi impedimento, porém, para que Euclides da Cunha tenha-lhe dedicado palavras elogiosas, uma vez que, assim como ocorrera com a obra de Theodoro Sampaio, o livro de Aguiar foi uma das fontes utilizadas por aquele ilustre escritor com a intenção de melhor conhecer o sertão baiano, para onde fora fazer a cobertura jornalística da Guerra de Canudos (Cunha 2000, 2016).

14Quanto ao livro de Aguiar, cuja segunda e mais recente edição teve lançamento em 1979, já com o título sintético de “A Província da Bahia”, trata-se, conforme já reportado, de uma obra produzida a partir de relatos de viagens realizadas ao longo de 1882, quando fora designado para desempenhar duas tarefas: inspecionar os destacamentos policiais interioranos, sobre os quais chegavam à capital reclames de falta de condições de trabalho, e “[...] pacificar a vila de Xique-Xique, então conflagrada por questões políticas local [sic]” (Sales 1979, II). Antes, o conteúdo do livro foi publicado, em partes, no jornal Diário da Bahia (1883).

15Com efeito, naquilo que é de interesse para este escrito, a obra descreve os termos (municípios) da Bahia, suas cidades, vilas e povoações, dando ênfase, na grande maioria dos casos, às características físico-ambientais mais proeminentes, indicações de perfis populacionais e das atividades econômicas, além de relatar aspectos da morfologia urbana, principais elementos que compõem a estrutura político-administrativa e eclesiástica local e alguns comentários sobre as relações interurbanas. Por outro lado, vale ressaltar: em alguns trechos, o autor revela certa filiação a um pensamento que se assemelharia, na Geografia, a uma pauta determinista, externando uma visão hostil acerca dos habitantes do sertão, sobre os quais manifesta impressões como a que segue:

[...] à primeira vista nos parecem de uma indolência irremediável, devida unicamente à falta de ocupação, ao ardor do clima e ao gênero de alimentação, muito substancial, de que usam; o que tudo reunido não pode deixar de influir diretamente no organismo, e, portanto, nos costumes daqueles povos. (Aguiar 1979, 72)

16Não obstante, na mesma página e na seguinte, o autor tece elogios à capacidade laboriosa do homem do sertão e à beleza e engenhosidade do artesanato regional, além de atribuir o atraso econômico não a uma suposta indolência do sertanejo, mas à falta de investimentos em sistemas de engenharia para deslocamento de produtos, algo que seria, para ele, resultado direto das querelas políticas decorrentes do coronelismo tão comum àquele espaço-tempo.

17Em se tratando do objeto deste estudo, ou seja, as nucleações permanentes localizadas nas margens do Rio São Francisco, em “A Província da Bahia”, Aguiar faz relatos sobre Carinhanha, Urubu (atual Paratinga), Bom Jesus da Lapa, Sítio do Mato, Barra, Xique-Xique, Pilão Arcado, Remanso, Sento Sé, Juazeiro, Capim-Grosso (atual Curaçá) e uma sucinta menção à Santo Antônio da Glória (atual Glória) (Figura 2). Ademais, importa salientar que o autor desenvolveu uma breve abordagem, em perspectiva regional, sobre o próprio Rio São Francisco e as dinâmicas social e econômica ali vigentes à época de suas viagens.

Os itinerários da abordagem das obras e dos espaços relatados

18Conforme já mencionado, o que se propôs no estudo ora apresentado configura-se como uma análise geográfico-histórica – circunscrita ao final do século XIX – de nucleações fixas localizadas em território baiano, mais precisamente nas regiões fisiográficas dos submédio e médio cursos do Rio São Francisco, utilizando como fontes uma das obras mais conhecidas de Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar, comparando-as.

19A intenção principal é caracterizar a configuração (proto)urbana das localidades naquele então, verificando, ainda, em quais aspectos os olhares desses autores apontam similitudes e diferenças quanto as nucleações. Nesse sentido, a perspectiva comparativa aqui utilizada não se efetiva pela confrontação de distintos espaços, como é mais comum à aplicação dessa metodologia nos estudos geográficos (Brandão 2012), mas pela tentativa de cotejar as fontes, o que é um exercício que, especificamente em Geografia Histórica, já se pratica a miúde (Ferro 1979, Vasconcelos 1999 e 2002, Andrade 2005. Andrade e Brandão 2006).

20Desta forma, cabe destacar os itinerários metodológicos da abordagem aqui empreendida, revelando os procedimentos de análise empregados e, tão importante quanto, explicitar os critérios para a escolha das nucleações urbanas partícipes deste escrutínio comparativo.

21Nos seus relatos, Theodoro Sampaio apresentou cidades, vilas e povoações ribeirinhas do Rio São Francisco de jusante à montante, considerando que a expedição da qual fez parte trilhou esse sentido. Nos escritos de Durval Vieira de Aguiar, ao contrário, as descrições foram ordenadas a partir de Carinhanha até a localidade de Capim Grosso, atual Curaçá, ou seja, sequenciando as nucleações urbanas como se estivesse descendo aquele grande curso d’água. Contudo, não há qualquer indicativo de que, quando das inspeções aos destacamentos policiais interioranos da Bahia, realizadas ao longo de 1882, Aguiar tenha, de fato, realizado seu itinerário nesse sentido (de montante a jusante).

22Outros aspectos que diferenciam as observações de ambos os autores dizem respeito ao total de localidades descritas nas respectivas obras e de não ter havido coincidência quanto as visitas feitas por cada um deles. Assim, se Theodoro Sampaio descreveu assentamentos fixos de Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais, Durval Vieira de Aguiar ateve-se apenas às localidades da sua província natal. Por outro lado, o militar realizou paradas – com as consequentes descrições – em mais localidades ribeirinhas do Velho Chico em território baiano do que o ilustre engenheiro/geógrafo/historiador.

23Essas especificidades são fatores que limitaram a abordagem comparativa aqui empreendida aos assentamentos ribeirinhos do Rio São Francisco circunscritos exclusivamente à então província da Bahia e que foram relatados por ambos os autores, em suas respectivas obras. Quanto ao encadeamento das análises realizadas neste estudo, estas foram feitas considerando o percurso realizado por Theodoro Sampaio, uma vez que não há como definir, a partir do que está posto em “A Província da Bahia”, se Durval Vieira de Aguiar empregou uma sequenciação das descrições em conformidade com um itinerário realizado de montante à jusante quando das suas visitas às localidades ribeirinhas do Velho Chico.

24Por outro lado, vale destacar que, com vistas a uma melhor compreensão desta abordagem geográfico-histórica, as nucleações sob escrutínio foram agrupadas segundo a sua localização nas atuais regiões fisiográficas que constituem a grande Região Hidrográfica do Rio São Francisco, denominadas submédio e médio cursos (BRASIL, 2006). Isto posto, as cinco localidades cujos relatos foram aqui analisados comparativamente, estão assim organizadas: no (a) Submédio Curso, apenas Juazeiro; no (b) Médio Curso figuram Barra, Urubu (atual Paratinga), Bom Jesus da Lapa e Carinhanha.

25Importa salientar, enfim, que ambas as obras foram produzidas a partir de relatos de visitas às localidades, contendo textos descritivos dos espaços urbanos nos quais os respectivos autores estiveram durante breves lapsos temporais. Assim, embora sejam olhares parciais sobre as cidades, vilas e povoados e estejam centrados, no mais das vezes, em descrições que remetem à morfologia urbana, costumes das populações e nas economias locais, não há como negar que são fontes de considerável valor para consultas e pesquisas relativas aos estudos de Geografia Histórica Urbana e História Urbana, graças à arguta capacidade que ambos tinham de desvelar as características dos espaços visitados.

Os olhares de Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar: uma análise comparativa

26Em suas visitas ao Rio São Francisco, tanto Theodoro Sampaio quanto Durval Vieira de Aguiar demonstraram considerável curiosidade pelas várias nucleações (proto)urbanas visitadas, levando-os a produzirem descrições e tecerem análises sobre suas características mais proeminentes. No entanto, essas abordagens nem sempre são coincidentes em dois aspectos: (a) na inclusão de relatos de todas as localidades nos respectivos textos e, ainda que tenham feito exposições sobre um mesmo lugar visitado, (b) o fizeram, cada um a seu modo, com níveis distintos de detalhamento.

27No curso submédio, por exemplo, ambos autores deram grande destaque à cidade de Juazeiro, mas apenas Durval Vieira de Aguiar teve interesse em fazer observações mais detidas sobre Capim Grosso, Glória, Pilão Arcado, Sento Sé e Remanso, ao tempo em que ambos ignoraram as localidades de Riacho de Casa Nova e Santana de Sobradinho. Vale mencionar que Capim Grosso, inclusive, empresta o nome, junto com Boa Vista, para o Capítulo 9 do livro de Theodoro Sampaio, mas sem que a localidade tenha sido sequer descrita.

28De igual modo, no curso médio, ambos autores fizeram menção a um sem-número de nucleações assentadas na calha do Rio São Francisco. Contudo, conforme já mencionado, a importância dada por cada um dos autores a algumas dessas localidades difere bastante, não permitindo, nesses casos, a realização de uma abordagem comparativa. Assim, enquanto Theodoro Sampaio apenas mencionou a sua passagem por Pilão Arcado e Xique-Xique, demonstrando desinteresse em descrevê-las, Durval Vieira de Aguiar dedicou algumas linhas a essas localidades, ao tempo em que Bom Jardim (atual Ibotirama) foi omitida por ambos.

29Por todos os motivos aventados, a seleção das localidades a serem aqui examinadas em uma perspectiva comparativa obedeceu a um único critério: terem sido suficientemente descritas e analisadas por ambos ao ponto de permitir uma acareação das impressões qualificadas dos autores, como se verá no trecho adiante.

Juazeiro, no curso Submédio

30A cidade de Juazeiro mereceu longos e animados comentários de Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar em seus respectivos relatos. A aparente prosperidade, dimensionada, principalmente, a partir da educação e urbanidade dos seus moradores, qualidade e imponência das edificações públicas e privadas, regularidade do traçado urbano e largura das vias, bem como na pujança do porto e comércio, impressionaram ambos os autores, que a descreveram como uma nucleação com “o aspecto de uma corte do sertão” (Sampaio 2002, 103) e uma “linda cidade” (Aguiar 1979, 64).

31Os autores descreveram características da cidade, tanto no âmbito intraurbano quanto na escala urbano-regional. Além disso, Sampaio (2002) mencionou a importância da sua posição geográfica, assinalando que o fato de situar-se numa encruzilhada de “duas grandes artérias de comunicação interior”, referindo-se à estrada surgida dos caminhos que ligavam a Bahia ao interior do Maranhão e Piauí ainda quando das expedições coloniais, e ao próprio Rio São Francisco, denominado de “estrada fluvial” a ligar Minas Gerais ao litoral por Pernambuco, Alagoas e Sergipe, seria a causa maior para que Juazeiro tivesse se tornado “um centro preferido das transações comerciais destas regiões” (Sampaio 2002, 103).

32Quanto à população, Sampaio estimou o total em 3 mil habitantes, enquanto Aguiar julgava serem 2,5 mil os moradores da cidade, considerados por este como “bem educados, ordeiros, obsequiosos e de hábitos civilizados” (Aguiar 1979, 66), opinião compartilhada por aquele que atribuiu aos juazeirenses qualidades como “afabilidade e correção de maneiras”, além de “sincero desejo de obsequiar e de servir” (Sampaio 2002, 104).

33Os dois autores notaram a solidez e beleza das edificações, sejam públicas ou privadas, com destaque para as residências, a “nova e boa igreja matriz” (Sampaio 2002, 103), considerada por Aguiar (1979, 64) como a “mais elegante de todo o rio”, a ampla e arborizada praça, na qual o dito templo religioso ocupava um dos lados, além do traçado urbano, arruamento e alinhamento das ruas, dispostas em paralelo à linha do cais. Um único aspecto negativo foi apontado por Aguiar, para quem o sobrado que servia de Casa de Câmara e Cadeia era acanhado e mal construído.

34As funções portuária e comercial também chamaram atenção de Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar, ditando o ritmo da grande movimentação de bens e pessoas pela cidade. Sobre a primeira, Sampaio identificou que o porto, profundo e amplo, possuía uma vasta frota fluvial, ao passo que Aguiar, corroborando com as palavras do visitante que o antecedeu, atestou a grande frequência e variedade de embarcações, com destaque para as barcas de frete, “que ali vão tomar todos os gêneros enviados desta capital para as demais localidades do rio, visto ser o porto de embarque e desembarque de mais curta distância para o nosso comércio” (Aguiar 1979, 65).

35Quanto à função comercial, Theodoro Sampaio (2002, 103) afirmou que “Tudo, com efeito, aqui concorre para tornar esta cidade um centro de ativas transações”, sendo a atividade econômica que fez de Juazeiro “o foco mais poderoso da civilização e da riqueza desta parte do Brasil”, ao tempo em que Aguiar denota que “É bastante animado o comércio da cidade, o qual é feito mais civilizadamente do que nas outras partes do rio” (Aguiar 1979, 65).

37A sua zona de influência comercial, que, por um lado, atinge Cabrobó 203 quilômetros rio abaixo, por outro lado, a Januária 1054 quilômetros rio acima, afetando ainda os sertões do Piauí por Oeiras e Paranaguá e os de Goiás por Palmas e Natividade, é, sem dúvida, uma das mais vastas do Brasil Central. (Sampaio 2002, 102)

38Ainda sobre a dimensão urbano-regional de Juazeiro, ambos os autores fizeram breves comentários sobre a vila de Petrolina, localizada na margem oposta do rio, em território pernambucano, apresentando firmes discordâncias quanto à importância daquela nucleação: se Sampaio a via como um povoado insignificante e cuja nomeação de vila seria um exagero, Aguiar, ao contrário, destacava que a “pitoresca vila” (Aguiar 1979, 64) seria a responsável por um relativo decréscimo do terciário juazeirense, uma vez que aquela assumira parte da função comercial que, até pouco tempo, era exclusiva da cidade baiana.

39Em tempo: os respectivos escritos sobre Juazeiro evocam uma curiosidade acerca do vapor Presidente Dantas. Enquanto Sampaio mencionou-o como a embarcação que os membros da Comissão Hidráulica do Império tomariam até Pirapora, uma vez transposta a Cachoeira de Sobradinho (o que, de fato, ocorreu), Aguiar relatou, apenas três anos depois, o seu completo abandono, estando encalhado na orla fluvial da cidade baiana e danificado pela ação da água.

40Aqui, mais um destaque se impõe: a navegação a vapor nos rios da bacia sanfranciscana foi de fundamental importância como articuladora das localidades ribeirinhas da região. Conforme apontado por Brasil (2010), a questão da navegabilidade no vale do Rio São Francisco foi tema candente nos escritos de viajantes, técnicos e políticos ao longo do século XIX, ao tempo em que Lima (2004), destaca a primazia da navegação a vapor por meio da quantificação das empresas que atuavam na Bacia do Rio São Francisco, denotando que, em seu período de maior atividade, era possível contar com vinte e sete embarcações transitando concomitantemente entre as águas do curso principal e de seus tributários, o que mobilizava uma força de trabalho de mais de mil funcionários.

41O declínio da navegação a vapor só veio a se consolidar a partir da década de 1950, quando o presidente Juscelino Kubitschek implementa um vigoroso programa de construção e melhoramentos de estradas, desencadeando um processo que ficou conhecido como “rodoviarismo”.

As nucleações do curso Médio

42Em se tratando do Médio Curso do Rio São Francisco, a primeira localidade examinada é Barra, que, na época das visitas de Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar, já havia sido elevada à categoria de cidade e cujo sítio urbano, na confluência do Velho Chico com o seu maior afluente da margem esquerda, o Rio Grande, foi considerado pelo militar como a “mais bonita e bem acolhida posição do dito rio” (Aguiar 1979, 43).

43Sobre o quantitativo populacional da localidade, apenas Aguiar apresentou números, com uma estimativa de 12 mil habitantes em todo o termo e, destes, ainda segundo o militar, cerca de 5 mil estariam fixados na cidade. No entanto, o autor afirmou considerar essa quantidade subestimada, uma vez que, para ele, os fluxos migratórios formados desde Xique-Xique, por conta dos casos de violência ali ocorridos, faziam a população barrense superar os cálculos aos quais teve acesso. Segundo o censo de 1872, o termo tinha uma população de 15.726 habitantes, entre população livre e escravizada (Brasil 1949).

45As discordâncias sobre Barra aparecem em outros trechos das respectivas obras. Para Theodoro Sampaio (2002):

Por sobre as altas barrancas que dominam o porto, e que se escalam com dificuldade depois de se passar a orla lamacenta da praia, estende-se a casaria baixa, desconjuntada, de telhados negros e de feio aspecto, deitando para o rio os muros mal curados de sua cerca. Mais para o interior, abrem-se três ruas longitudinais paralelas, cortadas por becos e vielas sujas e ligando dois largos sem importância e sem beleza. As casas parecem tombar, tal o desaprumo das suas paredes enegrecidas e rachadas. (Sampaio 2002, 117-118)

46Durval Vieira de Aguiar (1979), por sua vez, descreveu alguns desses mesmos subespaços da cidade da seguinte maneira:

As ruas são largas, paralelas e alinhadas, porém de areia solta, que tanto se esquenta durante o dia que impede o trânsito. Tem duas praças excelentes, uma bem segura casa de câmara com quartel e cadeia; e calcula-se em oitocentos fogos as casas da décima urbana. Possui duas igrejas, sendo uma a Matriz [...]. Existe também um cômodo hospital de caridade. (Aguiar 1979, 43-44, itálico no original)

47Por outro lado, Sampaio e Aguiar demonstraram concordância em dois aspectos: a baixa produtividade agrícola do termo e a proeminência do terciário local e sua importância em escala regional. Sobre a agricultura, Sampaio (2002, 119) afirmou que Barra era, então, “reconhecidamente pobre do ponto de vista agrícola”, sendo a cultura bovina a “sua melhor indústria”, ao tempo em que, para Aguiar (1979, 44), “a lavoura é insignificante”.

48Quanto ao comércio e a rede de relações formada a partir de tal atividade, como já mencionado, ambos autores enfatizaram o importante papel que Barra exerce como “centro principal de uma rede regional embrionária formada por vilas cujos vínculos interurbanos se davam preferencialmente por via fluvial, com o intuito precípuo de promover o abastecimento dos mercados locais” (Brandão 2018, 124). Assim, mesmo expressando decepção quanto as características urbanísticas de Barra, Sampaio não pôde deixar de reconhecer a sua relevância como porto e centro comercial. Em suas palavras:

[...] é excelente a posição em que a cidade está edificada. Situada na confluência do rio São Francisco com o seu notável tributário, o rio Grande, a cidade da Barra é o entreposto natural das regiões ocidentais que vizinham com o sul do Piauí e com o oriente de Goiás. (Sampaio 2002, 115-116)

[...] ao longo do porto, a bordo das embarcações ancoradas, nas pranchas estendidas para terra, sob toldas abauladas das barcas abarrotadas de todo gênero de mercadorias que aqui fazem escala, nas canoas, nas balsas de madeira que descem a corrente fluvial, havia o seu comércio, que, em certas horas do dia, se animava e tinha o seu efeito. (Sampaio 2002, 118)

49De forma adicional, Theodoro Sampaio fez referência à existência de pelo menos dezesseis grandes empreendimentos comerciais na cidade, cujos proprietários “estavam ausentes, procurando sortimento novo na Bahia (...)” (Sampaio 2002, 118), mencionando, ainda, as articulações em rede que tinham Barra como principal “centro irradiante” (p. 117) e cujos feixes de fluxos chegavam ao interior das terras banhadas pelo Rio Grande e seus afluentes, atingindo os sertões de Goiás, Maranhão e Piauí.

50Aguiar (1979, 44), por sua vez, ratifica as observações feitas por Theodoro Sampaio na ênfase à importância do terciário barrense, que possuía, segundo o militar, “boas sortidas casas de negócios”, ao tempo em que dimensiona a importância do porto a partir das relações que as cidades e vilas da Bacia do Rio São Francisco, de Minas Gerais à divisa baiana com Pernambuco, possuem com a “airosa Rainha do alto [sic] S. Francisco” (itálico no original).

52Vale mencionar que, graças ao processo conhecido como “rodoviarismo” e o consequente declínio da navegação a vapor, a cidade de Barra vivenciou um longo período de inércia territorial, advindo da interrupção dos fluxos comerciais e da ascensão de Barreiras como cidade mais dinâmica da região, posto que, entre outros motivos, esta urbe tenha sido contemplada com a construção de três rodovias federais que cortam o seu território municipal (BR-242, BR-020 e BR-135) (Brandão 2018).

53Ao contrário do que ocorrera nas paradas de Sampaio e Aguiar em Juazeiro e Barra, quando fizeram exames mais detidos dessas nucleações, as passagens pelas localidades menores e menos importantes naquele contexto urbano-regional acabaram gerando módicas análises por parte de ambos os autores, que mostraram-se um tanto mais entusiasmados em tecer comentários apenas quando das respectivas visitas a Bom Jesus da Lapa, ainda que, à época, a nucleação fosse tão somente um povoado de Urubu.

54No que concerne à Urubu, a vila não deixou boas impressões nos protagonistas deste escrito. Ao contrário, tanto Sampaio quanto Aguiar fizeram relatos bastante depreciativos sobre a localidade, caracterizada, respectivamente, como sendo “[...] uma vila pobre, das mais antigas do sertão e edificada em sítio elevado, mas sem beleza”, exprimindo um “aspecto de vetustez arruinada” (Sampaio 2002, 128) e “[...] insípida, feia e decadente vila [...] que existe desde 1746” (Aguiar 1979, 41). Ainda segundo Aguiar, o termo era habitado por cerca de 18 mil habitantes, ao que Sampaio (2002, 131) afirma que essa população seria formada “quase toda de mestiços”.

55Os autores destacam que, à exceção do comércio de Bom Jesus da Lapa, relatado mais adiante, o termo era francamente dependente de uma economia agrária assentada, principalmente, na criação de gado em extensas propriedades rurais, além da prática da agricultura na ilha fluvial defronte à vila, “que a supre de verduras e cereais” (Aguiar 1979, 41). Contudo, Sampaio (2002) relata que, a despeito da amplamente descrita rarefação do comércio local, cujas lojas funcionavam apenas “quando têm a quem vender, ou nos dias em que se faz uma miserável feira” (Aguiar 1979, 41), havia fluxos regulares entre Urubu, Lençóis (Bahia) e Januária (Minas Gerais) que animavam o parco terciário da vila sanfranciscana.

56Sobre a morfologia do lugar, Theodoro Sampaio relata a existência de duas ruas longitudinais pouco densas quanto à quantidade de construções que as margeiam, dispostas em paralelo ao rio e distantes da sua margem – evitando, assim, possíveis prejuízos causados pelas enchentes periódicas – e que abrigavam duas praças, uma das quais arborizada e com certa estrutura para o usufruto dos moradores. Durval Vieira de Aguiar (1979, 41), por sua vez, descreve Urubu como uma localidade cujas “[...] ruas são desertas, a igreja velha, as casas arruinadas, e a maior parte delas vazias e sem caiação; quartel-cadeia em ruínas, poucas casas de negócios [...]” para, em seguida, discorrer sobre a precariedade das escolas do termo, bem como sobre a insegurança local.

57Ao contrário das breves considerações feitas sobre Urubu, Bom Jesus da Lapa, recebeu maior atenção de Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar em suas descrições, compondo, inclusive, um capítulo específico da obra do primeiro dentre esses autores. Seja pela continuada agitação causada pela romaria, que repercutiu na formação e posterior crescimento de um assentamento fixo e na diversificação das atividades comerciais, ou pelas contradições relativas a esses mesmos aspectos citados, a localidade induziu ambos a realizarem comentários ora elogiosos, ora depreciativos.

58Silva Junior (2017) e Santos (2019) concordam ao afirmar que as peregrinações ao que hoje se conhece como Santuário do Bom Jesus da Lapa tiveram início no alvorecer do século XVIII e que a formação de um assentamento permanente nas imediações da gruta foi consequência direta dos deslocamentos de romeiros ao local tido como sagrado pelos fiéis católicos.

59Nas primeiras linhas do capítulo dedicado à Bom Jesus da Lapa, Sampaio (2002, 134) afirma que o povoado “é um santuário e um prodígio da natureza”, realçando, no seu escrito, esses dois aspectos em detrimento de um olhar sobre a morfologia local, como fizera em relação às demais nucleações visitadas. Assim, quanto ao entorno físico, o autor descreve o canal natural – regionalmente chamado de ipueira – que, como se fora uma “baía fluvial” (Sampaio 2002, 134), servia para atracação das embarcações, mas deu especial ênfase aos aspectos geomorfológicos locais e regionais, com destaque para a grande formação calcária onde estão a gruta e santuário dedicado ao santo católico, com suas “formas mais pitorescas que se podem imaginar. [que] simulam flechas elegantes de estilo gótico” (Sampaio 2002, 135).

60Quanto à função religiosa da localidade, Theodoro Sampaio mencionou os aspectos que o impressionaram em visita à gruta e santuário. Sempre afeito ao emprego de uma escrita formal e técnica, nesse trecho, porém, é perceptível que o autor adota um tom emotivo para descrever a visita aos espaços dedicados à fé, ressaltando o quanto fora tomado por “irreprimível emoção” (Sampaio 2002, 135), ao tempo em que descreve com detalhes as características da gruta, com seus altares secundários, estalactites, púlpito, ex-votos e o altar-mor, “dourado e rico” (Sampaio 2002, 138), onde repousa a imagem do Senhor Bom Jesus da Lapa.

61Quanto às impressões de Aguiar, logo de início, esse autor compara o fervor religioso pelo Bom Jesus naquelas porções do interior baiano à veneração que a população soteropolitana dedicava ao Senhor do Bonfim, o que é significativo, pois explicaria o grande fluxo de devotos e penitentes. Curioso informar ainda que o militar cita ter feito uma visita anterior à Bom Jesus da Lapa, 16 anos antes dessa última, permitindo-lhe comparar o crescimento que a localidade tivera nesse interstício, declarando, com base em tal experiência, que “Muito tem prosperado o importante arraial da Lapa” (Aguiar 1979, 36).

62No seu escrito, ainda que timidamente, Durval Vieira de Aguiar dedicou algumas linhas para expor características do urbano contidas na localidade, destacando, por exemplo, que o povoado “se estende pelo comprimento da serra” (Aguiar 1979, 39, itálico no original), e a dinâmica do terciário local, ao mencionar a existência de “muitas casas de negócios” (Aguiar 1979, 40). Ademais, Aguiar fez referência às relações em rede geradas pela incessante mobilidade humana advinda da “afluência de romeiros de todo o nosso sertão e das províncias de S. Paulo, Minas, Goiás, Piauí, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Ceará, [...] dando à povoação e ao porto [...] um movimento festivo” (Aguiar 1979, 38).

63Vale mencionar que, em breve passagem, Sampaio também faz referência aos feixes de fluxos que têm Bom Jesus da Lapa como destino, ao comentar sobre o canal fluvial que se avizinha à formação calcária, o autor pondera:

As águas da ipueira banham-lhe o sopé do lado meridional e a barca do comerciante que jamais passa sem aportar, como a embarcação mais humilde do romeiro que vem de longe e de toda parte, aí encosta rente e deita em terra a sua carga piedosa bem na base do monumento que é, de fato, uma curiosíssima obra da natureza. (Sampaio 2002, 135, itálico no original).

64Ainda que absortos em certo encantamento, seja pela beleza da paisagem local ou pelo fervor da devoção católica, como ocorrera com Theodoro Sampaio, ou pela aparente evolução comercial e populacional verificada por Durval Vieira de Aguiar, não foi possível a esses autores deixar de notar (e exprimir em seus textos) alguns aspectos negativos de Bom Jesus da Lapa que lhes saltavam aos olhos quando das suas respectivas visitas, como a pauperização massiva da população local, materializada em um expressivo número de pedintes, além das querelas relativas à segurança pública, à administração dos recursos da Igreja e a corrupção local.

65A última das localidades cuja comparação foi possível no contexto analítico aqui experimentado é a vila de Carinhanha, aquela que, para Aguiar (1979, 19), seria “a primeira [...] desta Província nos limites sul do nosso rio S. Francisco, a cuja margem esquerda está situada”, ao tempo em que Sampaio (2002, 144) a via como “a última vila baiana pelo São Francisco acima”.

66Sobre os moradores locais, contados, segundo Aguiar, em cerca de 13 mil habitantes em todo o termo, ambos os autores fazem menções discordantes: enquanto Sampaio (2002,145) afirma que o povo local manifestava um caráter “afável e cheio de urbanidade”, com “escolas bem frequentadas” (Sampaio 2002, 146), para o militar, essa mesma população era “de um natural indolente e pouco laborioso”, acrescentando que “A instrução, educação e civilização estão ali em grande atraso” (Aguiar 1979, 19).

67Naquilo que concerne à produção local, Sampaio aponta que, nas imediações da vila de Carinhanha, a produção de algodão, cana-de-açúcar e cereais era proeminente, enquanto, para Aguiar, a pesca tinha grande importância no abastecimento da população, mas que os plantios de cana-de-açúcar, feijão, milho, mandioca e hortifruti eram bastante abundantes. Além disso, ainda segundo Aguiar (1979, 22), “O gado progride naquela região de uma maneira espantosa” e a comercialização de “açúcar de excelente qualidade, além da rapadura e mel para aguardente” (Aguiar 1979, 24) produzidos nos engenhos locais eram especialmente importantes, sendo comercializados, em sua maioria, na vila de Santa Maria da Vitória.

68Ao desdobrarem o tema da produção local, Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar discorrem brevemente sobre a produção artesanal de chapéus, ambos dando tratamento elogioso ao produto, considerado pelo primeiro como “obra fina e delicada, imitando o conhecido chapéu de Manilha” (Sampaio 2002, 146), enquanto o segundo exalta a manufatura de couro, “imitando perfeitamente o feltro, a manilha e a palha do Chile” (Aguiar 1979, 20).

69O sítio urbano de Carinhanha também obteve certa atenção de ambos os autores, cuja curiosidade maior era o fato da vila ter sido originalmente assentada sobre uma alta barranca na margem do Rio São Francisco, descrita como tendo “dez a treze metros de altura”, “profundamente retalhada ou gretada pelas torrentes” por Sampaio (2002, 144-145) e considerada “agradável” por Aguiar (1979, 20). Ademais, os autores discorreram sobre a morfologia da vila e alguns aspectos urbanísticos, porém, apenas Durval Vieira de Aguiar fez menções mais detalhadas, uma vez que Theodoro Sampaio resumiu-se a afirmar que Carinhanha pareceu-lhe maior que Urubu, além de um breve comentário sobre a antiguidade da vila. Quanto as impressões de Aguiar (1979, 20), este autor afirma que

[...] interiormente o seu estado de decadência revela-se logo pela má impressão das casas acaçapadas e velhas, a maior parte de taipa, sem caiação, muitas delas arruinadas; a Matriz quase em ruínas, escorada para não desabar, as ruas desertas, sem comércio (apenas umas duas lojas de fazendas) e sem indústria que denote a menos ocupação. A casa da Câmara é ruim e velha; servindo de cadeia e quartel do pequeno destacamento policial uma casa particular imprópria [...].

70Outro aspecto que chama atenção no trecho consagrado à Carinhanha por Durval Vieira de Aguiar e para o qual dedicou algumas linhas a mais foi a posição geográfica da nucleação. De início, o autor menciona que, por conta de “sua excelente posição”, a vila “está fadada para uma grande e rica cidade” (1979, 24), por ser, ainda segundo Aguiar, “guarda futura da nossa fronteira provincial pelo seu papel imponente de sentinela avançada nesse grande triângulo formado por três províncias – Bahia, Minas e Goiás” (Aguiar 1979, 25). Contudo, em seguida, adverte, conjecturando sobre uma possível futura rede urbana:

[...] mas para isso precisa de três indispensáveis melhoramentos: o primeiro a desobstrução do rio Carinhanha, o segundo que a navegação a vapor se torne uma realidade no alto S. Francisco, terceiro que uma estrada de ferro a ligue com alguns de nossos portos marítimos. (Aguiar 1979, 25)

71Entusiasta da implantação de uma malha ferroviária na Bahia, como se pode verificar em outros trechos da sua obra, Aguiar comenta sobre um projeto que ligaria o porto de Ilhéus a Malhada, então povoado de Carinhanha, com descrição do percurso, que “atravessaria os nossos mais férteis terrenos, já povoados e relativamente cultivados” (Aguiar 1979, 25).

72Sobre Malhada, aliás, ambos os autores tecem alguns breves comentários. Localizada praticamente defronte a Carinhanha, o então povoado foi mencionado por Sampaio devido ao fato do governo provincial de Minas Gerais ter implantado, em suas proximidades, uma barreira para cobrança de taxas das embarcações vindas da Bahia, enquanto Aguiar alude ao fato de que a passagem da margem direita do município para Carinhanha se faz a partir de um cais na dita povoação e que, por tal movimentação de pessoas e bens, esta vivenciava uma fase de prosperidade concomitante à inércia econômica da vila a qual estava ligada administrativamente.

Considerações finais

73O estudo que aqui se apresenta é um exercício de análise geográfico-histórica realizado por meio da comparação de dois pontos de vista sobre uma diversidade de assentamentos permanentes das margens do Rio São Francisco, na Bahia, em finais do século XIX, permitindo esboçar um panorama – parcial, vale afirmar – da morfologia desses espaços (proto)urbanos e de suas formas de reprodução social e econômica, cujos artífices das descrições e análises utilizadas como fontes são dois proeminentes intelectuais daquele final de século: Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar.

74Com efeito, este escriba compreende as limitações relativas à comparação de duas fontes datadas, francamente alinhadas à doutrina filosófica positivista e sua forma de operacionalização da ciência – prática dominante do fazer científico no final do século XIX – e que, portanto, privilegiava a descrição dos fatos observados, ainda que, em alguns poucos trechos das respectivas obras seus autores tenham esboçado algumas análises crítico-reflexivas e até enveredado por um viés propositivo.

75Não obstante, conforme já declarado alhures, as obras são fontes ímpares para a análise geográfico-histórica das formas de reprodução social e econômica – aí incluídos os modos de viver em cidades, vilas e povoados – da calha do Rio São Francisco. Tal constatação é ainda mais importante quando se verifica a escassez de fontes sobre as cidades e a região naquele contexto temporal e que estão fartamente pautadas nas obras de Theodoro Sampaio e Durval Vieira de Aguiar.

76Isto posto, importa aclarar que as comparações aqui apresentadas permitem não apenas a efetuação de uma análise geográfico-histórica desses espaços (proto)urbanos de uma região precariamente integrada ao conjunto da realidade nacional brasileira naquele conturbado período de transição entre o regime monárquico e o republicano, mas, em especial, lança luzes sobre um olhar específico contido nas obras desses dois importantes intelectuais do seu tempo, que é justamente o interesse em descortinar as características de assentamentos permanentes que, desde então, margeiam o “Velho Chico”.